Diário de Notícias

Vemo-lo ligado ao lançamento, em 1965, da histórica boate O Calhambequ­e, que a par de uma aprazível pista de dança tinha também, imagine-se, uma fantástica “pista minicar” que mimetizava o Circuito de Le Mans.”

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nos conduz a uma outra, que é a de saber se no Portugal que hoje temos, decerto menos desigual e injusto, que mecanismos existem para a promoção de miúdos como o Modesto do banjo, sobretudo se pertencere­m a etnias ou minorias historicam­ente desfavorec­idas, para dizer o mínimo.

Adiante. Feito adulto aos 12, 13 anos, ou mesmo antes, Modesto não perdeu logo, como é óbvio, os traços de criança, que o levaram a envolver-se em mil brincadeir­as com os seus colegas de ofício, da mesma idade do que ele, como o José Luís e o Fernando Barroso, com quem jogava à bola em pleno Terreiro do Paço (!) ou com quem ia, depois de almoço, dormir a sesta para os sofás de cabedal do gabinete do gerente, o Sr. Paiva de Andrade. Um dia, por iniciativa do Américo, cognominad­o Pau-Preto, puseram-se todos aos pulos num dos sofás, usando-o como cama elástica, com resultados fatídicos para a integridad­e do mobiliário. Claro está, foram chamados ao gabinete do administra­dor com o pelouro do Pessoal, o Sr.Visconde do Marco, que lhes deu um valente raspanete, mas não concretizo­u a tenebrosa ameaça de os pôr na rua – e no desemprego.

A este propósito, diz Modesto/Paulo Alexandre que a administra­ção do Burnay até incentivav­a os grooms a estudarem e a divertirem-se e que, uma vez despachado o serviço do dia, ele e os colegas matavam o tempo declamando versos, fazendo partidas, lendo o que havia. Modesto chegava a levar o banjo para o banco, e a fazer sessões de variedades à hora do almoço. “E o que hoje muito nos pode espantar”, diz, “é que, tendo de tudo isto conhecimen­to, nunca a direcção ou a administra­ção se mostrou desagradad­a…”

Uma festa diária, portanto, que tinha o seu momento alto por alturas das celebraçõe­s do Natal, animadas por Modesto e pelos seus companheir­os: parelhas de palhaços rico e pobre, números de ilusionism­o, canções tocadas no banjo, imitações das Lições do Tonecas, popularíss­imas, a fama dos rapazes do Burnay chegava longe e levou-os a serem convidados para actuar – gratuitame­nte, é claro – em colectivid­ades, sociedades de recreio, casas regionais, como a Casa Regional de Ferreira do Zêzere ou a Associação Académica da Amadora, a extensa rede de agremiaçõe­s que compunham a “sociedade civil” de então, hoje arrasada pelos smartphone­s e pelas redes ditas “sociais.”

Além das paródias, o grupo desportivo, onde os paquetes do banco praticavam diversas modalidade­s, com destaque para o atletismo e, claro, o futebol. O Barroso, o melhor sprinter do grupo, chegou a ser, nos 60 metros, Campeão de Lisboa, pelos juniores do Benfica, e os rapazes do Burnay venceram, por diversas vezes, uma coisa deliciosam­ente chamada Campeonato Bancário, a nível nacional. Na época de 1948-1949, quando jogava a avançado, num recontro com a equipa do Banco Espírito Santo, disputada num pelado pertencent­e ao Sporting, Modesto lesionou-se com gravidade, com fractura exposta da tíbia e do perónio da perna direita e uma longa hospitaliz­ação, e três intervençõ­es cirúrgicas.

No hospital, foi visitado por vários membros da equipa adversária, entre os quais um rapaz chamado Jorge, que trabalhava na Secção de Títulos do Banco Espírito Santo. Reencontra­m-se passadas décadas, nos Anos 70, lembravam-se ambos do incidente: o Jorge era Jorge de Brito, agora aos comandos do BIP, que acabara de inaugurar as suas instalaçõe­s num edifício então célebre em Lisboa, na Fontes Pereira de Melo, de vidros grená, que em 1977 seria alvo de um violento atentado à bomba (sobre a saga do BIP, cf. Cristina Ferreira, “Um BIP à margem da tradição”, Público, de 29/3/1999). Brito convidou-o para dirigir as Relações Internacio­nais do banco e foi em resultado disso que Modesto acabou enviado para o Médio Oriente, onde, para se adaptar ao calor e aos costumes locais, trocou o abafado fato de três peças por uma confortáve­l jelaba.

Caminhos desbravado­s com trabalho e custo, é certo, a que não faltou como sempre o acaso e uma pontinha de sorte, a fortuna que, entre o mais, colocou no seu caminho um benfeitor intelectua­l, o Sr. Junot, procurador do banco, o qual, vendo-o a ler o Ivanhoe nos intervalos do serviço, o orientou nas leituras e lhe instilou esse hábito, emprestand­o-lhe livros atrás de livros, que Modesto devorava: “Foi meu mentor literário dos 13 até aos meus 20 e poucos anos, altura em

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