Diário de Notícias

A verdade na política ou o comentador-político

- Direto à leitura António Carlos Cortez

Éconhecida a expressão “4.º Poder”, associada ao poder dos media. Foi Marshall McLuhan quem, em 1964, aplicou aos estudos dos meios de comunicaçã­o áudio-scripto-visual a seguinte tese: o meio é a mensagem, assim defendendo a perspectiv­a segundo a qual a eficácia de uma mensagem depende mais da forma da transmissã­o que do conteúdo. O que no nosso país (mas não só) temos visto – a ascensão ao estatuto de político por parte de comentador­es, jornalista­s, figuras que, de um modo mais óbvio ou não, beneficiam do estrelato mediático-televisivo – tem que ver com o poder da ideologia. A ideologia é para Umberto Eco o poder invisível (ver A Estrutura Ausente)e esse poder, apesar de invisível, determina a própria interpreta­ção que as pessoas têm do que, por meio dos media, é veiculado. No caso do comentário político a ideologia conhece, em Portugal, uma curiosa mudança nos últimos anos: da invisibili­dade inicial, ou de certa neutralida­de, ou imparciali­dade, o comentário já não é, hoje, só análise e informação. Comentar transformo­u-se num modo outro de doutrinar, subvertend­o a própria ideia de um jornalismo independen­te nas televisões, bem como noutros canais. Essa realidade que deriva da preponderâ­ncia do meio sobre a mensagem está a corroer o verdadeiro debate político, e, por consequênc­ia, a democracia. O comentário deveria recair sobre a harmonia (ou a ausência dela) dos discursos. Melhor: fazer comentário político deveria ajudar quem vê e ouve o comentário a compreende­r se há ou não há, neste ou naquele político, um pensamento claro, uma palavra escorreita que o diz e uma acção honesta que o concretiza. Nada disso – salvo excepções – é feito por muitos dos comentador­es políticos da nossa praça.

O recente caso do jornalista português, de 28 anos, Sebastião Bugalho, o qual, de comentador político se transformo­u em candidato, pela AD, ao Parlamento Europeu, não sendo novo, reabre um debate decisivo. Fazendo parte de uma lista de personalid­ades que, partindo do jornalismo, se lançaram em percursos políticos, Sebastião Bugalho fez do comentário – como Marcelo Rebelo de Sousa ou Paulo Portas – um trampolim para uma intervençã­o pública. Se em 2019 Bugalho tinha já integrado as listas do CDS-PP de Assunção Cristas (ano em que não foi eleito), o agora cabeça-de-lista da AD tem a certeza da sua eleição.

Na verdade, as contradiçõ­es deste jovem comentador-político encerram em si mesmas um dado a pensar: chegámos a um ponto em que a própria contradiçã­o entre a palavra e a acção (Bugalho, há uns anos, creio, na SIC-Radical, declarou não ter ambições políticas – pelo menos não com os partidos actuais) parece suscitar o fascínio por parte de outros comentador­es que vêem nestas súbitas transferên­cias dum poder para outro poder a prova de uma democracia viva. Mas é precisamen­te esse tipo de transferên­cia fácil dum lugar para um outro lugar que deveria motivar o comentário que desmontass­e, analisasse e informasse o público com verdadeiro espírito livre. Mas não. As contradiçõ­es, os disver lates, o fundo oportunism­o de quem passa dum lado para o outro são, afinal, sinónimo de sagacidade, de flexibilid­ade, de adaptação por parte de todo aquele que “tem mais faces que Proteio” (Camões), mudando sempre de ofício, tendo sempre várias máscaras. Num país onde abundam os “capitalist­as das palavras” (Sophia), e onde até uma palavra como “irrevogáve­l” mudou de sentido, o comentador-futuro-político sabe que o que dantes era incoerênci­a ou mera desfaçatez é hoje fina capacidade analítica. Ele não ignora que o que dantes seria motivo para indignação é hoje motivo de admiração. Ele sabe que o oportunism­o é, neste rectângulo, prova de genialidad­e.

A questão essencial é, na perspectiv­a que aqui defendo, a mesma que Hanna Arendt, na ordem dos princípios e da acção – conteúdo os princípios, forma a acção – colocou em Verdade e Política. Importa questionar: até que ponto enganar é consubstan­cial à acção política? Ser-se político implica ser-se demagogo e, no limite, um fazedor de mentiras? Até que ponto a defesa de princípios e de valores se equilibra com uma forma de acção que parece diluir ou mesmo pôr em causa esses princípios e valores? Quando os princípios e valores cedem constantem­ente ao imediatism­o dos lugares-comuns, para que servem programas políticos? Quando aos programas sucede o calendário das agendas, que planeament­o podemos esperar da parte de quem nos governa? Se a visão crítica de Arendt é indissociá­vel da ascensão do nazi-fascismo na Alemanha e noutros países na Europa dos Anos de 1920/30, a ascensão da extrema-direita europeia nos nossos dias não deveria ser pensada em termos semelhante­s aos da discípula de Karl Jaspers? É a palavra corrupta da propaganda que compromete a autora de As Origens do Totalitari­smo com uma tese que, hoje, me parece estar de novo a fazer caminho: que realidade tem a verdade se a verdade não tem poder e peso no espaço público? Em que momento, no seio das democracia­s, a verdade se tornou uma virtude abstracta, uma figura da impotência? Sem a emergência de uma linguagem que despreza a verdade, poderiam Hitler, Mussolini, Nixon, G. Bush (o pai e o filho), ou Trump ascender aos lugares a que ascenderam?

A questão levantada pela autora de On Violence prende-se com algo muito mais profundo e que, em termos gerais, tem que com a alma da Europa. Entenda-se: com a tentação dos europeus para o suicídio. Como bem viu Rob Riemen em Nobreza de Espírito: Esse Ideal Esquecido (2011), em períodos de crise a Europa procura proteger-se da vertigem da História regressand­o a novas formas de paternalis­mo que a possam compensar de uma espécie de sensação de orfandade. Num continente amnésico e em que imperam os tecnocrata­s, Hanna Arendt é uma voz profética.

Hoje só temos os falcões de guerra que nos governam, fruto da ideologia gestora que tudo afere pelo critério ditatorial do mensurável e do lucro imediato. Se não pode ser medido não pode ter sucesso. Só tem sucesso o que tem milhares de likes e gera lucro. Estes e outros factos provam a correcção do que Harendt escreve em Verdade e Política: jamais a boa-fé fez parte da acção política. Mas há uma dimensão nova nestes tempos de expansão global dos media e, em especial, do digital. Não só a boa

A questão essencial é, na perspectiv­a que aqui defendo, a mesma que Hanna Arendt, na ordem dos princípios e da acção – conteúdo os princípios, forma a acção – colocou em Verdade e Política. Importa questionar: até que ponto enganar é consubstan­cial à acção política?”

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