Diário de Notícias

A geometria do amor

As singularid­ades da produção cinematogr­áfica islandesa voltaram a marcar o programa de Cannes: When the Light Breaks, escrito e dirigido por Rúnar Rúnarsson, foi a surpresa de abertura da secção Un Certain Regard.

- TEXTO JOÃO LOPES

Como bem sabemos, as canções de Björk estão longe de esgotar a vida artística da Islândia. Mesmo ficando pelos cruzamento­s da música com o cinema, lembremos que nos Óscares referentes à produção de 2020 foi a islandesa Hildur Guðnadótti­r quem arrebatou o prémio de melhor banda sonora graças à sua partitura para o filme Joker, de Todd Phillips. Pois bem, em Cannes, os islandeses continuam a desafiar a nossa perceção do mundo – assim acontece nesse filme intrigante e envolvente que é When the Light Breaks, escolhido para a abertura oficial da secção Un Certain Regard.

Vale a pena lembrar que Un Certain Regard (à letra: “Um certo olhar”) integra a seleção oficial, com um júri e um palmarés autónomos. Como recordou Thierry Frémaux, delegado geral do festival, trata-se de dar a ver experiênci­as de cineastas mais jovens ou produções provenient­es de zonas geográfica­s menos conhecidas, sobretudo nos mercados europeus.

Escrito e dirigido por Rúnar Rúnarsson (nascido em Reiquiaviq­ue, em 1977), When the Light Breaks apresenta-se como uma variação sobre um modelo clássico de “triângulo amoroso”, ainda que com um desenvolvi­mento, no mínimo, insólito. Apesar das diferenças, alguns espectador­es poderão ser levados a recordar As Coisas daVida, de Claude Sautet, com Romy Schneider e Michel Piccoli, um fenómeno de popularida­de com mais de meio século (lançado em 1970).

When the Light Breaks tem qualquer coisa de descrição geométrica do amor. Assim, no centro do triângulo está a personagem de Una (Elín Hall, admirável atriz) que, na cena inicial, recebe do amante Diddi (Baldur Einarsson) a certeza de que, no dia seguinte, ele vai por um ponto final na sua vida com Klara (Katla Njálsdótti­r)… Ao viajar para se encontrar com Klara, Diddi morre num acidente num túnel. Que acontece, então? Como diz Una ao único amigo que sabe da sua relação com Diddi, toda a gente está a dar os pêsames a Klara, mas é ela a protagonis­ta do luto mais radical.

Não é fácil resumir o que se segue, quanto mais não seja porque vai nascendo dos altos e baixos do diálogo entre Una e Klara, a ponto de ambas se sentirem tocadas pela “luz” que emanava de Diddi (simbolismo a que o título internacio­nal alude). Não sendo estranha aos elementos paisagísti­cos, essa “iluminação” vai tendendo para algo de imponderáv­el, quase místico, tanto mais desconcert­ante quanto contrasta com a secura realista de muitas cenas (em particular as que refletem hábitos de intenso consumo de bebidas alcoólicas). Em resumo: podia ser uma “intriga” de telenovela, mas When the Light Breaks impõe-se como um singular objeto de cinema.

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Elín Hall: histórias que nos chegam das paisagens islandesas.

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