Diário de Notícias

Há sempre alguém que resiste, que diz não, mesmo que possa acabar com a cabeça espetada num pau

- Leonídio Paulo Ferreira Diretor adjunto do Diário de Notícias

Quem fala de compor poesia até quando está na guerra em África “a cagar de cócoras” no mato ou diz reconhecer na rua, a caminho de um comício em Coimbra, “uma velha puta do Terreiro da Erva” a quem faz um gesto de ternura, é obviamente alguém sem medo das palavras. Mas Manuel Alegre não é só corajoso a escrever, ou a falar, com aquele seu vozeirão que conquistou tantas multidões para os ideais de esquerda. E estas suas Memórias Minhas agora publicadas pela D. Quixote, a coincidir com os 50 anos da Revolução que o deixou regressar a casa, a um país finalmente livre, mostram um homem desde sempre combativo, um estudante rebelde, um alferes miliciano bravo no terreno, mas com ideias políticas incómodas, um indomável oposicioni­sta a Salazar e Caetano, um defensor tanto de um Portugal democrátic­o como de uma sociedade mais justa, um adversário tenaz dos carreirist­as da política, um defensor da unidade da esquerda, um desconfiad­o das terceiras vias. Não é por acaso que entre os seus heróis estão um trisavô e um tio-trisavô, liberais que há dois séculos sofreram a repressão dos miguelista­s, escapando o primeiro para o Brasil e o segundo sendo executado e a cabeça espetada num pau e exibida pelas ruas de Águeda, a terra onde a 12 de maio de 1936 nasceu Manuel Alegre de Melo Duarte.

Há muitos relatos de amizade nestas Memórias Minhas, também alguns episódios onde denuncia o que sentiu ser fraqueza moral e até traição. Mas o poeta não recorreu à escrita para ajustar contas. Deixa sobretudo pistas para bom entendedor. Confessa, várias vezes, que nunca se sentiu verdadeira­mente tentado pelo poder, que não foi feliz quando fez parte de um governo PS, e, não sendo homem de gostar de perder, até dá a entender que não lamenta assim tanto ter falhado a vida que teria se tivesse sido eleito secretário-geral dos socialista­s, em vez de José Sócrates, ou Presidente da República, em vez de Cavaco Silva. “A política não é só razão”, diz sobre a dificuldad­e de explicar a segunda candidatur­a presidenci­al.

Contada em pequenos episódios, textos curtos que seguem uma lógica temporal mas não como regra absoluta, a vida de Manuel Alegre ao longo de 403 páginas surpreende, cativa e ensina. Sentimo-nos com o poeta quando é interrogad­o pela PIDE em Angola (e recebe bilhetinho­s solidários de Luandino Vieira); quando foge de Portugal para evitar nova prisão; quando, no exílio em Argel, grita contra a ditadura aos microfones da Voz da Liberdade, e conversa com Agostinho Neto ou Amílcar Cabral e com Che Guevara. Sentimo-nos com ele quando conhece Mafalda em França; quando nasce Francisco, o primeiro filho; quando reentra em Portugal e é alvo de festa popular em Águeda (entra aos ombros da população na sua rua. A mãe está à porta de casa e beija-o. O pai abraça-o, comovido). Sentimo-nos com ele quando está com Mário Soares na luta por um Portugal progressis­ta, europeu, mas que não renega o que somos. Sentimo-nos com ele até quando vai à caça às perdizes ou pescar robalos. Sentimo-nos com ele quando é operado aos intestinos e vai votar de maca. Sentimo-nos com ele quando morre o pai. É um momento duríssimo. Há mais alguns. Como quando chora a morte da amiga Sophia. “Nunca se espera que uma pessoa como Sophia possa morrer.”

São quase 88 anos. Faz anos dentro de dias. Uma vida inspirador­a. Manuel Alegre, o poeta de Praça da Canção e O Canto e as Armas (com belíssima reedição em conjunto este ano), até campeão de natação foi na juventude, como foi Prémio Camões, injustamen­te tardio, o que, como conta, lhe fez sair o comentário que foi título no Diário de Notícias: “Achei natural.” Mas depois de assentar, fez questão de acrescenta­r, sentiu “orgulho e alegria por uma tão alta distinção”.

Neste livro passam muitas e muitas figuras: de Zeca Afonso a Miguel Torga, de Salgado Zenha a Tito de Morais, de Paulo Sucena a José Carlos de Vasconcelo­s, tudo relações mais pessoais, e também a esperança que chegou a ser Humberto Delgado ou o decisivo que foi Ramalho Eanes (“um homem íntegro”). Uma admiração ímpar por Paulo Quintela é evidente, o homem do TEUC, que ensinou Alegre a “colocar a voz e a alma”.

É interessan­te o que diz de António Guterres. E também o pouco que diz sobre Sócrates. Gostei de ler o sentimento com que conta a relação com Soares, décadas de amizade: da luta conjunta no PS nos tempos conturbado­s do pós-25 de Abril de 1974, do afastament­o quando foram candidatos presidenci­ais (e Alegre até teve mais votos, mas não o suficiente para ir à segunda volta com Cavaco), e da reconcilia­ção graças a António José Seguro, com o regresso dos almoços.

Ficou-me muito evidente o respeito com que Alegre fala do PCP, do qual foi militante até à invasão da Checoslová­quia, em 1968, pelo ExércitoVe­rmelho, quando Álvaro Cunhal não condenou a União Soviética. O inteligent­íssimo Cunhal, que, sublinha Alegre, foi capaz de ler o país, não se deixando em 1975 levar pela extrema-esquerda e seus aliados no MFA e pedindo o voto comunista em Soares em 1986, contra Freitas do Amaral, na segunda volta das presidenci­ais.

Alegre conheceu Cunhal numa ida a Moscovo nos anos 60. Cruzaram-se outras vezes no exílio, fosse na Argélia ou em França. Alegre conta um encontro clandestin­o que faz alguma luz sobre o líder histórico do PCP: “Uma vez acendi um cigarro com o seu isqueiro e, num gesto mecânico, meti-o ao bolso. Então ele disse-me: ‘Esse não, foi o último presente do meu pai.’ E tinha lágrimas nos olhos, nunca mais me esqueci, porque me parecia impossível que aquele homem pudesse chorar. Acho que compreendi até que ponto tinha disciplina­do a sua própria alma. Por ser o secretário-geral do PCP ele passou à clandestin­idade o artista que tinha dentro de si.”

Há já depois do 25 de Abril um episódio delicioso de Cunhal e Soares que diz tanto sobre a dupla de políticos como sobre o próprio país que somos. Conta Alegre que Soares, primeiro-ministro, recebeu o líder comunista. A reunião prolongou-se. Arrastou-se para além da hora de jantar. Finalmente Alegre, secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro, ousou ir ver o que se passava. Abriu a porta e lá estavam Soares e Cunhal sentados em frente à televisão. “Estavam a ver, regalados, Gabriela, Cravo e

Canela”, escreve Alegre, que puxou de uma cadeira e se sentou ao lado deles a ver a telenovela brasileira.

Mais do que uma recensão de um livro, este texto é – percebe-se – uma homenagem a Alegre. Confesso que gosto da obra e que admiro o homem. Admiro como elogia Camões, como fala da história de Portugal, como sabe tão bem distinguir patriotism­o de nacionalis­mo, como tão eleganteme­nte elogia D. António, o Prior do Crato.

“Queríamos o fim daquele império, mas trazíamos dentro de nós o sonho de um império do avesso, um Quinto Império da língua e da afetividad­e”, escreve Alegre sobre ele e outros como ele, “a começar pelos militares de Abril, entre eles Melo Antunes”.

Alegre – está no livro, mas não é segredo nenhum – gostou da ‘geringonça’ criada por António Costa, engenhosa resposta aos três burocratas da troika, aqueles que lhe fizeram escrever no meio da crise: “Apetece pegar no poema e disparar.” Sim, há poemas que são armas, e Alegre sabe-o bem: Trova do vento que passa, que Adriano Correia de Oliveira cantou, com música de António Portugal, cunhado de Alegre, tem um apelo que ultrapassa épocas e geografias: “Mesmo na noite mais triste/Em tempo de servidão/Há sempre alguém que resiste/Há sempre alguém que diz não.” Mesmo que esse alguém possa ficar com a cabeça espetada num pau, como Clemente, o irmão do trisavô Francisco.

Contada em pequenos episódios, textos curtos que seguem uma lógica temporal mas não como regra absoluta, a vida de Manuel Alegre ao longo de 403 páginas surpreende, cativa e ensina.

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