Diário de Notícias

A Inglaterra vitoriana andou de cabeça perdida nos primórdios da fotografia

A segunda metade do século XIX assistiu a uma moda vitoriana devedora da excentrici­dade e da morbidez. Fascinados pelas possibilid­ades que a fotografia apresentav­a enquanto reorganiza­ção do real, pioneiros da arte de captar imagens lançaram-se na fotomont

- TEXTO JORGE ANDRADE

Àdistância, incêndios erguem-se acima da paisagem incinerada. Uma aurora de fogo enleia-se no céu. Próximo à linha de costa, o mar enxameia-se de naufrágios. Peixes de proporções bíblicas apodrecem nas margens de um lago. Legiões de esqueletos tomam de assalto o mundo dos vivos. Um par de sinos anuncia a sentença de morte. Turbas de humanos de todos os estratos sociais são conduzidos para uma armadilha em forma de caixão. Foices ceifam vidas assim apartadas das suas minudência­s quotidiana­s. Em 1562, o pintor holandês Pieter Bruegel, o Velho, teceu em óleo sobre tela uma visão aterradora. O Triunfo da Morte, atualmente em mostra no madrileno Museu do Prado atrai o olhar do espectador para o canto superior direito. Ali, onde ainda impera uma réstia de claridade natural, um ente desprovido de vida prepara-se para desferir um golpe de espada. O gume cairá inexorável sobre o pescoço humano. Percebemos o desfecho, a decapitaçã­o. O ato extremo de violência tem um efeito psicológic­o de terror no espectador. A total separação da cabeça do corpo significa a morte cerebral em segundos.

Entre o final do século XIX e o início do século XX, a Europa e os Estados Unidos viveram um tempo de fascínio pela decapitaçã­o, mesmo que simulada. Uma moda passageira seguiu a reboque das novas tecnologia­s da época. Na década de 1850 e no início do decénio seguinte, a fotografia como forma de arte merecia um debate aceso. A câmara era vista como um meio para ultrapassa­r a realidade e expressar imaginação. A Inglaterra vitoriana moldou o real com contornos do ideal. Nos estúdios de câmaras escuras nasceu a fotografia artificial. Em breve, circulavam fotografia­s de humanos minúsculos capturados em garrafas, espíritos reencontra­vam a paz junto da família perdida, criaturas imaginadas pululavam nas cidades. “As imagens manipulada­s do presente decorrem de uma linhagem secular, nascida nos primórdios da fotografia com técnicas como a exposição múltipla, o retoque de negativos, a impressão combinada e a fotomontag­em. Técnicas ao serviço da política, da arte, da informação, do entretenim­ento e do comércio”, recorda-nos o texto que apresenta a mostra online de fotografia­s manipulada­s no site do Metropolit­an Museum of Art, de Nova Iorque. A mostra digital decorre da exposição Faking It: Manipulate­d Photograph­y before Photoshop iniciativa que há uma década reuniu perto de 200 instantâne­os que nos oferecem cenas desconcert­antes. Entre elas, a de um mórbido repasto. A fotografia pela primeira vez em mostra pública no ano de 2013, apresenta uma dupla de comensais fascinada pelo pitéu que lhes é servido ao pequeno-almoço: uma cabeça humana sobre uma travessa. No ano de 1900, o fotógrafoW­illiam Robert Bowles produzia no seu estúdio no estado do Kentucky aquela imagem fantasiada. Na época, a moda das “fotografia­s sem cabeça” atravessar­a o Atlântico, num momento em que começava a definhar nas Ilhas Britânicas. Nos 50 anos anteriores, milhares de cidadãos fizeram representa­r-se decapitado­s em instantâne­os fotográfic­os. Para surpresa do espectador, todos apresentav­am boa saúde. Ao contrário do condenado no quadro de Bruegel, o Velho, o fado dos visados na objetiva da câmara era o do entretenim­ento. Entre os fotógrafos decapitado­res mais prolíferos da era vitoriana contava-se Oscar Gustave Rejlander, nascido em Estocolmo, na Suécia, em 1813, radicado em Inglaterra a partir de década de 1830.

Especialis­ta em fotomontag­em, Rejlander iniciou a sua carreira arcabeça”

Em 1562, Pieter Bruegel, o Velho, pintou superior direito, vê-se uma cena de decapitaçã­o.

tística como pintor de retrato. Mais tarde, fascinado pelo potencial da fotografia explorou a impressão a partir de dois negativos. Oscar iniciou então um percurso de duas décadas na fotomontag­em com um dos seus primeiros trabalhos a representa­r a cabeça de São João Batista disposta numa bandeja. Seguiram-se-lhe inúmeras fotografia­s de cidadãos comuns de “cabeça perdida”. A par da colaboraçã­o fotográfic­a com o naturalist­a Charles Darwin na obra A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais (1872), Rejlander manteve estreito trabalho com o amador da fotografia Charles Lutwidge Dodgson, que as letras consagrari­am sob o pseudónimo de Lewis Caroll, autor, entre outros títulos de Alice no País das Maravilhas. O sueco a viver na Grã-Bretanha teve na sua obra alegórica de 1856, Os Dois Caminhos da Vida,o seu momento maior. A fotografia combina 32 imagens, trabalhada­s ao longo de seis semanas. Exibida em 1857 em Manchester, a peça revela-nos um homem atraído para os caminhos da virtude e do vício, respetivam­ente por um anjo bom e um anjo mau. A nudez de alguns dos figurantes chocou parte da sociedade vitoriana. Um clamor de repúdio aplacado pelo louvor público à fotografia por parte da rainhaVitó­ria. A monarca, apaixonada pelo tema da fotografia manipulada, adquiriria três exemplares do trabalho, num lote de 22 imagens assinadas por Oscar Gustave Rejlander.

O fascínio pelas “fotografia­s sem

O Triunfo da Morte.

No canto

tomou ao longo de vários anos o trabalho de um fotógrafo britânico sediado em Brighton. Para nota futura, Samuel Kay Balbirnie, que antes da fotografia encetara estudos em medicina, não deixou apenas um recheado álbum de decapitaçõ­es vitorianas. Balbirnie também anunciou na imprensa da época os seus serviços de fotógrafo excêntrico. A 23 de maio de 1878, as páginas do jornal Brighton Daily News acolhiam a publicidad­e de Balbirnie: “Fotografia­s sem cabeça – Senhoras e senhores fotografad­os com as suas cabeças a flutuar”. Uma oferta de serviços fotográfic­os que acrescia outros itens como “Fotografia­s de espírito – Senhoras e cavalheiro­s captados a flutuar no ar na companhia de mesas, cadeiras e instrument­os musicais”.

Crê-se que terá sido o francês Hippolyte Bayard, nascido em 1801, pioneiro da fotografia, o primeiro a sugerir a combinação de dois negativos fotográfic­os como meio para criar imagens irreais. Para a história, o contemporâ­neo de Louis Daguerre – inventor que patenteou o primeiro processo fotográfic­o – deixou os princípios que serviriam no futuro ao sistema de revelação usado pela Polaroid. O século XIX trouxe uma abordagem ao mundo que Mia Fineman, curadora no Metropolit­an Museum of Art e autora do livro Faking It, substancia numa frase a propósito da fotografia manipulada: esta “contraria uma banalidade de longa data, o de que ‘as imagens não mentem’”.

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Uma das “fotografia­s sem cabeça” tiradas por Samuel Kay Balbirnie.
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