A arte de respeitar a luz
Barbet Schroeder, cineasta, encontra Ricardo Cavallo, pintor: o resultado é um belo documentário, Ricardo e a Pintura, que faz também o retrato de uma longa amizade. Ao telefone, conversando com o DN, Schroeder ajuda-nos a redescobrir a energia dos olhare
Chegou às salas o novo documentário de Barbet Schroeder, Ricardo e a Pintura, sobre o pintor Ricardo Cavallo.Vale a pena sublinhar a lógica do título: não se trata apenas de um filme sobre a pintura de Ricardo, mas sim sobre Ricardo “e” a pintura, as suas relações com a pintura e, em particular, o trabalho de alguns mestres venerados, como Vélazquez ou Monet. Hoje mesmo, em Lisboa, no Cinema Nimas (sessão das 21.30), tais relações serão tema de um encontro com os pintores e professores Manuel San Payo e Luís Brilhante.
Numa conversa telefónica com Schroeder, a responder da sua casa na Suíça, o cineasta falou-nos da paixão que leva o seu amigo argentino a pintar quadros de grande dimensão, ligando-a ao facto de Ricardo ter começado a viver em França em pequenos quartos alugados, tradicionalmente destinados a empregadas domésticas: “Creio que há uma pulsão que o leva a querer fazer grandes frescos, não ficando limitado à dimensão de alguns espaços em que viveu. Em minha casa tenho um exemplo com 2 metros por 12, uma verdadeira manifestação de amor pela pintura que provem, precisamente, da tradição dos frescos – é, assim, o quadro de Ricardo que tenho à minha frente: a cidade de Paris vista a partir do quarto de criada em que ele viveu e trabalhou.”
Daí a conjuntura feliz em que o filme nasceu. Perto do final, Schroeder diz mesmo que seria bom “continuar esta felicidade de estar com Ricardo”, observando e avaliando os poderes e enigmas do gesto pictórico: “Mantemos uma relação de amizade há uns bons 40 anos e nunca existiu qualquer problema entre nós – para mim, é apaixonante ouvi-lo e acredito que o nosso diálogo pode ser uma descoberta para mim e para ele.”
Como nasce um filme?
Vendo o modo como Ricardo observa (e pinta) os elementos da natureza, podemos ser levados a pensar nos filmes “psicadélicos” de Schroeder, no começo da sua carreira, com música dos Pink Floyd: More (1969) e La Vallée / O Vale dos Perdidos (1972). É uma sugestão que fica, mas em que o próprio Schroeder não se reconhece – para ele, não há equivalente ao encontro (filmado) com Ricardo.
Ainda assim, nada disso exclui uma muito particular relação com os objetos, cores e volumes da natureza: “A pintura de Ricardo é aquilo que habitualmente se chama ‘pintura ao ar livre’. Ele não é o tipo de pintor que faça quadros fantásticos, totalmente inventados, que não tenham como base alguma realidade.”
O que, entenda-se, ajuda a compreender a cumplicidade entre pintor e cineasta: “Para mim, o cinema existe um pouco como essa ‘pintura ao ar livre’, uma vez que filmamos a realidade que está à nossa frente – o que, bem entendido, não deixa de autorizar muitas modificações em relação ao que estamos a observar. O documentário é o género cinematográfico em que devemos respeitar aquilo que filmamos.”
Que significa, então, filmar? Como nasce um filme? “Quando me sinto fascinado por um assunto, uma personagem, um país, uma casa, um cenário, quero acima de tudo dar conta daquilo que me toca. Ou seja: para mim, há sempre qualquer coisa de verdadeiro que quero partilhar. Há muitos que inventam muitas coisas, enquanto eu procuro, acima de tudo, respeitar o que tenho perante mim.” Pode dar-nos um exemplo? “Sim, a luz.”
Para Schroeder, tudo isso envolve um misto de programação e surpresa. Exatamente como Ricardo, partindo para um quadro sem estar seguro daquilo que pode acontecer no ato de pintar: “Um escritor que começa a escrever um livro, um músico que começa a compor uma música, não sabe o que vai encontrar ao longo do seu caminho – o processo criativo é sempre uma descoberta.”
A herança de Picasso
Ricardo e a Pintura não é, por isso, um filme sobre a pintura como um dado adquirido, supostamente organizado em datas, movimentos e listas unívocas e definitivas. Ricardo assume cada quadro como um labor em aberto, pontuado por formas obsessivas de procura – observe-se o que acontece nas suas idas regulares à mesma zona rochosa junto ao mar.
Tal como Schroeder sublinha, ele é um pintor que não estagnou na relação com a própria história da pintura. Por exemplo, no reconhecimento da importância da aventura cubista: “Falámos dos grandes pintores que todos conhecem e admiram, mas ao mesmo tempo há muita gente que suspende essa admiração ainda antes de Picasso, não passando para lá do Impressionismo. Para essas pessoas, tudo o que aconteceu depois quase não tem importância. Ora, para Ricardo, bem pelo contrário, Picasso e o cubismo são de uma importância enorme.”
Ironicamente ou não, parece haver no cinema uma tendência (ou um preconceito) semelhante naqueles que consideram as NovasVagas, e todas as suas experimentações, como o fim do próprio cinema. Schroeder faz questão de corrigir semelhante asserção: “Há quem tenha dito que o cinema morreu antes das NovasVagas.” A sua visão, além de diferente, é incomparavelmente mais otimista: “Para mim, a NovaVaga é algo que continua a acontecer neste momento, com gente inspirada que faz filmes muito originais – para mim, a Nova Vaga é qualquer coisa de permanente, e de permanente renovação.”
Curiosamente, esse otimismo faz com que não manifeste qualquer resistência a uma evolução técnica que aconteceu nas últimas décadas, um pouco por toda a parte, em especial no domínio documental: a passagem das câmaras de 16 mm para as novas máquinas digitais. O que, por fim, nos conduz a uma questão a que alguns cineastas, por alheamento ou cinismo, evitam responder. A saber: será que há algum filme recente que ele possa citar e seja sintoma dessa energia? Depois de uma muito breve reflexão, Schroeder não hesita: “A Zona de Interesse, de Jonathan Glazer.”