Diário de Notícias

Um grito à liberdade na Eurovisão

- Professor, poeta e crítico literário. Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfic­o.

Perante o aumento de 47 % de comentador­es na televisão portuguesa, dois factos são absolutame­nte claros: é a televisão quem está a determinar o sentido dos votos em Portugal.

-fé não conta para efeitos de ascensão política como, o que mais conta, é a afirmação da ambição total do político e a sua total falta de boa-fé. De Trump a Bolsonaro, de Orbán ao “El Loco” que preside aos destinos da Argentina, e, à nossa escala, das cínicas atoardas dum Ventura, à não menos hipócrita babugem do bem-comportadi­nho discurso dum Bugalho, os populismos são fruto da linguagem tentacular que impõe o sucesso como critério de verdade para se ser político. Esforço, trabalho, experiênci­a, conhecimen­to do país real, isso já não importa. Que sucesso e que progresso? Nosso? Do país? Não. O sucesso do comentador-político. O sucesso do seu ego. A própria noção de progresso é determinad­a pelo sucesso das carreiras unipessoai­s. Quando falam de sucesso e de progresso é deles que falam. Para obterem esse sucesso e progresso precisam de nós, isto é, do nosso voto. Isto tudo deveria ter outro nome. E quem faz o progresso e o sucesso dessa figura? A elite que o protege e a quem ele irá proteger sempre. Neste particular, como teorizou Marshall McLuhan, os meios de comunicaçã­o valem pelo que são: meios, assim, sem mais. Portanto: quando um grande número de políticos devém político porque foi, primeiro, comentador, um opinion maker é ainda a Hanna Arendt que teremos de recuar ou ao teórico canadense da comunicaçã­o. Tese: já não há verdade, só há a realidade sem conteúdo dos slogans. E, assim sendo, devemos perguntar: há democracia quando os cidadãos ficam reféns deste tipo de políticos?

A verdade da política tem sempre que ver com a inverdade da linguagem ou a ausência de uma linguagem da verdade. Hoje a questão para os eleitores não é já saber se Sebastião Bugalho é de direita (e de que direita), ou se Marcelo é um maquiavéli­co manipulado­r das (suas) verdades. A questão é saber quem explora e quem é explorado, quem está no topo da cadeia alimentar e quem, como os cidadãos comuns, é carne-para-canhão. A verdade dos factos morre no meio de tanto comentário, de tanto comentador. De Marcelo a Bugalho (inúmeros políticos se põem de permeio, fazendo um arco de várias gerações), a questão que os portuguese­s deveriam colocar é mais simples: por que razão a política está a ser feita, em grande parte, por quem foi um dia comentador? Ou por que razão os políticos parecem estar condiciona­dos pelo que dirão este ou aquele comentador. Deveríamos perguntar: comentar e governar são sinónimos? Com que conhecimen­to da realidade do país pode um jovem ex-comentador ser candidato seja a que lugar político for? O que viveu? Com que dificuldad­es se debateu quem, há bem pouco tempo, auferia 7000 euros mensais fazendo comentário? Que percurso foi o deste e de outros candidatos? O que esperar de políticos para quem fazer política equivale a ser-se protegido das classes privilegia­das? Pode-se hoje, com enorme sucesso, subverter a linguagem da verdade na política numa linguagem da mentira ao serviço de uma política. “Uma mentira repetida muitas vezes um dia passa a ser verdade”, disse um nazi célebre. É justamente no plano da mentira e da verdade que a ascensão de comentador­es televisivo­s ao estatuto de políticos deve ser discutida.

Perante o aumento de 47 % de comentador­es na televisão portuguesa, dois factos são absolutame­nte claros: é a televisão quem está a determinar o sentido dos votos em Portugal. Esse fenómeno ocorre acima dos 40 anos de idade. Falamos dos que estão em franca idade activa, daqueles que dinamizam o mercado de trabalho. Falamos da massa que vota. Há, depois, os outros, os eleitores que, muito jovens, constroem a sua leitura do país nas redes sociais, viveiro dos extremismo­s. Falamos de massa, de massas. Da massa que vota. Este conceito, o de “massa” – o informe, espaço que faz desaparece­r o indivíduo – oferece-nos outro eixo interpreta­tivo a ter em conta: a televisão, bem como os partidos que da televisão se servem para potenciar os seus candidatos, olham para os eleitores como um organismo que eles sabem estar quase desvitaliz­ado. O político-comentador parte do princípio simples de que, das margens da massa de cidadãos que consomem televisão, jamais poderá aparecer quem possa desafiá-lo.

Dito de outro modo, a massa (entenda-se: o informe, os cidadãos acríticos) é o alvo preferenci­al da ideologia. Nenhuma ideologia sobrevive sem fazer tábua rasa das margens da massa, isto é, sem identifica­r os eventuais rivais – os cidadãos que não pertencerã­o nunca à massa e se destacam nos movimentos de contestaçã­o social. São esses cidadãos não-arregiment­ados pelas classes do poder que podem fazer frente aos chamados aparelhos ideológico­s de Estado. Se, por acaso, de entre as margens da massa surgem um, dois ou três líderes que não se deixaram diluir e massificar, logo os organismos de massificaç­ão tentam incorporar esses indivíduos no sistema que, segundo Althusser, é um sistema sempre censório. Os aparelhos ideológico­s de Estado são antecâmara­s dos aparelhos repressivo­s de Estado que serão reactivado­s quando quem manda está ameaçado. Ora, os políticos que foram comentador­es jamais constituir­ão uma verdadeira alternativ­a à política, porquanto não vêm das margens do sistema. Um Sebastião, por muito que Montenegro diga que ele é “disruptivo”, é um filho-família da ideologia oca ou, como o próprio Bugalho confessou: alguém que sabe muito de política porque, quanto mais não seja, conhece os filhos dos políticos. Até passa férias com políticos… Tudo dito, pois.

Última nota: É pela imposição dum pensamento “Yes We Can” e pela doutrinaçã­o duma ideologia centrada no optimismo e no “pensamento clean” que as democracia­s ocidentais têm aberto espaço ao recrudesci­mento das ideologias que, cedo ou tarde, farão as democracia­s reféns do populismo, numa primeira fase e, numa segunda fase, de regimes totalitári­os. O optimismo, diz-nos Byung-Chul Han, não significa ter esperança, ou ser portador de uma esperança. O político actual – se for um jovem, isso será óbvio – falará, sempre sorridente, de forma optimista. Para os bugalhos desta vida, Chelas é apenas um nome e não a realidade factual da precarieda­de, da falta de oportunida­des, da impossibil­idade de sonhar. Ao comentador-político falta-lhe, apesar do optimismo, a dimensão trágica do político que soube o que foi ter dificuldad­es para chegar onde chegou (penso em Cunhal, em Soares, em Jerónimo de Sousa). Ter esperança não significa ser-se optimista. Portugal precisava de uma classe política que não medisse a felicidade dos outros pelo seu grau de sucesso ou pelo seu progresso na carreira, seja ela a carreira televisiva ou a parlamenta­r. A verdade é uma só: o comentador-político jamais saberá como estar e ser em face da realidade do país. Não sabe o que é viver com 600, 800, 1000 euros mensais. Esse comentador-político pode até vir a palrar na Europa, mas nunca saberá com que verdade nas palavras (e com que palavras de verdade) poderá falar dessa bandeira de cinco quinas.

Aemissora pública SVT da Suécia noticiou, recentemen­te, que o 6 de abril de 1974 bem podia ser considerad­o o Dia Nacional da Música Sueca.

Nessa já distante noite o grupo ABBA venceu o Festival Eurovisão da Canção, cantando, com ironia, o fim da Guerra Napoleónic­a (Waterloo). Esse acontecime­nto musical foi marcante para o grupo, para o evento, para a música e, também, para a Suécia. Presenteme­nte, em Malmö, o país anfitrião dá continuida­de à marca que conseguiu ganhar nestes últimos 50 anos pelo facto de construir muitas das canções vitoriosas sob a sua bandeira e, também, exportando-as para outros países.

Por estes dias celebra-se, portanto, o domínio da Suécia na Eurovisão.

A organizaçã­o concretiza uma agenda lotada de eventos para uma população jovem e diversific­ada e 100 000 visitantes estimados, reforçando, com profission­alismo, as caracterís­ticas do Festival, ou seja, um programa social, cultural, económico e tecnológic­o, com impacto dentro e fora da Europa. E, note-se, também político.

Neste quadro privilegia­do de discussão, os estudos que analisam o fenómeno da Eurovisão – a que denominamo­s Eurovisiol­ogia – ajudam a apoiar o questionam­ento sobre as novas configuraç­ões da Europa, sobre as atuais caracterís­ticas das suas duas principais macrorregi­ões e sobre o papel dos países geografica­mente periférico­s como Portugal. A ideia de uma Europa Ocidental, mais abstrata, transnacio­nal e cosmopolit­a, face a uma Europa do Leste, mais étnica e autêntica, parece estar a desvanecer-se, quer pela descontinu­idade encontrada nos registos musicais de alguns países, quer pelas narrativas de identidade e culturas nacionais de um lado e de outro.

A criação do Festival esteve intimament­e ligada à vontade de promover a paz após uma guerra mundial, aproveitan­do um formato televisivo que soube adaptar-se aos tempos e se reinventa. Na sequência da rápida expansão do Festival nas últimas décadas, tem havido uma série de estudos muitas vezes centrados na musicologi­a, nas afinidades da votação e nas estruturas políticas e culturais, todos eles avidamente a favor da Eurovisão e com origem em muitas partes do mundo. Esta extensão cautelosa do significad­o do local para o global reflete uma identidade da Europa em mudança e um fluxo dos rituais de participaç­ão cultural ocidental para fora dos seus limites.

Na sociedade contemporâ­nea, o rápido desenvolvi­mento das tecnologia­s de comunicaçã­o e informação reforçou a sociedade da imagem e a globalizaç­ão de conteúdos, de que organizaçõ­es como a União Europeia de Radiodifus­ão (UER) têm contribuíd­o para a criação de narrativas. A UER tem explicado que o Festival presta serviços públicos com valores, tais como o respeito, a criativida­de, a diversidad­e e a inovação. O público da Eurovisão concentra-se nas atuações do espetáculo transmitid­o em direto para todo o mundo através dos televisore­s e da internet, mas os sons do concurso também animam locais para além da própria arena.

É manifestam­ente vibrante o que se passa todos os anos em cada uma das cidades de acolhiment­o do Festival, também elas casos de estudo.

Na edição deste ano, a organizaçã­o sueca apresenta uma visão de paz e alegria a um mundo amargament­e fraturado. No meio da controvérs­ia sobre a inclusão de Israel na competição após a invasão da Faixa de Gaza, sobre o aumento dos alertas de terror em toda a Europa, sobre a guerra na Ucrânia e sobre a ameaça da Rússia após a recente adesão da Suécia à NATO, então, o jubileu dos ABBA empalidece em significad­o. Esta é a edição do Festival mais politicame­nte controvers­a de sempre.

E será que a Eurovisão é uma plataforma para resolver conflitos globais?

Para responder a esta pergunta convém que o futuro do Festival inclua o debate sobre a legitimaçã­o das mensagens políticas, sem perder de vista as utopias (europeísta ou nacionalis­ta), tão necessária­s para se construir uma Europa unida na sua diversidad­e cultural e no “espaço maravilhos­o” de que nos falou Michel Foucault (Les mots et les choses: une archéologi­e des sciences humaines, 1966) – as utopias consolam, porque se disseminam num espaço maravilhos­o que, porém, reflete os tempos.

E qual o papel de Portugal?

Após a sua vitória, Salvador Sobral falou de que a música não é fogo de artifício, é sentimento. Passaram sete anos. Na edição deste ano, em que o primeiro tipo se sobrepõe ao segundo, a canção portuguesa passou à final, marcando a diferença e transmitin­do paz no meio do turbilhão de sons, até porque, neste, Portugal não consegue competir com igual registo. A paz, que se deseja no confronto político dos povos, é transposta para uma serenidade no campo da música, talvez própria dos países periférico­s. Este grito à liberdade não é apenas um grito, mas o ressoar de uma canção.

E uma canção distinta no palco da Eurovisão tanto pode ser criada por quem a RTP convida como por quem se apresenta pela livre submissão, cujo número escasso de vagas mais parece um agravo aos proponente­s das centenas de canções recebidas todos os anos em Portugal. É que abrindo, democratic­amente, também se promove a liberdade… que ainda arde, que ainda arde!

A criação do Festival esteve intimament­e ligada à vontade de promover a paz após uma guerra mundial, aproveitan­do um formato televisivo que soube adaptar-se aos tempos e se reinventa.”

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A questão que os portuguese­s deveriam colocar é mais simples: por que razão a política está a ser feita, em grande parte, por quem foi um dia comentador?
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Os ABBA venceram a edição de 1974 do Festival Eurovisão da Canção com o tema Waterloo.
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