Traficante de sonhos António Brito Guterres
Omeu afastamento das gentes famosas deste país não é propositado. Não ligo. Às vezes falam-me de uma pessoa ou outra, enviam-me os seus perfis das redes sociais com um milhão de seguidores. Espreito, desconheço, esqueço. Quando voltar a ver vou achar que foi a primeira vez: espreito, desconheço, esqueço.
Há, no entanto, aquelas que conheci, que fazem parte da minha vida, em que a fama é para os outros. Ligam-me: “Estás a vê-lo?”, “Mete para trás na box.” Não o estava a ver.
Ainda há um semana estivemos juntos. Conversámos sobre a sua nova música, prestes a sair. Passaram estes dias e Calon já vai com mais de meio milhão de visualizações no YouTube, onde é a música em primeiro lugar nas tendências do país. Nela, Nininho celebra cantar na sua tradição Calon, mesmo que com uma batida mais ao estilo de Morad, o rapper catalão de ascendência marroquina.
Não há muito, Nininho tinha os seus concertos no Norte do país cancelados assim que os proprietários dos espaços descobriam que era cigano. Pelas mesmas razões, é capaz de ser o cantor do país com maior número de admiradores secretos: há quem o ouça, mas não partilhe que o faça.
Nininho vai rompendo fronteiras, mas ele sabe – até pelo seu percurso – e nós sabemos, que o conceito de excepção esconde um povo inteiro que continua a ser segregado e discriminado. Não é por isso um acaso, que nas recentes discussões sobre colonialismo e reparações não se tenha falado e/ou escrito desse povo Calon, parte integrante do povo português, a que nos habituamos a chamar ciganos por imposição externa aos próprios, embora actualmente aceite por uma grande maioria deles.
Curiosamente, o último debate público transversal sobre a situação do povo cigano em Portugal, também foi por declarações de Marcelo Rebelo de Sousa, que a 1 de Dezembro de 2021, a propósito da Restauração de 1640, lembrou a importância de 250 cavaleiros ciganos na luta de independência contra Espanha.
Uma das fontes da exaltação a esses cavaleiros, é um alvará de 1649 do rei D. João IV, a exceptuar esse grupo das medidas de prisão e degredo aplicadas a todos os ciganos. Mais uma vez a excepção. No que respeita ao povo Calon, D. João IV limitou-se a seguir toda uma ascendência régia que sempre determinou a expulsão dos ciganos do Reino: D. João III, D. Catarina, o “saudoso” D. Sebastião, D. Henrique, D. Filipe I e II; continuando na sucessão: D. JoãoV e D. José; chegando a D. Maria que determinou que se lhes retirassem as crianças a serem entregues à Casa Pia.
Percebemos nessa cronologia a necessidade – e não a vontade – de os Calons viverem afastados, longe das localidades, por isso longe das autoridades. Espanha não era solução porque vigoravam as mesmas leis. A ordem de expulsão significava uma participação forçada no desígnio colonial, nas galés ou no desterro no Brasil, CaboVerde e Angola.
E para saber melhor, às vezes basta-nos estar. Nas últimas duas décadas passei horas a ouvir as matriarcas da família Maia. Henriqueta, Francelina e Carioca oferecem com os seus roteiros de oralidade, autênticos retratos históricos do Portugal contemporâneo, que se cruzam com os seus antepassados.
Do Manuel Botas, director de corrida da Praça de Touros do Campo Santana (antecessora do Campo Pequeno), e que também cantava com a Severa (diz-se que também cigana) na Mouraria – numa influência irremediável para a fixação do fado como o conhecemos; ao António Maia, o Chato, combatente condecorado da I Guerra Mundial, que viria a sucumbir com honras de primeira página de jornal em consequência dos gaseamentos que sofreu; até ao fadista Manuel Maia, que participava numa célula fadista revolucionária do pós-25 de Abril com o objectivo de redefinir esse estilo musical nesses novos tempos.
Nessa viagem contada pelas matriarcas, percebemos que a nova cidade – as avenidas novas e seus prédios de rendimento – não era para elas e seus familiares. Cada avanço da cidade, significava o seu afastamento: Campo Santana, Largo de Santa Bárbara, Rua de Arroios, Calçada do Poço dos Mouros, Paiva Couceiro; sempre a subir, até assentarem para lá do limite formal da cidade à época: as traseiras do Cemitério de São João. Mais tarde, o Programa Especial de Realojamento tratou de agregar no mesmo local várias famílias ciganas que antes habitavam isoladamente com os “senhores”.
Em Portugal olha-se para os Calons, ignorando-o como um povo, constituído por muitas diversidades. Mas de facto, o país tem feito todo um esforço para que esse povo fique na cauda de diversos índices económicos e sociais. Apontamos o dedo aos ciganos exactamente pelas consequências do que lhes impingimos.
Continuamos a adiar vidas sem perceber que também nos adiamos enquanto país. Mesmo quando estamos à distância de um ouvido para o poder contrariar. Portugal ainda não está preparado para esta conversa, mas estamos aqui para a fazer.