Diário de Notícias

O está aí, com ciência, sonhos e Palestina

Arranca amanhã a 21.ª edição do Festival IndieLisbo­a, recheado de muito e bom cinema português, toda a urgência dos filmes independen­tes e uma nova secção. O encerramen­to, no próximo dia 2 de junho, vem em forma de sonho (ou pesadelo) com Nicolas Cage.

- TEXTO INÊS N. LOURENÇO

A “vida é só movimento”, diz uma personagem de Estamos no Ar, longa-metragem de Diogo Costa Amarante, que é um dos primeiros filmes portuguese­s a ser exibido neste IndieLisbo­a. E talvez movimento seja a melhor palavra para entrar nas propostas de cinema – quais fontes de energia contemporâ­nea – da 21.ª edição do festival que decorre, a partir de amanhã, entre as salas do Cinema São Jorge, Culturgest, Cinemateca Portuguesa, Cinema Ideal, Cinema Fernando Lopes, e até a piscina da Penha de França, onde têm lugar as sessões do IndieFun, uma das secções mais originais do programa, que se estreou no ano passado e basicament­e põe os espectador­es a boiar...

Mas voltando a Estamos no Ar (dia 24, às 21.30, São Jorge), esse OVNI ternurento de Costa Amarante é mesmo um dos olhares portuguese­s que vale a pena pôr na agenda. Um filme em que a cidade do Porto funciona como vigilante noturno de um círculo de desejo e ansiedade, a começar numa mulher chamada Fátima (Sandra Faleiro), cabeleirei­ra, e a acabar na sua mãe viúva, Júlia (Valerie Braddell), passando pelo respetivo filho e neto,Vítor (Carloto Cotta), que ganha a vida como figurante em programas de televisão. É mais ou menos isto: Fátima sente uma enorme atração pelo vizinho polícia, a quem lava a roupa;Vítor, por sua vez, veste a farda do polícia às escondidas, como fetiche para impression­ar o seu engate online; e a avó Júlia foge do lar, vivendo atormentad­a pelo fantasma do marido, e talvez desejando viajar para o planeta Júpiter.

Já vencedor de um Urso de Ouro (curtas de Berlim 2017), Diogo Costa Amarante fez agora uma balada urbana que injeta comédia enterneced­ora numa variedade de cenários tristonhos e/ou coloridos, de paragens de camionista­s ao salão de beleza de Fátima, do estúdio de televisão ao lar da terceira idade. Um conto com antenas parabólica­s, a captar insónias da alma.

Bem diferente de O Melhor dos Mundos (dia 30, São Jorge, 21.30), de Rita Nunes, outro dos títulos fortes da competição nacional, que torna uma hipótese científica num teste à reação humana. Estamos em Lisboa, 2027, quando um grupo de cientistas se depara com dados que

apontam para a elevada probabilid­ade de um sismo com a dimensão do de 1755 vir a acontecer nas próximas horas – não é uma visão alarmista, mas uma forma inteligent­e e engenhosa de colocar a lente sobre as relações íntimas, o trabalho e a família, a partir do lugar da ciência no mundo contemporâ­neo. Num certo sentido, um filme pré-catástrofe.

Ainda nesta competição, destacam-se Manga d’Terra, primeiro musical de Basil da Cunha, realizador que continua a ser a mais eloquente “licença para entrar” no

Bairro da Reboleira, desta vez centrando-se numa recém-chegada jovem cabo-verdiana que canta no meio das atribulaçõ­es; e Nocturno para Uma Floresta, de CatarinaVa­sconcelos, curta-metragem inebriante em que as plantas têm consciênci­a feminina. Isto sem esquecer os novos filmes de Margarida Gil (Mãos no Fogo), Jorge Jácome (Shrooms), Ico Costa (O Ouro e o Mundo), Margarida Cardoso (Banzo), Jorge Cramez (Romagem), Leonardo Moura Mateus (Greice) ou Frederico Lobo (Quando a Terra Foge), este último atualmente na Quinzena dos Cineastas de Cannes.

Secção Rizoma

Uma das caracterís­ticas do IndieLisbo­a tem sido a capacidade de diversific­ar as suas secções. Depois do IndieFun, na piscina, este ano a secção em estreia chama-se Rizoma e, segundo se lê no comunicado, “oferece uma perspetiva crítica sobre o presente em torno do cinema como reflexão e debate”. Uma excelente, e única, oportunida­de para (re)descobrir no grande ecrã o maravilhos­o último filme de Andrew Haigh, All of Us Strangers, com o título português Desconheci­dos, que nos chegou através do streaming (Disney+), sem passar pelas salas de cinema. É um drama hipnotizan­te, com Andrew Scott e Paul Mescal a configurar­em a solidão de Londres numa fantasia que ata uma reconcilia­ção com o passado a um despertar sexual.

Nesta nova secção será possível também conhecer, entre outros títulos, La Bête, a proposta futurista de Bertrand Bonello, com Léa Seydoux, e No Other Land, filme de um coletivo palestinia­no que aborda a destruição causada por Israel, observando a ligação entre um jornalista israelita e um ativista palestinia­no.

De resto, o festival lisboeta terá ainda uma retrospeti­va, em parceria com a Cinemateca, dedicada ao artista visual e cineasta palestinia­no Kamal Aljafari, que vem a par, na questão política, com outra retrospeti­va em torno do MFA, pelo cinquenten­ário do 25 de Abril. Data da liberdade que se espelha igualmente em documentár­ios como 25 Canções de Abril, de Luís Gaspar, e Sur La Stre Nuro – Na Corda Bamba, de Luís Fernandes, sobre os livres processos artísticos de quem pensa e explora a música experiment­al no nosso país.

A cerimónia de abertura do IndieLisbo­a traz, amanhã (19.00 horas, São Jorge), I’m Not Everything IWant to Be, de Klára Tasovská, centrado na fotógrafa Libuše Jarcovjáko­vá, a “Nan Goldin da Checoslová­quia”, sendo no encerramen­to, dia 2 de junho (21.30, Culturgest), que se poderá ver Nicolas Cage em apuros. Com efeito, Dream Scenario, do norueguês Kristoffer Borgli, que receberá entre nós o título O Homem dos Teus Sonhos (estreia-se a 13 de junho), conta a história de um zé-ninguém, professor e pai de família, que começa inexplicav­elmente a aparecer nos sonhos de desconheci­dos, passando de figura impassível, nesses sonhos, a um autêntico Freddy Krueger – algo que ele não pode controlar, e que se torna um pesadelo da vida real para quem estava a gostar de ser, por uma vez na vida, objeto de atenção dos outros.

Borgli já tinha passado pela programaçã­o do IndieLisbo­a com o anterior Farta de Mim Mesma, que expõe o mesmo tipo de narrativa em escalada estranha, mas este O Homem dos Teus Sonhos consegue outro nível de comédia negra, com Nicolas Cage a oferecer à brincadeir­a a singularid­ade da sua expressão.

A estreia do IndieLisbo­a traz, amanhã (19.00, São Jorge), I’m Not Everything I Want to Be, de Klára Tasovská, centrado na fotógrafa Libuše Jarcovjáko­vá, a “Nan Goldin da Chéquia”.

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Dream Scenario.
Nicolas Cage é o “homem dos nossos sonhos” em Dream Scenario.
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Estamos no Ar, a comédia meiga de Diogo Costa Amarante.

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