No século XVII, a humanidade aproximou-se do “olho vermelho” do sistema solar
Os séculos XVII e XVIII foram de espanto face ao firmamento. O mundo celeste compunha-se de novos astros, o telescópio aproximou o olho humano dos mistérios antes insondáveis do universo. Um deles, a Mancha Vermelha de Júpiter, desde logo apropriada pela arte e ficção.
Membro da Academia Arcádia, sociedade literária fundada em Roma no século XVII, Aci Delpusiano compôs um corpo de poemas intitulado Per Monaca (Para a Freira) endereçados a Giulia Caterina Vandi, uma jovem em clausura eclesiástica. Delpusiano perdera-se de amores pela rapariga nascida em Bolonha. Fora dos meios literários, Aci respondia pelo seu nome de batismo, Eustachio Manfredi, nascido em 1674, matemático e astrónomo influente no seu tempo. A ele deve-se a descoberta de corpos celestes, como o cometa C/1707 W1, também a demonstração da revolução da Terra em torno do Sol. No início do século XVIII, o astrónomo recebeu o contacto do conterrâneo Donato Creti. O pintor bolonhês do período Rococó trabalhava então numa série de painéis que, a pretexto de cenas bucólicas, apresentava aos olhos humanos alguns dos corpos celestes até então descobertos. Face ao espetador postavam-se na tela, artificialmente ampliados e iluminados, a Lua, o Sol, um cometa e os cinco planetas conhecidos na época: Mercúrio, Vénus, Marte, Júpiter e Saturno. Nas oito telas às quais emprestou o seu talento, Donato Ceti quis aplicar rigor astronómico. Eustachio Manfredi levou à obra do pintor a precisão que este procurava. De entre as pinturas encomendadas em 1711 pelo conde bolonhês Luigi Marsili, cientista e militar, uma expõe aquele que se afigurava como um dos grandes mistérios celestes da época. Cristalino e enorme, surge na noite o planeta Júpiter. Nele, é pela primeira vez representada na arte a Grande Mancha Vermelha.
Acima da superfície de Júpiter uma tempestade anticiclónica agita-se em tons de vermelho, corre em sentido anti-horário, numa evolução correspondente a seis dias terrestres (14 dias jupiterianos) e estende-se por mais de 16.000 quilómetros, uma vez e um terço o diâmetro da Terra. Ali, estima-se, os ventos sopram a mais de 400 Km/h. Nas últimas décadas a Grande Mancha Vermelha aproximou-se dos olhos da humanidade graças a missões espaciais como a Voyager 1 e a Juno. Não obstante os avanços no conhecimento da atmosfera de Júpiter aquela que é a maior tempestade do sistema solar fruto de um campo de altas pressões, mantém-se como um mistério. No século XVIII, para Donato Creti ao serviço de Marsili, aquele ponto encarnado pincelado a óleo sobre tela representava mais do que um mistério. A par das restantes telas, Júpiter destinava-se às mãos do Papa Clemente XI e levava uma mensagem: a necessidade de os estados pontifícios patrocinarem a construção de um observatório astronómico. O céu ampliava as maravilhas da Terra. Quando no início do século de setecentos, Clemente XI descansou os olhos no longínquo Júpiter e lhe anteviu a mancha aparentemente estática, a singularidade jupiteriana já trazia uma história de décadas aos olhos de cientistas de diferentes geografias.
Em maio de 1664, os olhos incansáveis do cientista inglês Robert Hooke observaram ao longo de duas horas a evolução de uma mancha na superfície de Júpiter. Hooke reiterava uma observação anterior, datada de 1655 e apontava-a no hemisfério norte do gigante gasoso. Na realidade, a Grande Mancha de Júpiter agita-se no hemisfério sul do planeta, 22 graus a sul da linha do equador. A observação de Hooke padecia de um enviesamento do olho telescópico. O cientista britânico poderá ter observado uma outra mancha a bailar na atmosfera do planeta ou mesmo a sombra refletida do trânsito da lua Calisto em redor do corpo celeste. Robert Hooke juntava as observações de Júpiter ao seu imenso rol de achados para a ciência do século XVII, da formulação da teoria do movimento planetário, à descrição da estrutura celular da cortiça ou mesmo a invenção do relógio portátil de corda. No seu livro Micrographia, de 1655, Hooke apresenta ao leitor uma ilustração das Plêiades, grupo de estrelas da constelação de Touro, traça com pormenor as crateras lunares e observa com precisão os anéis de Saturno. Robert Hooke entrega, ainda, como testemunho ao astrónomo genovês Giovanni Cassini a curiosidade sobre a mancha na superfície de Júpiter. Em 1665, Cassini refere “um ponto permanente” observável no quinto planeta do sistema solar. Nos anos subsequentes, até 1713, a mancha foi observável. Não há consenso na comunidade científica sobre se a mancha de Hooke e Cassini é a grande mancha atualmente avistada em Júpiter. Como certo, tem-se que as observações iniciadas no século XIX correspondem à massa de tempestade atualmente em evolução. Em 1879, a Grande Mancha Vermelha foi observada e registada mais de 60 vezes. O inglês vitoriano Thomas Gwyn Elger, que dedicou a sua vida à selenografia (estudo da superfície da Lua), diretor da Secção Lunar da British Astronomical Association, esboçou sobre papel a mancha. Estávamos no ano de 1881. Uma ilustração que subtrai ao fenómeno na atmosfera de Júpiter a sua verdadeira grandeza e estranheza. O planeta gigante é um mundo ilustrativo do melhor da ficção científica. Um imenso oceano líquido de hidrogénio envolve o núcleo do corpo celeste. Tão vasto que comportaria 1300 planetas Terra. A atmosfera compõe-se, principalmente, de hidrogénio e hélio, entre outros elementos mais raros como metano, amoníaco, vapor de água e sulfureto de hidrogénio. No âmago da mancha vermelha, sobre cuja natureza da cor se especula, elevam-se nuvens oito mil metros acima das circundantes. Se por efeito dos avanços da tecnologia espacial nos fosse permitido mergulhar no coração da tempestade, perceber-lhe-íamos a dimensão vertical, estimada entre os 200 e os 500 quilómetros.
A segunda metade do século XX e XXI aproximou-nos de Júpiter. Fizemo-lo à boleia de duas missões da NASA. A 25 de fevereiro de 1979, a sonda espacial Voyager 1, atreveu-se a cerca de nove milhões de quilómetros do planeta gasoso. A Terra recebia então a primeira imagem detalhada da Grande Mancha de Júpiter. Em 2016, a sonda Juno (acrónimo de Jupiter Near-polar Orbiter), inserida no Programa New Frontiers, da NASA, alcançou o planeta gasoso após cinco ano de viagem. Na sua aproximação a Júpiter, a 11 de julho de 2017, a sonda deslizou a apenas 8.000 quilómetros sobre a mancha. A imagem que recebemos é ilustrativa da tempestade em toda a sua glória. Uma grandeza que mingua. Estima-se que a extensão longitudinal da mancha há um século atingisse 40.000 quilómetros (três vezes o diâmetro da Terra). Em 2019, a tempestade iniciou um processo de “escamar” nos seus limites exteriores. Faixas da tempestade dissipavam-se. Nas décadas anteriores, nas proximidades da tempestade, uma nova mancha, a Oval BA, formava-se a partir de três ovais brancas. Aos poucos assumiu o tom avermelhado do gigante nas cercanias. Em 2006, parte da comunidade de astrónomos acreditava que as duas tempestades acabariam por se unir. Tal não sucedeu, Júpiter sabe manter-nos num limbo de expectativa.
Júpiter destinava-se às mãos do Papa Clemente XI e levava uma mensagem: a necessidade de os estados pontifícios patrocinarem a construção de um observatório astronómico.