Camille Laurens “Não suporto o que se diz da mulher do presidente Macron, por ser mais velha do que ele. Acho uma violência sexista”
Em Lisboa para apresentar o livro Fille (Menina) e amadrinhar o Choix Goncourt du Portugal, Camille Laurens falou ao DN dos desafios de nascer mulher no final dos Anos 50. A escritora francesa denuncia a discriminação na língua e saúda a evolução do femin
Veio a Lisboa para vários eventos, entre eles apresentar o seu livro
Fille (Menina). No final dos Anos 50, quando a sua personagem principal, tal como a própria Camille, nasceu, nascer menina era uma espécie de maldição – para a família e para a própria criança? Sim. Talvez não de forma geral, mas naquela família [pequena burguesia de Rouen, pai médico, mãe dona de casa], era uma espécie de maldição. E penso que é uma família bastante representativa daquela época, em que os pais queriam ter, pelo menos, um rapaz. Começa por uma deceção. Nascer rapariga significa nascer uma desilusão. Por isso, sim, pode ser considerado uma forma de maldição.
O pai costumava dizer…
Sim, quando lhe perguntavam se tinha filhos, ele respondia: “Não, tenho duas filhas.” Isto diz muito.
É um pouco como quando o bebé nascia e a parteira vinha dizer: “É menina.” Sentia-se uma espécie de desilusão?
Sim, sim. Sem dúvida. Uma espécie de desilusão e um arrependimento. Que, no caso do pai do livro, se repetiu três vezes, porque teve três filhas. E havia aquela frase que eu repito algumas vezes, quando ele dizia às pessoas que tinha uma filha, elas respondiam: “Também é bom”. Também. Não é o ideal, mas também serve. E a ideia era transformar a frase de “também é bom” para “é tão bom quanto”. Ainda continuo a trabalhar nisso Laurence Barraqué, a sua personagem principal, enfrenta vários tormentos no livro – o assédio de um tio quando era criança, aborto, a perda de um filho à nascença, que a Camille também viveu. É um livro, em parte, autobiográfico, mas não totalmente?
Não totalmente, mas bastante autobiográfico.
E foi mesmo acusada de forçar a nota quando fez a sua protagonista passarportodosaquelesepisódios. Sentiu que tinha de o fazer por muitas mulheres, na época, terem vivido situações semelhantes. Claro, eu em primeiro lugar. Um dia decidi fazer a lista de tudo o que me aconteceu de desagradável por ser rapariga. E posso dizer-lhe que não está tudo no livro. É incrível, coisas do quotidiano, mas também coisas mais extraordinárias e mais dramáticas. Portanto não forcei nada a nota. Podia ter contado muito mais. Essa críticas que recebeu são, elas próprias, o reflexo de uma sociedade ainda patriarcal?
Sem dúvida. Também recebi críticas de mulheres. Muitas mulheres integraram, interiorizaram este modelo patriarcal. E, sim, há essa ideia de que as mulheres se queixam demais, se fazem demasiado de vítimas. Por isso dizem que exagero, como se quisessem negar a existência dos problemas.
Isso vem confirmar aquela ideia de que as mulheres muitas vezes são o pior inimigo das mulheres?
É verdade que ainda acontece, mas menos. Começa a mudar. Há esta ideia de sororidade, que já existira nos Anos 70. Esta solidariedade entre mulheres, mesmo mulheres que não se conhecem, mas que sabem o que é e as dificuldades que pode trazer ser mulher. Têm uma espécie de comunicação quase sem precisar de palavras. Acho que isto existe cada vez mais. E também intergeracional, o que é emocionante. Quando escrevi Fille achei que ia interessar às mulheres da minha geração ou talvez da seguinte. Mas tive imensas leitoras muito jovens. Não é, de todo, a época delas, mas é a época das mães delas. Há essa curiosidade. E essa descoberta, por vezes. Uma mulher não podia passar um cheque em França em 1965? Não foi assim há tanto tempo, 1965! Mas houve todos esses avanços na condição da mulher.
E há aquela imagem dos mais jovens de que a mãe não é uma pessoa,nãoéumamulher,é“amãe”. Sim. E, de repente, descobrem que a mãe também foi uma menina, também é uma mulher. Quandoa“Menina”doseuromance tem ela própria uma menina, é obrigada a repensar as suas noções de feminino. Como é que a Camille vê a evolução do feminismo – dos Anos 70 com as lutas contra o aborto e a favor da contraceção até ao #MeToo hoje? Houve conquistas. O direito ao aborto, a contraceção, etc.. O que eu acho muito forte e eficaz no movimento #MeToo é que o verbo se libertou completamente. E que, apesar de haver armadilhas, essa mensagem é recebida, é mais recebida do que antes. Bom, há sempre exceções dramáticas, mas é como o famoso slogan das feministas “Je te crois”[Acredito em ti]. Quando uma mulher se queixa, diz que é vítima, não devemos dizer-lhe sistematicamente “não, não é verdade”, ou “não é grave”, como me disseram muitas vezes na minha família.
É a tendência para desvalorizar? Isso mesmo. “Não há nada”, “não é grave”. E também: “Os homens são assim, temos de aceitar.” Mas hoje em dia estamos quase no excesso inverso, é um pouco a tolerância zero. Já não se aceita nenhum desvio por parte dos homens.
O que também tem os seus perigos?
Sim, porque podemos cair no excesso inverso. E há as mulheres que mentem. Também não podemos dizer que as mulheres são perfeitas e dizem sempre a verdade. Há mulheres que se querem vingar. Mas o importante é que se parta do princípio de que tem de se ouvir a mulher – e depois decidir. Comodizia,osdireitosdasmulheres evoluíram muito, mas há uma coisa que pouco mudou: a língua, a maneira de falar, que continua discriminatória. E a Camille dá vários exemplos: “Corres como uma menina”, “faz-te homem”. Esse é um combate para a próxima geração?
Sim. Não sei se para a geração seguinte, mas é preciso ter cuidado com a maneira de falar, com as expressões. Porque é aí que se joga. Não podemos pensar que o que dizemos não é importante, que só importam os atos, a política, as leis. A linguagem corrente é muito importante. Há expressões que temos de banir do nosso vocabulário. Porque a língua é uma maneira de pensar.
Como escritora, alguém que trabalha com as palavras, tem essa preocupação?
Ah claro, constantemente. O meu trabalho é isso, é ter cuidado com a linguagem, com cada palavra, com cada significado, mesmo os significados escondidos, os duplos sentidos. É a minha paixão.
“Um dia decidi fazer a lista de tudo o que me aconteceu de desagradável por ser rapariga. E posso dizer-lhe que não está tudo no livro. É incrível, coisas do quotidiano, mas também coisas mais extraordinárias e mais dramáticas. Portanto não forcei nada a nota. Podia ter contado muito mais.”
Um exemplo que a Camille dá também é como ao longo dos tempos “garce”, que eram simplesmente o feminino de “garçon” passou a ser pejorativo. Nunca tinha pensado nisso.
Julgo que a maioria das pessoas não sabe isso. Porque no século XVI, uma “garce” era uma rapariga. E como é que evoluiu? “Garçon” nunca foi um insulto, mas “garce” tornou-se um insulto, porque o feminino desvaloriza imediatamente. E há toda uma lista de palavras que, no masculino ou no feminino não têm de todo o mesmo significado. Por exemplo “coureur” é alguém que corre, “coureuse” é uma mulher fácil, que engata homens. Um “maître” é um mestre, uma “maîtresse” é uma amante. Mesmo hoje em dia, as mulheres têm preocupações sociais que os homens não têm – se vamos à praia, o homem pega na toalha e vai, a mulher está preocupada com a depilação, se vai tirar uma foto, a mulher está preocupada com a maquilhagem. São imposições que ainda fazemos a nós próprias por pressão da sociedade?
É verdade, há sempre preocupações na cabeça das mulheres. E o que dizer da discriminação por causa da idade. Escrevi todo um livro sobre isso – Celle que Vous Croyez. Dizemos que os homens “amadurecem”, as mulheres “envelhecem”. Agora há uma corrente, da qual faço parte, de mulheres que decidiram assumir os seus cabelos brancos. Porque a um homem os cabelos brancos dão charme, com uma mulher de cabelos brancos vamos gozar. E devo dizer que, independentemente de qualquer questão política, não suporto tudo o que se diz da mulher do presidente Emmanuel Macron, por ser mais velha do que ele. Acho tudo aquilo de uma violência sexista. Não pode ser. Ao contrário, há inúmeros políticos que têm mulheres 30 anos mais novas do que eles e ninguém diz nada, toda a gente acha isso normal. É cansativo. Uma mulher depois dos 50 é vista como acabada, quase. Pelo menos em França é uma pressão violenta.
Mas acha que as coisas estão a começar a mudar? É verdade que olhamos para muitas atrizes de Hollywood com 50 ou 60 anos e continuam a parecer ter 30. Mas algumas começaram a aceitar os seus cabelos brancos. A ideia da beleza eterna, da estrela inalcançável acabou?
A imagem começa a mudar um pouco, sim. As atrizes envolvem-se, falam, têm um discurso mais feminista, muitas vezes. Tudo está a mudar, felizmente. Mas temos a carga mental do quotidiano que pesas obre as mulheres–o queéquev ou fazer para o jantar? É preciso ir buscar os miúdos,éprec isole vá-los às ati vida des.É verdade que o pai está mais presente nas novas gerações. Ocupam-se mais de algumas tarefas. Mas continua muito desigual. Porque acho que muitos jovens pais se envolvem nas brincadeiras, nas férias. Mas o dia a dia continua com as mães – as refeições, as idas ao dentista. A vida material continua muito feminizada. Para além do trabalho. Há uma imagem do pai um pouco mais lúdica do que a da mãe?
É isso. Amã eé quem diz“vem comer ”,“vai tomar banho ”,“vai dormir ”, opaiéo lazer, a liberdade, o riso. Há mais homens a participar na vida de família, mas continua limitado.
O poder, a política, continua a ser um mundo muito masculino. França nunca teve uma mulher presidente –teve duas que passaramà segunda volta: Ségolène Royal e Marine Le Pen – e só teve duas primeiras-ministras – Édith Cresson e Elizabeth Borne recentemente. A ideia que temos é que a política atrai menos as mulheres do que os homens – também aqui é uma perceção que a sociedade nos impõe?
Sim, é uma ideia totalmente plantada. É arcaico, mas está tão impregnado nos espíritos das pessoas que as mulheres são para estar no interior, no domínio do íntimo, da família, do cuidado. Fala-se muito do “care”, do cuidado do outro, que são profissões muito femininas, como enfermeira. Enquanto os homens estão virados para o exterior, para o mundo, mudar o mundo. Estes são modelos que foram interiorizados pelas próprias mulheres. Não há nada no facto de ser, biologicamente, mulher, que a predisponha mais a isso. É verdade que é a mulher que carrega os filhos, que dá à luz, que dá a vida. Mas isso não a impede de tudo o resto. A sociedade é que ainda não está feita para as mulheres trabalharem na política – com as reuniões à noite, etc.. Porque nesses momentos teria de ser o homem a assumir as tarefas domésticas. França tem inúmeros exemplos de mulheres que lutaram pelos seus direitos. Simone de Beauvoir, Simone Veil, Marie Curie, mas podemos recuar até Jeanne d’Arc, etc., etc. É importante transmitir o exemplo e a herança destas mulheres aos jovens?
Sim, e isso passa muito pela leitura. Há os textos de Simone de Beauvoir, de Gisèle Halimi. Há testemunhos de mulheres, houve grandes resistentes. Há inúmeras mulheres que se destacaram em várias áreas. É importante conhecer a História. Uma espécie de educação através das mulheres. Há tantos exemplos masculinos – aliás diz-se sempre “um grande homem” para dar a ideia de génio. Mais uma vez está na linguagem.
Quando fala com jovens leitoras, o que mais a surpreende nesta nova geração?
O que mais me surpreende? Acho que elas são tão mais livres do que a minha geração. São mais livres em tudo – nas suas escolhas de vida, na sua liberdade física, nos seus pensamentos. É maravilhoso. Falávamos há pouco de ir à praia e, no outro dia, estava a ler um artigo em que as raparigas diziam que já não faziam a depilação. Os homens têm pelos nas pernas, nós também. É assim. É uma coisa que eu, por exemplo, não me imagino a fazer. Mas acho genial essa liberdade – faço o que quero, visto o que quero. Mas aqui recai-se sempre no mesmo problema: por um lado queremos que a raparigas vistam o que querem e andem na rua como quiserem, por outro, como mãe, desaconselho isso. Digo: “Não vais sair assim, vais voltar tarde para casa. Não vais vir com esses calções no metro.” Há limites que impomos a nós mesmos, mas por medo. É esse medo que também fala. O medo das mulheres é muito diferente do medo dos homens? Sem dúvida. Tenho muitos amigos que descobriram, ao ler o meu livro, que as mulheres têm medo. Eles saem, pegam na toalha, vão à praia, Ou saem de manhã e voltam tarde à noite, às 2.00 da madrugada. Não têm medo. Uma mulher se voltar a casa já de noite leva as chaves na mão – foi a minha mãe que me ensinou isto: se metermos uma chave entre cada dedo, com as pontas para fora, criamos uma espécie de soqueira para o caso de alguém nos atacar. Os homens ficaram espantados. Claro, se eles não tiverem perfil de agressores, nem lhes passa pela cabeça que seja tão banal. Nenhuma mulher se passeia sozinha pelas ruas durante a noite sem uma vaga apreensão. Pelo menos em Paris. Veio a Lisboa também para amadrinhar o Choix Goncourt du
Portugal. O que pensa desta iniciativa que vai na 2.ª edição? Acho formidável – para a francofonia, para a literatura. E afinal os membros do júri do Prémio Goncourt não são jovens – é o mínimo que se pode dizer. Por isso, confiar a escolha a jovens estudantes [de oito universidades portuguesas], acho maravilhoso. Há uma renovação, traz entusiasmo, traz frescura. E eles levam isto a sério. É um novo olhar. A Camille é membro da Academia Goncourt. Desde 1904 só 14 vencedores do Prémio Goncourt foram mulheres, é um atraso difícil de recuperar?
Muito difícil. Sobretudo porque, entre nós, muitos – e mesmo muitas – não querem ouvir falar em discriminação positiva. É compreensível. Quando gostamos de um livro não estamos a pensar se o autor foi favorecido só porque era mulher. Mas acredito que há um longo trabalho a fazer de recuperação psicológica. Este ano os finalistas são três homens e uma mulher [acabaria por vencer Veiller Sur Elle de Jean-Baptiste Andréa], é uma coincidência, não termos o género em conta. Eu seria a favor de o termos mais em conta. Na primeira lista de finalistas há 15 livros – há muitas mulheres a escrever. Além disso, há uma maioria de homens no júri, o que enviesa um pouco as coisas. Não gostam necessariamente dos mesmos livros, talvez se interessem menos pelos livros escritos por mulheres. Parece-me normal tentar reequilibrar um pouco as coisas
Vincent Cassel, David Cronenberg e Diane Kruger: à conquista de Cannes!
Por estes dias, o crítico de cinema receia enfrentar a pergunta mais simples que o leitor, atento e interessado, lhe poderá colocar: afinal de contas, perante os novos filmes propostos pelo Festival de Cannes, qual o estado dessa “coisa” a que damos o nome de cinema? Apesar de tudo, perante a eufórica estranheza de Megalopolis, de Francis Ford Coppola, podíamos ainda refugiar-nos na celebração de uma ambiguidade sugestiva: o cineasta de Apocalypse Now volta a propor-nos um exercício obsessivamente experimental… Agora, descobrindo The Shrouds, de David Cronenberg, convenhamos que as coisas se complicam – será que esta é “apenas” a crónica da nossa relação com a morte?
Digamos que sim, quanto mais não seja tendo em conta uma justificação biográfica: sabemos que o realizador canadiano foi preparando este filme como uma homenagem a sua mulher, Carolyn Zeifman, falecida em 2017. Mais do que isso: Karsh, figura central de The
Shrouds, é um homem de negócios que, depois da morte da mulher, inventa uma “alternativa” tecnologicamente sofisticada às formas tradicionais de luto. Chama-se GraveTech (“grave” de sepultura) e permite estabelecer uma relação com as imagens dos corpos em decomposição dos defuntos bem amados – através de um ecrã controlado por telemóvel –, defuntos devidamente embrulhados nos respetivos sudários (“shrouds”).
Tudo isto tem como cenário principal o cemitério adquirido por Karsh, local paradoxalmente aprazível, para mais integrando um requintado restaurante. É certo que Vincent Cassel, intérprete de Karsh, apareceu em Cannes de cabelo muito curto e barba discreta, mas no filme a geometria do seu rosto e, em particular, a farta cabeleira branca transformam-no num gémeo incauto de … Cronenberg.
Memórias de Freud
Podemos tentar estabelecer uma pequena antologia dos “temas” que encontramos em The Shrouds e da sua presença regular na filmografia de Cronenberg. Lembramo-nos, por exemplo, do poder das imagens em Videodrome (1983). Ou das guerras entre o “real” e o “virtual” em eXistenZ (1999). Ou ainda dos corpos em transformação de Crimes do Futuro (2022). Ao mesmo tempo, semelhantes aproximações parecem não esgotar um assombramento que percorre todas as peripécias de The Shrouds, quanto mais não seja porque a memória da relação sexual de Karsh com a sua mulher Becca se “duplica” através de Terry, irmã de Becca – com as duas mulheres interpretadas por Diane Kruger, ecoando também os gémeos de Irmãos Inseparáveis (1988), ambos a cargo de Jeremy Irons.
Enfim, The Shrouds está longe de ser uma mera coleção de citações pessoais. O que mais importa é a conjugação de duas linhas de força, tão transparentes quanto perturbantes. Assim, em primeiro lugar, a relação sexual (ou, se quisermos ser românticos, a entrega amorosa) é algo que Karsh descobre como uma vertigem sem fim, em boa verdade sem satisfação redentora ou definitiva, persistindo para lá da certeza indizível da morte; depois, a demanda que a sexualidade envolve nunca é estranha (pelo menos no cinema de Cronenberg, entenda-se) a uma convivência mais ou menos consciente, metodicamente perversa, com os mais diversos aparatos tecnológicos.
Ao contemplar o corpo de Becca em decomposição, Karsh observa, de facto, o enigma interior do seu próprio desejo. Eis um imbróglio, convém não esquecer, registado num dos filmes mais mal amados de Cronenberg: Um Método Perigoso (2011), sobre as origens da psicanálise e, mais especificamente, as relações entre Sigmund Freud e Carl Jung.
Sexo & tecnologia
Tudo isto poderá fazer pensar num pesado filme de “tese”, com Cronenberg a fazer um inventário labiríntico da sua obra. É bem possível que essa ideia de inventário não tenha sido estranha ao próprio autor, argumentista e realizador. Mas seria inadequado tratar The Shrouds como um filme de citações, ainda menos de cenas “copiadas” do que quer que seja.
A palavra mais adequada para caracterizar a narrativa que nos envolve (como um sudário?) será outra: variações. Até mesmo no sentido musical, uma vez que Howard Shore volta a assinar uma admirável banda sonora para Cronenberg, a fazer lembrar as paisagens dilaceradas, mas infinitamente poéticas, da música de Crash (1996).
A intriga de The Shrouds, em particular através da personagem de Maury, o especialista do software do cemitério de Karsh, interpretado por Guy Pearce, vai-se enredando numa lógica de thriller que sugere uma conspiração internacional para o controlo da maquinaria da GraveTech. Se Cronenberg resiste a encerrar as várias linhas dramáticas do filme numa condensação racional, isso decorre do facto de The Shrouds ser também um filme sobre um tempo (tecnológico & sexual) em que o próprio conceito de humanidade está posto à prova através dos objetos que usamos e dos ecrãs que consumimos – ou em que somos consumidos.
O que, por fim, nos conduz ao parente mais próximo de The Shrouds. A saber: o primeiro, até agora único, romance de Cronenberg, justamente intitulado Consumed (ed. Scribner, Nova Iorque, 2014). Também aí corpos e máquinas cruzam-se e contaminam-se numa tragédia quotidiana que o cinema, perigosamente, nos devolve agora numa aliança de medo e deslumbramento.
The Shrouds,
Sam Altman convidou Scarlett Johansson a emprestar a voz para a versão 4o do ChatGPT. Scarlett disse que não.
E eis senão quando, 9 meses depois, que até é por acaso o período de incubação, os amigos da atriz lhe dizem que o novo sistema da Open AI, denominado Sky, “soava como ela”. Após uma quase batalha legal, Altman retirou a voz de Scarlett Johansson da aplicação.
Então… uma aplicação de Inteligência Artificial pode, ou não, usar a nossa voz? Não, não pode. Mas e se a usar? Essa voz, a nossa, a da Scarlett, a minha… é ou não é verdadeira? É ou não real?
Eu diria que é real. Porque a ouvimos. Mas não é verdadeira, porque quando a ouvimos, apesar de não ser a voz da Scarlett, ela existe, mas não é autêntica.
É neste mundo real, mas mentiroso, que teimamos desbravar.
Então o que distingue a verdade da realidade?
Não sabemos. Eu diria que, claramente, não sabemos mesmo.
Uma coisa real, pode não ser verdadeira, pois real quer dizer que existe. Seja verdadeiro ou não. Porque a mentira existe! Logo a mentira também é real.
E dizer que a Inteligência Artificial não é real, também não está certo. Porque ela existe. Existe num mundo de mentira. Existe num mundo de reproduções nascidas de imagens, sons e vídeos verdadeiros.
A verdade tem uma relação óbvia com a autenticidade. Logo a voz da Scarlett é real, mas é mentirosa. Não é autêntica. Não é dela. É uma cópia. Não é verdadeira.
A facilidade com que se consegue reproduzir texto, imagem ou som é um misto de espetacular com assustador. Ajuda, mas pode prejudicar. Resolve, mas pode comprometer.
Não quero entrar numa espiral de argumentos da luta do bem contra o mal no âmbito da Inteligência Artificial, mas na verdade, a moeda tem duas faces. E a moeda da Inteligência Artificial não é diferente.
Porque, hoje é a Scarlett numa aplicação, amanhã é um outro nome qualquer numa gravação que o coloca num cenário paralelo à realidade. Desculpem... que o coloca num cenário paralelo à verdade, porque se o vemos ou se o ouvimos, ele é real. Ele existe.
Mas lá por existir, isso não quer dizer que seja verdadeiro. Certo?
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Design,