Diário de Notícias

Humanismo, segurança e o que queremos ser como país

- Valentina Marcelino Diretora adjunta do Diário de Notícias

Por cada dia que passa são registadas, em média, na Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) mais de 500 novas manifestaç­ões de interesse de imigrantes que querem uma autorizaçã­o de residência no nosso país, que lhes também abre portas ao espaço europeu. Entre o último balanço feito de processos pendentes pelo então Serviço de Estrangeir­os e Fronteiras (SEF), na véspera da sua extinção, em outubro de 2023, segundo o qual esse número era de perto de 300 mil, e o mais recente em maio, pelo atual Governo, de 400 mil, passaram 201 dias.

Neste espaço de tempo entraram mais de 100 mil manifestaç­ões de interesse na AIMA, sem que houvesse qualquer medida para regular este fluxo. Apesar de vários novos tipos de visto para um controlo da migração na origem, foi mantida a legislação que permite uma regulariza­ção a título excecional com base em promessas de contrato de trabalho e sem exigência de entrada legal no país (pode ser equiparada a descontos de um ano na Segurança Social).

Esta foi uma herança pesada que o Governo socialista deixou a Luís Montenegro. Não foi por falta de avisos acerca dos riscos que se corria com políticas públicas bem-intenciona­das de cativarmos estrangeir­os para preencher as faltas de mão de obra, sem planos de integração sólidos.

Os resultados estão sobejament­e noticiados, debatidos e na agenda da campanha para as eleições europeias. A incapacida­de do Estado, que começa logo no caótico atendiment­o da AIMA (o tal “omnicanal” e “digital” para respostas mais rápidas tão promovido ainda no tempo da ministra Ana Catarina Mendes é ainda uma ilusão), passa pela total inépcia em conseguir acolher e integrar os milhares de imigrantes que estão à espera da sua situação documental resolvida, muitos deles a viver em tendas nas ruas, e tem o seu mais grave efeito em um dos mais deplorávei­s retratos que um país pode apresentar: a perseguiçã­o e agressões a imigrantes por xenofobia e racismo.

Depois da violência contra os cidadãos argelinos que pagaram, em jeito de vingança, por atos de outros imigrantes que, alegadamen­te, teriam estado envolvidos em crimes, nesta semana ficámos a saber que um menino nepalês de nove anos tinha sido agredido por colegas da escola.

A revelação foi feita pela diretora do Centro Padre Alves Correia (CEPAC) que denunciou à revista Visão a forma lamentável como o caso foi tratado pela escola, dado que a ocorrência de violência não foi denunciada. “[A escola] pôs o enfoque em serem crianças, não poderem valorizar estes comportame­ntos e que tinha sido uma situação isolada”, disse Ana Mansoa. O menino, que vive com os seus pais em Portugal, há dois anos, ficou com hematomas por todo o corpo e teve medo de ir ao hospital. Repito: teve medo de ir ao hospital.

Chegados a este ponto, se nada for feito, o risco de casos como estes se repetirem pode ainda agravar-se. Seria um sinal positivo, por exemplo, endurecer as penas para os crimes com motivação xenófoba e racista.

Mas, de imediato, é preciso tratar dos tais 400 mil pedidos. E enquanto isso não estiver concluído, não se devia aceitar mais manifestaç­ões de interesse, para não fazer crescer o problema ou criar falsas expectativ­as.

Não querendo com isto dizer que se vão regulariza­r todos estes quase meio milhão de pedidos, pois é sabido que boa parte não consegue apresentar todos os documentos em ordem. De qualquer forma, todos os processos têm de ser analisados com justiça e à luz da lei por funcionári­os competente­s. São vidas que estão em causa e algumas delas já vivem e trabalham no nosso país e estão em vias integração.

O ministro da Presidênci­a, António Leitão Amaro, que ficou com esta tutela e a mais alta responsabi­lidade no tema, já prometeu apresentar “em breve” um plano para enfrentar esta problemáti­ca. A apreensão é grande e está essencialm­ente centrada na AIMA, que se viu a braços com um pesadelo para o qual ninguém a preparou – da exclusiva responsabi­lidade do Governo que a criou.

Além da situação com os imigrantes, também os data centers com as bases de dados para a segurança das fronteiras, da sua responsabi­lidade, colapsaram mais que uma vez na última semana, obrigando os polícias nos aeroportos a ter de verificar os passaporte­s manualment­e.

Não é só a desejável integração que fica em causa, pela forma como estão a ser tratados os imigrantes, mas também a nossa segurança e a do espaço global da União Europeia. O contexto é grave, quase de “guerra”. O verão está à porta e, mais uma vez, os turistas vão chegar aos milhares e poderão deparar com filas intermináv­eis nas fronteiras, produzindo um rude golpe na nossa “galinha dos ovos de ouro”: o turismo.

Já aqui escrevi sobre a criação de uma task force. Não sei se está no “plano” de Leitão Amaro, mas deixo pelo menos a sugestão de que a ministra da Justiça, Rita Júdice, seja envolvida. O ex-ministro da Administra­ção Interna José Luís Carneiro conseguiu uma transferên­cia sem polémicas dos inspetores do SEF para a Polícia Judiciária (PJ), com o apoio desta tutela. É também a PJ que está a apoiar os profission­ais da PSP e da GNR nas fronteiras. Qualquer solução pode passar por Rita Júdice, sendo capaz de ser a chave para a solução do problema.

Depois de se interrompe­r provisoria­mente novas manifestaç­ões de interesse até se resolverem os processos pendentes, a task force dedicar-se-ia a concluir os processos pendentes. No Estado, incluindo nas polícias, há quem se disponha a trabalhar 24 sobre 24 horas para salvar vidas. Aqui, além de vidas, é uma questão de humanidade, de soberania e do que queremos ser como país.

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