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que atingiu o limite de idade. Reformado, faleceu pouco depois. Creio que não estarei muito longe da verdade se afirmar que nos dez anos daquela contínua e valiosa relação li, uns atrás dos outros, quase tantos livros como os que daí em diante me passaram pelas mãos, isto apesar de continuar a ser um dos meus maiores prazeres, a par da música…”
Atingidos os 18 anos em Fevereiro de 1949, Modesto passou automaticamente para os quadros do “pessoal maior”, onde brilhou como dactilógrafo, carreira que jamais abandonou, pese começar na altura, inícios dos Anos 50, a aventurar-se na música, primeiro como produtor e locutor de um programa semanal, o Placard Musical, gravado na Rádio Ribatejo, em Santarém, a par de actuações amadoras pelas colectividades de Lisboa, com realce para Os Económicos, no Bairro do Rego, perto de onde morava. Em Janeiro de 1954, um amigo encontrado na rua diz-lhe que tinha acabado de prestar provas na Emissora, para cantar nos Serões para Trabalhadores, desafiando-o a ir também. Modesto aceitou o repto, foi comprar duas pautas à Sassetti, na Rua do Carmo, uma deYves Montand, outra de Rui de Mascarenhas, e pediu ajuda nos ensaios a uma pianista sua vizinha. Em Fevereiro, ficou aprovado nas provas, perguntaram-lhe se tinha um nome artístico. Lembrou-se de Paulo Alexandre por um motivo singelo: tinha-se casado em 1953, e a mulher estava grávida, pensando o casal em Maria Leonor, se fosse menina, ou em Paulo Alexandre, caso rapaz. Assim nascia uma estrela.
Pouco depois, em Março, foi convocado para o ensaio e gravação do programa Ouvindo as Estrelas, onde conheceu Luís Piçarra, que logo lhe ofereceu mais trabalhos, e o inolvidável Tavares Belo, um dos muitos maestros com quem teve a ventura de actuar, como Humberto Batalha,Wolmar Silva, Belo Marques, Alves Coelho, Joaquim Luiz Gomes ou Nóbrega e Sousa (este, futuro autor de Sobe, Sobe, Balão Sobe, cantado por Manuela Bravo). De referir, pois merece ser referido, que um dos trabalhos oferecidos por Piçarra diz tudo sobre uma época: actuar num espectáculo organizado pelos finalistas da Faculdade de Ciências, no Cinema Império, precedendo a exibição do filme O Fio da Navalha. Além de Paulo Alexandre e de Luís Piçarra, actuaram Maria de Lurdes Resende e Rui de Mascarenhas.
Não muito depois, em Abril de 1954, Alexandre foi uma das vozes estreantes do efémero Sexteto Sol Maior, surgido da junção do já existente trio feminino As Três Marias (Maria Madalena e Maria Margarida, do Porto, e Maria FernandaWolmar, de Lisboa) com o tenor Améribiente co Lima e Rui de Mascarenhas.
Em 1957, o maestro Belo Marques ofereceu-lhe o seu primeiro original, a canção Campanários de Lisboa, e, nesse mesmo ano, Paulo Alexandre gravou pela DECCA o seu primeiro disco, todo dedicado à capital, como se vê: Campanários de Lisboa, Lisboa Nova, Miradouros de Lisboa O Gaiato de Lisboa.
Com Américo Lima, Nuno d’Almeida e Fernando La Rua formou o conjunto vocal 4 Espadas, que viu a luz em 4 de Fevereiro de 1958 e, de imediato, se converteu num dos mais populares grupos do seu tempo, com actuações no Casino Estoril, no Teatro Stephens, da Marinha Grande, na RTP, no Cinema Império, no Concurso Miss Portugal (no Pavilhão dos Desportos), etc., etc.
Alexandre manteve em paralelo uma carreira a solo, sendo contratado para actuar no Casino do Estoril e no Terraço das Estrelas do Hotel Embaixador, e participando na primeira comédia musical levada à cena no Teatro Monumental, por iniciativa de Vasco Morgado: Margarida da Rua, versão portuguesa, da autoria de Armando Cortez, do grande sucesso do teatro musicado francês Irma, La Douce, original de Alexandre Breffort com música de Marguerite Monnot, mais tarde adaptado ao cinema por Billy Wilder, com Jack Lemon e Shirley MacLaine nos principais papéis. A versão lusitana contava com Laura Alves, João Villaret (substituído, por doença, nas vésperas da estreia), Paulo Renato, Rui de Carvalho e os estreantes Morais e Castro e Rui Mendes.
Seguiram-se outras peças (por ex., Boa Noite, Bettina, de 1961), uma actuação do 4 de Espadas ao lado de Louis Armstrong (Cinema Monumental, Março de 1961), a participação na opereta Romance na Serra (de 1962, onde fez o par romântico com Alice Amaro), a conquista do Óscar da Imprensa, em 1963, e o music-hall Ouvindo as Estrelas, que assinalou, para Paulo Alexandre, uma interrupção da sua carreira musical durante 12 anos, por incompatibilidade com as responsabilidades crescentes que ia acumulando na sua vida-outra, a de bancário.
Ainda assim, vemo-lo ligado ao lançamento, em 1965, da histórica boate O Calhambeque, que a par de uma aprazível pista de dança tinha também, imagine-se, uma fantástica “pista minicar” que mimetizava o Circuito de Le Mans. Em 1969, o estabelecimento seria rebaptizado O Calhambeque/Beat Club e, caso não saibam, ficava na Conde Sabugosa, n.º 11, especializando-se em “êxitos anglo-saxónicos.” Dali foram transmitidos, pela RTP, muitos programas musicais, um dos quais com a participação de um conjunto de fama internacional, The Foundations. A par de A Lareira, na Praça das Águas Livres,
eda Ronda, do Palm Beach e doVan Gogo, na Linha, do Caruncho, ao Lumiar, do Porão da Nau, ao Saldanha, do Caixote, do Pop Clube (mais tarde, Primorosa de Alvalade), do Relógio (mais tarde, Stones) e do Ad-Lib, o Calhambeque foi uma das primeiras e mais míticas boates da noite lisboeta. Ao vermos fotografias do seu interior, interrogamo-nos como foi possível destruir um património sentimental daqueles, que hoje faria as delícias de saudosistas, turistas e cidadãos em geral. Que barbaridade.
À semelhança da boate que fundou, Paulo Alexandre integra o património sentimental nacional, sobretudo quando, já no pós-Revolução, retomou a sua carreira artística e musical. Não sabemos responder à pergunta célebre sobre onde estava no 25 de Abril, mas sabemos, porque ele o conta, que sofreu um pedaço com a nacionalização da banca e com o que eufemisticamente chama “os atropelos inerentes.” Os directores, como ele, eram considerados “lacaios do capital” e, em conformidade, tiveram os vencimentos reduzidos ao ordenado-base da tabela salarial, ao qual era aplicado um “moralizador” suplementar, o que implicava uma redução de mais de 50% do salário. Talvez por isso, Alexandre – ou melhor dito, Modesto – aceitou o convite para integrar a administração do IAPMEI, em representação do Ministério das Finanças. Não aqueceu o lugar e, em Janeiro de 1976, apresentou demissão.
Agora, uma história linda, desconcertante, comprovativa de que a vida dá muita volta e que, apesar de ser uma palavra difícil de pronunciar, a serendipidade existe e acontece: em Outubro de 1976, andava Modesto pela Alemanha, mais propriamente Estugarda, em andanças da sua profissão de bancário, quando, terminado o dia de trabalho, decidiu ir a uma cervejaria local, na companhia de Manuel Mexia e Carlos Suarez, do Forex espanhol. Die Gartenlaube era uma cervejaria-jardim, com um am
e uma decoração aprazíveis e uma juke-box à entrada. Minutos depois, alguém pôs a tocar uma música de cariz grego, cantada em alemão, que deixou Modesto – ou melhor dito, Paulo Alexandre – verdadeiramente abismado. Tratava-se de GriechischerWein, de 1974, interpretada pelo cantor austríaco Udo Jürgens, que a escreveu em 1972, depois de passar umas merecidas férias na Ilha de Rodes, e cujas primeiras estrofes, como todos sabem, garantem que:
Es war schon dunkel
Als ich durchVorstadtstraßen heimwärts ging
Da war einWirtshaus
Aus dem das Licht noch auf den Gehsteig schien Ich hatte Zeit und mir war kalt, drum trat ich ein
Da saßen Männer mit braunen Augen und mit schwarzem Haar Und aus der Jukebox erklang Musik
Die fremd und südlich war Als man mich sah
Stand einer auf und lud mich ein
E o refrão, inesquecível:
Griechischer Wein ist
So wie das Blut der Erde Komm’, schenk dir ein Und wenn ich dann traurig werde Liegt es daran
Dass ich immer träume von daheim
Du musst verzeihen.