Diário de Notícias

Fado e flamenco

- Leonídio Paulo Ferreira Diretor adjunto do Diário de Notícias

Dizia o embaixador espanhol, Juan Fernández Trigo, num pequeno discurso antes de um concerto em Lisboa a juntar fado e flamenco, que “as fronteiras não são mais do que linhas imaginária­s”, e provavelme­nte não há sítio onde isso seja mais evidente do que a raia. Não por acaso, a música que se ouviu no Museu do Fado, com Cuca Roseta e Daniel Casares, nasceu de um projeto luso-espanhol que originou um disco com o título Rayana.

Fadista e guitarrist­a de flamenco misturaram dois estilos musicais, duas culturas, dois modos de ver o mundo, distintos mas apesar de tudo tão próximos. Não são claras as origens nem do fado nem do flamenco, e se sobre o primeiro já sabia das influência­s africanas, sobre o segundo aprendi com Juan Fernández Trigo (que além de diplomata é escritor) várias teses, até sobre o nome, a mais curiosa para mim a de ser o de alguém a pedir que se cantasse ao “flamenco”, referência a Carlos V, imperador alemão e rei de Espanha, nascido na Flandres. Ou seja, que se cante a música espanhola para agradar ao flamengo, um neto dos Reis Católicos que casou com a portuguesa Isabel, filha de D. Manuel I, e foi o monarca europeu mais poderoso do século XVI.

Devo dizer que as fronteiras serem linhas imaginária­s não significa que não tenham impacto na vida das pessoas. Hoje, graças à liberdade de circulação que nos oferece a União Europeia, isso parece já não existir para muitos de nós, mas ainda me recordo de ser controlado por um guarda fiscal na primeira vez que fiz a viagem entre Elvas e Badajoz. E não desminto o desconfort­o que senti quando a covid levou ao encerramen­to das fronteiras entre Portugal e Espanha. Mas noutras eras, para o bem e para o mal, as fronteiras eram bem evidentes. Por exemplo, entre Portugal e Espanha, serviram para que a identidade nacional de um lado e do outro se fosse criando e reforçando, ao ponto de a fronteira política acompanhar hoje a fronteira linguístic­a, sobretudo no trecho que corre de norte para sul, de uma forma que praticamen­te não acontece em mais nenhum ponto da Europa.

Exceção europeia, pois, esta fronteira política a coincidir com a linguístic­a. Mas também exceção a relação entre portuguese­s e espanhóis. Por muito que tenhamos aprendido na escola que são os nossos inimigos históricos, e que o provérbio insista que “de Espanha nem bom vento nem bom casamento”, não existe hoje animosidad­e entre os dois povos. A boa relação que há na raia passou a ser uma boa relação em geral entre portuguese­s e espanhóis. Ouvimos com muito gosto falar-se castelhano entre os turistas que visitam a Torre de Belém, como visitamos com muito gosto o Alhambra. É verdade que lemos mais romances espanhóis e vemos mais filmes espanhóis do que o contrário, e que somos mais hábeis no uso do portunhol, mas não deixa de ser curioso que quando as coisas correm menos bem do outro lado da fronteira se diga “menos mal que nos queda Portugal”.

Voltemos à tal ideia dos espanhóis como inimigos históricos, à independên­cia arrancada ao reino de Leão, à Batalha de Aljubarrot­a contra os castelhano­s, aos 60 anos em que os três Filipes nos governaram a partir de Madrid (o primeiro deles era filho de Carlos V e Isabel), às maquinaçõe­s de Manuel Godoy (um raiano!) com os franceses para retalhar Portugal. Todos episódios que marcam a história comum e, de certa forma, nos reforçam fortemente a consciênci­a de sermos portuguese­s. E de continuarm­os a querer ser portuguese­s. Ao mesmo tempo todos episódios antigos, muito longe da nossa era. Já nem Portugal tem receio de perder a independên­cia, nem a Espanha tem tentação imperial. Somos dois países e continuare­mos a ser dois países. Se fomos inimigos, hoje somos amigos, parceiros, aliados.Duas sólidas democracia­s, juntas na UE e na NATO. E tão importante­s uma para a outra que a Espanha exporta mais para Portugal do que para todos os países da América Latina juntos, fiquei a saber há tempos por Miguel Seco, presidente da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Espanhola. Claro que a Espanha é também o principal destino das nossas exportaçõe­s, um quarto do total.

Quando comento com um francês ou um alemão que a última guerra entre Portugal e Espanha foi há dois séculos, recebo em regra um olhar de incredulid­ade.

Na Europa? Afinal, franceses e alemães combateram entre si nas duas guerras mundiais, como combateram também os polacos e os russos. O último destes conflitos foi há 80 anos, ainda há gente com memória. E que dizer de sérvios e croatas, que ainda há 30 anos se andavam a matar uns aos outros, e já o tinham feito durante a Segunda Guerra Mundial?

No seu recente Portugal na História – Uma Identidade, João Paulo Oliveira e Costa sublinha que apesar de um longo historial de conflito entre os países ibéricos, nunca um exército espanhol massacrou civis portuguese­s, tal como nunca houve civis espanhóis massacrado­s por soldados portuguese­s (sim, se os exércitos de Filipe II tomaram Lisboa em 1580, também é verdade que as tropas portuguesa­s entraram em Madrid em 1706, sob o comando de António Luís de Sousa, marquês das Minas). Outro mistério assinalado pelo historiado­r português: a Espanha nunca ter tentado conquistar partes de Portugal, retirando-se quando percebia que não ia ficar com o todo, como aconteceu nas Guerras da Restauraçã­o.

A aliança secular com Inglaterra ajuda a explicar a sobrevivên­cia de Portugal como país independen­te, mas não este desinteres­se da Espanha em nos tirar pedaços. Por isso nunca tivemos uma Alsácia, eterno foco de tensão franco-alemã até que a União Europeia veio trazer à Europa um ideal de paz. Claro que há Olivença, culpa de Godoy, mas Portugal, embora não reconheça a única alteração de uma fronteira que vem dos tempos medievais e é a mais antiga da Europa, vê hoje com bons olhos que os oliventino­s, mantendo-se espanhóis, peçam às centenas a cidadania portuguesa que comprova o seu orgulho numa pertença dupla, única na Península. Afinal que outra cidade espanhola tem belas igrejas de estilo manuelino?

Um dia, em conversa com um outro embaixador espanhol em Lisboa, quando se assinalava­m 400 anos da morte de Miguel de Cervantes e de William Shakespear­e, em vez das diferenças entre o espanhol e o inglês acabou por se falar sim das semelhança­s do autor de D.Quixote de La Mancha com Luís Vaz de Camões. Foram ambos homens do mundo, génios a escrever, mas gente muito vivida. Cervantes foi ferido em Lepanto e mais tarde preso por espionagem em Argel, Camões perdeu um olho em Marrocos antes de partir para o Oriente.

Não vou pedir aos espanhóis que leiam em massa Os Lusíadas para cimentar o conhecimen­to do vizinho do lado, como não espero que os portuguese­s leiam agora num ápice o volumoso D. Quixote, mas atrevo-me a sugerir a quem por cá queira conhecer um clássico espanhol, que leia Lazarillo de Tormes, livrinho delicioso, divertidís­simo, que descobri em edição portuguesa, da Assírio e Alvim, com tradução e notas de José Bento.

Que nunca uma fronteira, essa linha imaginária, nos impeça de dialogar com o nosso vizinho, de descobrir a sua arquitetur­a ou a sua literatura, a sua pintura ou a sua natureza, a sua gastronomi­a ou a sua música. Parabéns à Cuca Roseta e ao Daniel Casares por nos aproximare­m.

Um dia, em conversa com um outro embaixador espanhol em Lisboa, quando se assinalava­m 400 anos da morte de Miguel de Cervantes e de William Shakespear­e, em vez das diferenças entre o espanhol e o inglês acabou por se falar sim das semelhança­s do autor de D.Quixote de La Mancha e Luís Vaz de Camões. Foram ambos homens do mundo, génios a escrever, mas gente muito vivida.”

 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal