A Inglaterra vitoriana andou de cabeça perdida nos primórdios da fotografia
A segunda metade do século XIX assistiu a uma moda vitoriana devedora da excentricidade e da morbidez. Fascinados pelas possibilidades que a fotografia apresentava enquanto reorganização do real, pioneiros da arte de captar imagens lançaram-se na fotomont
Àdistância, incêndios erguem-se acima da paisagem incinerada. Uma aurora de fogo enleia-se no céu. Próximo à linha de costa, o mar enxameia-se de naufrágios. Peixes de proporções bíblicas apodrecem nas margens de um lago. Legiões de esqueletos tomam de assalto o mundo dos vivos. Um par de sinos anuncia a sentença de morte. Turbas de humanos de todos os estratos sociais são conduzidos para uma armadilha em forma de caixão. Foices ceifam vidas assim apartadas das suas minudências quotidianas. Em 1562, o pintor holandês Pieter Bruegel, o Velho, teceu em óleo sobre tela uma visão aterradora. O Triunfo da Morte, atualmente em mostra no madrileno Museu do Prado atrai o olhar do espectador para o canto superior direito. Ali, onde ainda impera uma réstia de claridade natural, um ente desprovido de vida prepara-se para desferir um golpe de espada. O gume cairá inexorável sobre o pescoço humano. Percebemos o desfecho, a decapitação. O ato extremo de violência tem um efeito psicológico de terror no espectador. A total separação da cabeça do corpo significa a morte cerebral em segundos.
Entre o final do século XIX e o início do século XX, a Europa e os Estados Unidos viveram um tempo de fascínio pela decapitação, mesmo que simulada. Uma moda passageira seguiu a reboque das novas tecnologias da época. Na década de 1850 e no início do decénio seguinte, a fotografia como forma de arte merecia um debate aceso. A câmara era vista como um meio para ultrapassar a realidade e expressar imaginação. A Inglaterra vitoriana moldou o real com contornos do ideal. Nos estúdios de câmaras escuras nasceu a fotografia artificial. Em breve, circulavam fotografias de humanos minúsculos capturados em garrafas, espíritos reencontravam a paz junto da família perdida, criaturas imaginadas pululavam nas cidades. “As imagens manipuladas do presente decorrem de uma linhagem secular, nascida nos primórdios da fotografia com técnicas como a exposição múltipla, o retoque de negativos, a impressão combinada e a fotomontagem. Técnicas ao serviço da política, da arte, da informação, do entretenimento e do comércio”, recorda-nos o texto que apresenta a mostra online de fotografias manipuladas no site do Metropolitan Museum of Art, de Nova Iorque. A mostra digital decorre da exposição Faking It: Manipulated Photography before Photoshop iniciativa que há uma década reuniu perto de 200 instantâneos que nos oferecem cenas desconcertantes. Entre elas, a de um mórbido repasto. A fotografia pela primeira vez em mostra pública no ano de 2013, apresenta uma dupla de comensais fascinada pelo pitéu que lhes é servido ao pequeno-almoço: uma cabeça humana sobre uma travessa. No ano de 1900, o fotógrafoWilliam Robert Bowles produzia no seu estúdio no estado do Kentucky aquela imagem fantasiada. Na época, a moda das “fotografias sem cabeça” atravessara o Atlântico, num momento em que começava a definhar nas Ilhas Britânicas. Nos 50 anos anteriores, milhares de cidadãos fizeram representar-se decapitados em instantâneos fotográficos. Para surpresa do espectador, todos apresentavam boa saúde. Ao contrário do condenado no quadro de Bruegel, o Velho, o fado dos visados na objetiva da câmara era o do entretenimento. Entre os fotógrafos decapitadores mais prolíferos da era vitoriana contava-se Oscar Gustave Rejlander, nascido em Estocolmo, na Suécia, em 1813, radicado em Inglaterra a partir de década de 1830.
Especialista em fotomontagem, Rejlander iniciou a sua carreira arcabeça”
Em 1562, Pieter Bruegel, o Velho, pintou superior direito, vê-se uma cena de decapitação.
tística como pintor de retrato. Mais tarde, fascinado pelo potencial da fotografia explorou a impressão a partir de dois negativos. Oscar iniciou então um percurso de duas décadas na fotomontagem com um dos seus primeiros trabalhos a representar a cabeça de São João Batista disposta numa bandeja. Seguiram-se-lhe inúmeras fotografias de cidadãos comuns de “cabeça perdida”. A par da colaboração fotográfica com o naturalista Charles Darwin na obra A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais (1872), Rejlander manteve estreito trabalho com o amador da fotografia Charles Lutwidge Dodgson, que as letras consagrariam sob o pseudónimo de Lewis Caroll, autor, entre outros títulos de Alice no País das Maravilhas. O sueco a viver na Grã-Bretanha teve na sua obra alegórica de 1856, Os Dois Caminhos da Vida,o seu momento maior. A fotografia combina 32 imagens, trabalhadas ao longo de seis semanas. Exibida em 1857 em Manchester, a peça revela-nos um homem atraído para os caminhos da virtude e do vício, respetivamente por um anjo bom e um anjo mau. A nudez de alguns dos figurantes chocou parte da sociedade vitoriana. Um clamor de repúdio aplacado pelo louvor público à fotografia por parte da rainhaVitória. A monarca, apaixonada pelo tema da fotografia manipulada, adquiriria três exemplares do trabalho, num lote de 22 imagens assinadas por Oscar Gustave Rejlander.
O fascínio pelas “fotografias sem
O Triunfo da Morte.
No canto
tomou ao longo de vários anos o trabalho de um fotógrafo britânico sediado em Brighton. Para nota futura, Samuel Kay Balbirnie, que antes da fotografia encetara estudos em medicina, não deixou apenas um recheado álbum de decapitações vitorianas. Balbirnie também anunciou na imprensa da época os seus serviços de fotógrafo excêntrico. A 23 de maio de 1878, as páginas do jornal Brighton Daily News acolhiam a publicidade de Balbirnie: “Fotografias sem cabeça – Senhoras e senhores fotografados com as suas cabeças a flutuar”. Uma oferta de serviços fotográficos que acrescia outros itens como “Fotografias de espírito – Senhoras e cavalheiros captados a flutuar no ar na companhia de mesas, cadeiras e instrumentos musicais”.
Crê-se que terá sido o francês Hippolyte Bayard, nascido em 1801, pioneiro da fotografia, o primeiro a sugerir a combinação de dois negativos fotográficos como meio para criar imagens irreais. Para a história, o contemporâneo de Louis Daguerre – inventor que patenteou o primeiro processo fotográfico – deixou os princípios que serviriam no futuro ao sistema de revelação usado pela Polaroid. O século XIX trouxe uma abordagem ao mundo que Mia Fineman, curadora no Metropolitan Museum of Art e autora do livro Faking It, substancia numa frase a propósito da fotografia manipulada: esta “contraria uma banalidade de longa data, o de que ‘as imagens não mentem’”.