As lições póstumas de Godard
Algumas das imagens finais de Jean-Luc Godard surgiram em Cannes, esclarecendo temas e métodos de trabalho – foram momentos marcantes da, cada vez mais importante, Secção de Clássicos.
No discurso da vitória Miguel Gomes falou em sorte. Mas o júri presidido por Greta Gerwig não deu o Prémio de Melhor Realização por um capricho. Esta história de amor no sudeste da Ásia que se teatraliza por entre as camadas do real que as paisagens orientais dão deve ter tocado Gerwig e companhia.
O Prémio de Melhor Realização em Cannes vai dar uma visibilidade estratosférica a Grand Tour, cinema destemidamente de ensaio sem perder o pé no grande romanesco. Mas Miguel Gomes quis mise-en-scène, ser realizador na cerimónia. Desafiou o protocolo e disse que era ele a dirigir aquela “sequência”, que se estava a sentir sozinho no palco. Pois bem, chamou a equipa ao palco e disse que o cinema não se faz sozinho. Depois, puxou as brasas ao cinema português: “Obrigado ao cinema português e aos seus grandes cineastas que me inspiraram como Manoel de Oliveira.”
Agora, infelizmente, se não houver mudanças, o filme poderá ser visto comercialmente entre nós depois do verão. É pena não capitalizar já este prémio e o alarido cannois – em França os filmes que estreiam em cima do festival têm tido resultados comerciais notáveis, em particular Le Deuxième Acte, de Quentin Dupieux. Espera-se uma carreira internacional fulgurante para um filme que teve uma receção crítica muito favorável, mesmo havendo alguns detratores.
Na noite anterior, a produtora do filme, Filipa Reis, não parecia muito otimista quanto aos rumores de palmarés. Ao DN chegou mesmo a dizer que não tinha recebido nenhum sinal da organização do festival para não apanhar o avião de volta...
Gomes “feliz e orgulhoso”
Miguel Gomes, num encontro com a imprensa após a vitória falava em honra e dizia-se feliz: “A primeira pessoa em quem pensei, mal ouvi o meu nome a ser chamado ao palco, foi alguém da minha equipa que, por acaso, está casada comigo e estava, felizmente, ao meu lado.” O filme é precisamente dedicado a Maureen Fazendeiro, cineasta também.
O filme nasce de uma inspiração de uma parte de um romance de Somerset Maugham e trata-se de uma história que é divida em dois momentos e pontuada com imagens reais na Ásia contemporânea, recolhidas em vários formatos, misturadas com o esplendor do estúdio, neste caso um estúdio em Roma onde se recriam florestas, hotéis e outras ambiências asiáticas.
Prémio importante nas curtas-metragens
Também nas curtas-metragens houve boas notícias: Daniel Soares, cineasta aveirense, foi agraciado com a Menção do Júri por Bad For a Moment – Mau por Um Momento, observação bem curiosa de um impasse moral de um arquiteto que pode estar a contribuir para a gentrificação num bairro “problemático” na Margem Social.
A invasão de Cannes não podia ter corrido melhor. Não é por acaso que Payal Kapadia no discurso ao agradecer o Grand Prix tenha referido que Miguel Gomes é uma referência...
Miguel Gomes, depois do palmarés oficial da em Cannes com o Prémio de Realização. por
Pelo menos desde 1995, quando o cinema assinalou o centenário da primeira projecão pública organizada pelos irmãos Lumière, a memória dos filmes deixou de ser encarada como uma coleção de dados mais ou menos pitorescos, para ser tratada como um capítulo fundamental – técnico, artístico e simbólico – da vida pública do cinema. Com a Secção de Clássicos,o Festival de Cannes tem sido um território de eleição para a consolidação de tal dinâmica. Através de duas fundamentais linhas de força: a apresentação de cópias restauradas de filmes que, por alguma razão, são referências históricas incontornáveis, e a estreia de documentários empenhados em revalorizar o valor das memórias cinéfilas.
Este ano, alguns desses documentários enraizavam-se num pressuposto de trabalho que, não sendo inédito, adquiriu, subitamente, um peso muito especial. A saber: a evocação de algumas personalidades emblemáticas fez-se, não através de um discurso “sobre”, mas a partir daquilo que os próprios retratados disseram, avaliando a sua vida e a sua obra.
Assim aconteceu com três nomes fulcrais da produção francesa enraizada nos tempos heroicos da Nova Vaga: dois realizadores, François Truffaut (1932-1984) e Jacques Demy (1931-1990), e um compositor, Michel Legrand (1932-2019). E também com uma atriz lendária de Hollywood: Elizabeth Taylor (1932-2011).
O documentário sobre Elizabeth Taylor, realizado por Nanette Burstein, tem por base um documento precioso, inédito, em que ela recorda filmes e momentos decisivos da sua carreira. Chama-se, por isso, Elizabeth Taylor: The Lost Tapes, já que se trata de escutar as conversas gravadas com o jornalista Richard Meryman (para um projeto de livro que não se concretizou).
Através da combinação de imagens de arquivo, incluindo extratos dos filmes citados, descobrimos uma Elizabeth Taylor de espantosa frieza analítica, resistindo a todos os clichés da fama e, metodicamente, dando conta de situações reveladoras de contextos muito precisos. Por exemplo, é verdade que Bruscamente no Verão Passado (1959), de Joseph L. Mankiewicz, ficou como um dos títulos mais admiráveis da sua filmografia, mas não é menos verdade que “toda a gente em Hollywood” a aconselhou a não aceitar o projeto. Porquê? Por causa da homossexualidade da personagem que espoleta o drama escrito por TennesseeWilliams…
Quanto a Jacques Demy, Le Rose et le Noir, de Florence Platarets, e Il Était Une Fois Michel Legrand, de David Hertzog Dessites... Eis dois filmes que, por assim dizer, dialogam entre si, já que Legrand compôs as músicas de alguns dos mais lendários trabalhos de Demy, incluindo Os Chapéus de Chuva de Cherburgo, também exibido numa cópia restaurada (assinalando os 60 anos da sua Palma de Ouro).
Entretanto, Le Scénario de MaVie, sobre François Truffaut, de David Teboul, expõe com impecável didatismo a dimensão autobiográfica do autor de Os 400 Golpes (1959).
Godard por Godard
Momentos inesquecíveis foram vividos com a revelação daquilo que podemos chamar as “imagens finais” de Jean-Luc Godard (1930-2022), apresentadas por Fabrice Aragno, um dos colaboradores mais próximos dos últimos anos da sua obra – recorde-se que Aragno esteve em Portugal, em novembro de 2023, para apresentar no âmbito do LEFFEST a exposição Éloge de l’Image inspirada pela derradeira longa-metragem de Godard, O Livro de Imagem (2018).
Pudemos ver, assim, duas singulares curtas-metragens: primeiro, Scénarios, coleção de imagens literalmente terminais, já que aí encontramos um breve plano do próprio Godard, registado na véspera da sua morte voluntária (por “suicídio assistido”, segundo a expressão da lei suíça); e Exposé du Film Annonce du Film “Scenário”, a partir das páginas de um caderno de trabalho, ligando a materialidade das imagens aos grandes temas da história e da arte que assombram a filmografia godardiana. Tudo isso exposto a partir de uma visão que, em termos práticos e poéticos, nunca é estranha ao labor, elegante e imprevisível, das mãos do cineasta – ver é também tocar.