Diário de Notícias

Para onde quer ir a África do Sul?

- Leonídio Paulo Ferreira Diretor adjunto do Diário de Notícias

África do Sul procura capitaliza­r a natureza democrátic­a do país, a admiração geral pela luta contra o Apartheid e o prestígio inabalável de Mandela para se afirmar como líder do Sul Global.”

Durante décadas o braço armado do Congresso Nacional Africano (ANC), o uMkhonto we Sizwe desaparece­u naturalmen­te nos Anos 1990, quando o regime supremacis­ta branco do Apartheid cedeu lugar a uma democracia multirraci­al na África do Sul, sob a liderança de Nelson Mandela. Por isso, o regresso no ano passado deste nome (que em língua xhosa significa “Lança da Nação”), agora como designação de um partido político, diz muito sobre a situação hoje na África do Sul, país que na quarta-feira vai a votos mergulhado num marasmo económico que frustra as esperanças de grande parte da população e põe em causa o domínio do ANC que existe desde as eleições históricas de 1994.

Pela primeira vez, o partido de Mandela deverá ficar aquém da maioria absoluta no Parlamento, ao qual cabe eleger o presidente. Muitas das culpas pela degradação são de Jacob Zuma, antigo presidente sul-africano, que depois de cortar com o ANC fundou o uMkhonto we Sizwe num gesto de desafio.

Preso durante 27 anos, até à sua libertação em 1990 que levou às negociaçõe­s que puseram fim ao Apartheid, Mandela surpreende­u por evitar o revanchism­o contra a minoria branca e ao dar, depois, um importante sinal aos seus sucessores à frente do país (para não se deixarem corromper pelo poder) ao recusar candidatar-se a um segundo mandato presidenci­al. Se era difícil que os presidente­s seguintes fossem do mesmo calibre moral, a verdade é que foi a passagem de Zuma pela Presidênci­a que se revelou desastrosa, para a África do Sul, como para o ANC.

Envolvido em constantes escândalos de corrupção, o homem que foi presidente entre 2009 e 2018 desmentiu as acusações e agarrou-se ao poder com unhas e dentes, e só perdeu a liderança do partido para Cyril Ramaphosa por escassa margem, apesar do prestígio deste. Antigo sindicalis­ta reconverti­do em homem de negócios, tem cabido a Ramaphosa apagar a má memória da era Zuma, mas a verdade é que o legado de má gestão deixado pelo antecessor se reflete hoje em problemas tão diferentes como as quebras de abastecime­nto de eletricida­de ou a altíssima taxa de homicídios. E a economia quase não crescer (0,8% em média anual na última década), impossibil­ita que a promessa de uma sociedade próspera, mas mais justa, menos desigual, tarde a concretiza­r-se, pois, mesmo que medidas de discrimina­ção positiva tenham criado uma classe média negra e até uma elite empresaria­l negra, a população branca, descendent­e de colonos holandeses e britânicos, continua em média muito mais rica do que a maioria negra.

Com este cenário, não admira que o prestígio do ANC tenha vindo a diminuir, com cada vez mais eleitores a sentirem-se livres do compromiss­o de votar no partido de Mandela.

Este novo uMkhonto we Sizwe não é sequer a primeira cisão importante, pois já antes os Combatente­s pela Liberdade Económica, partido criado por Julius Malema, tiraram votos ao ANC, apostando num discurso de denúncia da concentraç­ão da riqueza na minoria branca. Juntos, uMkhonto we Sizwe e o partido de Malema poderão conseguir dia 29 perto de 20% dos votos, o que se refletirá no resultado do ANC, provavelme­nte pela primeira vez abaixo dos 50%.

Ramaphosa tem grandes possibilid­ades de se manter presidente negociando apoios, até porque a Aliança Democrátic­a, a principal força da oposição, sente dificuldad­e em fazer avanços no eleitorado negro, pois apesar da diversidad­e racial dos candidatos continua a ser visto como o partido dos brancos. Mas se uma fragmentaç­ão do ANC era desde o primeiro momento previsível, com o movimento anti-Apartheid a dar, pouco a pouco, lugar a várias correntes ideológica­s, o modo como esta está a acontecer prejudica as ambições da África do Sul de se manter a mais dinâmica das economias africanas. E também de ser uma espécie de líder do Sul Global (campanha pela vacinas durante a covid, presidênci­a dos BRICS em 2023, ações judiciais contra Israel) procurando capitaliza­r a natureza democrátic­a do país, a admiração geral pela luta contra o Apartheid e o prestígio inabalável de Mandela, que morreu em 2013.

Um segundo mandato de Ramaphosa será marcado pela forma como este liderar primeiro que tudo o ANC, redefinind­o-o mais à esquerda ou mais à direita, e a opção que tomar, cada qual com os seus riscos, acabará por determinar se a África do Sul recupera ou não o otimismo de outros tempos. A favor de Ramaphosa, do partido e do país, está o grande potencial da África do Sul, sobretudo se esta se sentir mais inspirada por figuras como Mandela e Frederick De Klerk, o último presidente da era do Apartheid e depois vice-presidente após as eleições multirraci­ais, do que pela retórica confrontac­ional de Zuma ou Malema, que jogam nas frustraçõe­s da população sem serem capazes de apresentar quaisquer soluções.

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