“Kissinger reconheceu que subestimou a habilidade política de Mário Soares”
Professor na Universidade de Georgetown, em Washington, e grande especialista no tema da Revolução Portuguesa, Paul Christopher Manuel esteve em Lisboa para uma conferência internacional organizada pela Comissão Comemorativa dos 50 anos do 25 de Abril e conversou com o DN, fazendo a análise como historiador, mas também dando a visão de um luso-americano.
Quando adolescente, como parte da comunidade luso-americana, lembra-sedas notícias da Revolução Portuguesa de 1974? Lembro-me muito claramente das notícias da Revolução. Eu já tinha interesse na política, na época tentava aprender tudo sobre a crise do Watergate que estava a desenrolar-se nos Estados Unidos. E então aconteceu o 25 de Abril. Fiquei fascinado por a democracia estar a chegar a Portugal. Quando consegui falar com a minha avó portuguesa Maria Rosa dos Santos Manuel disse-lhe: “Avó, não é maravilhoso? A democracia está a chegar a Portugal.” Ela olhou para mim com lágrimas nos olhos. E respondeu: “Não, querido, não é maravilhoso. Tenho medo.” Eu quis saber por que ela estava com tanto medo. Eu morava no Massachusetts com os meus pais. Os avós moravam em Rhode Island. Na comunidade portuguesa nos Estados Unidos houve interesse pela Revolução? Essa preocupação, até medo, que a sua avó Maria Rosa demonstrou, foi geral?
Houve alguma felicidade, claro. Mas principalmente muita inquietude, muita preocupação. Porque estes eram os portugueses que já tinham descoberto a democracia, a liberdade, na sua vida na América. E em Portugal tinham a comunidade, a família, o sentimento de pertença. Estavam preocupados com o que a Revolução significava para eles, para a possibilidade de viajarem para Portugal. A preocupação era muito simples: se Portugal adotar um tipo diferente de sistema político, ainda poderemos voltar para casa? Muitos deles não se importavam muito com política. Não tinham muitas ideias sobre Salazar ou Caetano. Não prestavam atenção ao que era a política em Portugal. Não fazia parte da realidade deles. A única coisa que sabiam é que sempre puderam ir a Portugal visitar a família sem problemas. Essa era a preocupação deles. Estavam com medo de que isso mudasse. Isso porque as notícias falavam, a partir de certa altura, de se ruma revolução de esquerda e que havia algumas possibilidades de resultar num regime comunista, forçosamente hostil aos Estados Unidos?
Depois de o general Spínola ter tido de sair do país e de o Verão Quente ter começado, houve ainda mais medo e ansiedade. A minha avó chorava e dizia-me que era profundamente devota de Nossa Senhora de Fátima. E que tínhamos de rezar, porque a culpa foi nossa, porque não rezámos o suficiente [risos]. “Isto éo que foi prometido ”, dizia ela ,“se não orássemos o suficiente”. Antes do 25 de Abril já tinha visitado Portugal?
A minha primeira visita, na verdade, foi em 1976, creio. Já depois da Revolução. Mas ir visitar os avós em Rhode Island era como ir a Portugal. De ondeé origin ária a sua família, em Portugal?
Somos de uma pequena aldeia chamada Xartinho, perto de Alcanede, no Distrito de Santarém. Fica talvez a uns 30 minutos de Fátima. Naquele momento, ainda adolescente, já se interessa vapor política, como disse. Até por ser a época em que o presidente Richard Nixon teve de demitir-se porca usa do Caso Watergate. E a ligação familiar a Por tu galfê- lo estar especialmente atento ao 25 de Abril. Mas depois, já como historiador, dedicou-se a estudar esse período. Como foiareação nos Estados Unidos ao processo revolucionário português? Apesar do Watergate, a Administração americana estava a olhar para Portugal com cuidado? Sim. Com muito cuidado. E a comunidade portuguesa estava preocupada tanto com os problemas causados pelo Watergate como com a mudança em Portugal. Os portugueses nos Estados Uni doestavam preocupados com a possibilidade de Portugal se tornar um país comunista. A revista Time teve uma capa famosa, em agosto de 1975. A ameaça vermelha em Portugal, era o título. Portanto, os portugueses estavam preocupados com a estabilidade em Washington e com o que estava a acontecer com o presidente. E, ao mesmo tempo, estavam muito preocupados com o que estava a acontecer em Portugal. Ficaram muito preocupados com a notícia de que o secretário de Estado Henry Kissinger estava a pensar deixar Portugal tornar-se um país comunista, um país estalinista, como estratégia sua, paras e ruma vacina contra a Espanha se tornar comunista. Os portugueses da América ficaram muito aborrecidos com isso. E houve duas figuras para quem a comunidade portuguesa olhou com esperança. Uma delas era o embaixador americano em Lisboa, a partir de janeiro de 1975, Frank Carlucci, um ítalo-americano, que acreditava na democracia portuguesa, que era muito amigo de Mário Soares e tinha amigos influentes na Administração americana, já como presidente Ford. Carluccitinha de reportara Kissinger, masas pessoas admiravam a sua coragem em dizer coisas que contrariavam a opinião do chefe. A outra pessoa a quem a comunidade luso-americana recorreu foi o novo cardeal católico romano de Boston. O seu nome era Humberto Medeiros, nascido nos Açores. Medeiros era cardeal. Tomou o lugar de um famoso cardeal de origem irlandesa, o cardeal Cushing. E assim tornou-se um português num cargo de grande destaque nos Estados Unidos. Era cardeal desde 1970. E confirmou-me católico, o que trouxe grande alegria à minha família, por se rum português afazê-lo[ risos ]. Durante todo o Verão Quente em Portugal, em 1975, o cardeal Medeiros falava e pregava, no espírito do Vaticano II, sobre moderação, confiança no povo, confiança na democracia, sobre não querer que a Igreja se envolvesse na política, mas apenas orasse pela paz, pela tranquilidade. E deu, assim, um grande conforto à comunidade luso-americana, porque não tinha medo, confiava num futuro democrático em Portugal. As pessoas ouviam Medeiros em Boston e esperavam que Carlucci tivesse sucesso em Lisboa. São dois grandes indivíduos que impactaram muito a comunidade luso-americana. Mas olhando para a Administração americana, mesmo com todos estes problemas coma demissão de Nixone o novo presidente Ford, Portugal era uma prioridade?
Era muito importante. Quando Vasco Gonçalves e Rosa Coutinho convidaram os navios soviéticos a atracar no Porto de Lisboa, os Estados Unidos ficaram preocupados com uma eventual transmissão de segredos militares da NATO ao Pacto de Varsóvia, à Rússia, à União Soviética. Havia muitos estrategas americanos que se opunham a Portugal, um membro fundador da NATO em 1949, estar em risco de ser absorvido pela Europa de Leste. Alguns membros da Administração consideraram essa hipótese pior do que a Crise dos Mísseis Cubanos, quando os russos queriam instalar mísseis em Cuba, e o presidente John Kennedy teve de pôr fim a isso. Havia uma profunda preocupação na Administração e, sim, Kissinger é famoso pela sua opinião da vacina, mas não era a opinião da maioria. Ele simplesmente era o mais poderoso. Há aquele célebre episódio de Mário Soares e Costa Gomes irem a Washington com Frank Carlucci, e se encontrarem com Kissinger e, nessa altura, já com o presidente Ford. Kissinger falou com Soares, isto na sequência das eleições para a Assembleia Constituinte, nas quais o socialista Soares mostrou que podia vencer, que tinha o apoio do povo, que podia superar a ameaça comunista. Kissinger disse-lhe: “Eu não acredito em si. Você é um Kerensky português.” E Mário Soares retorquiu: “Não quero ser um Kerensky.” E Kissinger respondeu: “Nem Kerensky o queria.” [Risos]. A Base das Lajes era o ponto crítico na relação entre os Estados Unidos e Portugal naquele momento?
Para os estrategas, mas não para as pessoas comuns. Mas, sim, a 100%, porque a dissuasão funcionava contra a União Soviética, e manter uma presença militar global americana robusta exigia a Base das Lajes na NATO, necessária como estação de reabastecimento para projetar a influência militar americana. Era essencial. Alguns, em Washington, pensaram que – e isso apoiava o ponto de vista de Kissinger – talvez se pudesse fazer algo como em Cuba, onde a América manteve uma base, mesmo depois do triunfo da revolução de Fidel Castro. A América, desde a era da independência cubana, tinha um contrato com Cuba para utilização da Base de Guantánamo, e continuou a ter. Castro não conseguiu livrar-se dos americanos, ainda lá estão. Então, a ideia era que, com o acordo com o Governo português, talvez não tivessem de sair dos Aço-
res, talvez pudessem continuar a usar a Base das Lajes. Mas é claro que, se Portugal se tivesse tornado um país estalinista, existiria sempre a ameaça de se perder a base.
Entre a comunidade açoriana nos Estados Unidos notou-seu mareação diferente dados portugueses com origens continentais? Naquele momento havia até uma espécie de separatismo açoriano, porquecomo dizia a Time, em risco de ficar vermelho.
Todos os portugueses nos Estados Unidos, ou no Canadá, ou em França, não queriam que Portugal se tornasse um país comunista. Isso simplesmente não era o que desejavam. Eles viviam em liberdade, gostavam da democracia. E estavam bem com o socialismo, desde que fosse numa tradição democrática, como havia na Suécia, na Alemanha ou na Noruega. Queriam liberdade no seu país. Com Portugal a mudar, era isso que tinham em mente. E quando olhamos para o padrão de votação na comunidade luso-americana, foi maioritariamente PSD ou PS, tal como em Portugal. Portanto, desse ponto de vista, e, mais uma vez, em termos das suas próprias preocupações pessoais, a questão era: seremos autorizados a visitar a família ou, por causa da Guerra Fria, tudo isto tudo iria transformar-se num Berlim Oriental e Berlim Ocidental, onde as famílias estavam bloqueadas de se visitar? Essa era a grande preocupação.
A decisão do Governo pós -25 de Abril de manter João HallTh em ido como embaixador em Washington foi a grande prova de que Portugal optou por uma abordagem pragmática da política externa?
Portugal e a América têm uma relação diplomática muito estreita. Portugal foi dos primeiros países a reconhecer a independência americana. Quando os redatores da nossa Constituição escreveram o seu documento em Filadélfia, a 4 de julho de 1776, no dia em que o concluíram, brindaram com vinho Madeira. A ligação entre Portugal e os Estados Unidos sempre foi profunda e estável. Então, mesmo com todo o caos no período revolucionário, sempre houve a preocupação de manter uma aliança robusta com os Estados Unidos. Entrevistei, para os meus livros, Costa Gomes, entrevistei António de Spínola, entrevistei Ramalho Eanes. Todos foram presidentes e todos concordaram nisso. Era uma prioridade a relação com os Estados Unidos. E, assim, manter o embaixador português, que era um diplomata muito bom, que não tomava partido, que não fazia política, que simplesmente representava o interesse estratégico nacional, fez todo o sentido certamente.
Há quem diga que um adas razões pelas quais o comunismo não foi possível em Portugal foi também o novo momento de Détente entre os Estados Uni dose a União Soviética, os Acordos de Helsínquia de 1975.
Sim, certo. Também desempenha um papel. Nixon renunciou em 8 de agosto de 1974. Depois tivemos muita instabilidade em Washington. O presidente Ford assumiu, e foi o primeiro presidente não-eleito. Não tinha sequer sido eleito vice-presidente. E, neste período, Kissinger foi a força estabilizadora, o que lhe deu mais autoridade do que qualquer secretário de Estado na História até àquele momento. E Kissinger arquitetou a abordagem da Détente. E esse foi o foco principal da sua diplomacia. Ele estava focado na política das grandes potências e no equilíbrio entre países. Kissinger foi o mais singular responsável pelos Negócios Estrangeiros. Ele vinha da Escola Bismarckiana, que fala de política de poder. Todos os secretários de Estado americanos antes dele estavam muito mais na tradição wilsoniana de idealismo, utópico, falando sobre ideias e temas, não sobre poder. Por isso, quando Kissinger avaliou a situação, é claro que queria que Portugal se tornasse democrático, mas caso contrário tudo bem, não era uma grande potência. Não era um grande problema se se tornasse comunista. E se isso obrigasse a Espanha a permanecer no campo Ocidental, muito bem, pois ele não tinha problemas com Franco, com o regime de Franco, ele não estava interessado em política interna. Ele estava só interessado em política externa. E, portanto, se a evolução na Península Ibérica mantivesse o equilíbrio estratégico na Europa, ele concordava. Pessoas como o senador Ted Kennedy, os democratas em geral, Kennedy representando a comunidade luso-americana em Massachusetts, o senador Claiborne Pell em Rhode Island representando também os luso-americanos, ficaram indignados. Não gostavam da ideia de que se poderia sacrificar Portugal no altar da Détente, pensando que isso seria uma forma de fazer a paz com a Rússia, dar-lhe alguma coisa, mas assustar assim o resto da Europa para não se tornar comunista.
Qual a importância de Carlucci nesse processo? Carlucci foi fundamental para a democracia triunfarem Portugal?
Foi essencial, a todos os níveis, na manutenção de uma democracia portuguesa. Ele estava profundamente ligado a Washington, DC. Carlucci foi colega de quarto de Donald Rumsfeld na faculdade. Rumsfeld foi uma estrela em ascensão na Administração Nixon, na Administração Ford, até depois na Administração Bush filho. Rumsfeld era um amigo muito poderoso de Carlucci, alguém profundamente ligado ao estilo de poder de Washington. Quando Kissinger disse o que estava a pensar, Carlucci começou a dizer o contrário, defendendo o argumento de que Portugal podia ser uma democracia. O que fez? Convidou Mário Soares para a sua residência. Iria encontrar-se com ele. Falaria com ele. E conversaria com todas as forças pró-democráticas. Não lhe importava se eram socialistas ou sociais-democratas. Ele não se importou. Simplesmente não queria que o país se tornasse antidemocrático de novo. Não queria que Portugal repetisse o erro de, depois de Salazar, Caetano e da PIDE, ter algo ainda pior, tornar-se num Portugal estalinista. Foi isso que Carlucci disse. Também facilitou ao Partido Socialista as comunicações com as forças democráticas de toda a Europa. Ele estava a facilitar a conversa, mas não era o jogador ativo. Eram os alemães, os suecos. Mas ele apoiou estes contactos de Soares. E ele efetivamente, não quero dizer que bloqueou, contrariou a estratégia de Kissinger. Assim, a tese de Kissinger nunca se tornou oficial. E Ford não a adotou. Foi simplesmente algo que ele disse de forma famosa. Mas só foi até onde conseguiu ir. E Kissinger, de certa forma, recuou ao ver que Soares ganhava força. Durante o Verão Quente foi uma época de grande loucura. Portugal estava a sofrer profundamente. Soares estava a usar cada grama de habilidade e conhecimento político que possuía. Estava a tentar adaptar-se à situação. E você sabe, e eu sei, que quando estamos numa situação de crise, pessoal ou profissional, precisamos de amigos. E os amigos mais poderosos, mesmo que não possam dar exatamente o que precisamos, fornecem-nos algo. E essa relação entre Carlucci e Soares deu confiança a Soares, sabendo que teria o apoio dos americanos. Soares poderia ter tido sucesso sem ele, claro. Ele tinha a sua própria capacidade. Grande. Mas saber que havia um amigo que lutava por ele foi essencial. Não direi que foi determinante. Penso que temos de dar esse crédito aos políticos portugueses que fizeram com que isso acontecesse. Mas sabendo que havia um amigo poderoso que estava a ajudar... Deixe-me colocar desta forma: a relação entre Soares e Carlucci, entre as forças democráticas em Portugal, em geral, e Carlucci, não era como numa república das bananas latino-americana, em que os americanos puxavam os cordelinhos das marionetas. Não foi nada disso. Foi uma aliança baseada no respeito e na amizade. Soares estava a conversar com Kissinger e percebeu que o seu amigo Carlucci era contra o que pensava o chefe. Sabia que tinha um amigo que o defendia, lutava por ele. E isso deu-lhe a força que precisava para continuar, sabendo que, ao fazer isso, ajudava Carlucci nas suas batalhas contra Kissinger. E conseguiu vencer as eleições de 25 de Abril de 1975, conseguiu vencer as eleições de 25 de Abril de 1976, que foram o acontecimento mais crítico do processo, pois o Parlamento foi finalmente eleito. Foi quando o Estado democrático aconteceu. Há 48 anos. 48 anos de fascismo. 48 anos de democracia. Foi isso que ele fez. Por isso, mais uma vez, não quero enfatizar demasiado esta questão e sugerir que, de qualquer forma, os portugueses dependiam de Carlucci. Não foi isso que aconteceu. Mas ele era um aliado. Um amigo. E lutava como um louco. Carlucci lutou como um louco aqui em Portugal.
Kissinger reconheceu que estava errado sobre Portugal?
Sim.
Maistarde?
Mais tarde. Não sei exatamente se ele disse que estaria errado, mas Kissinger reconheceu que subestimou a habilidade política de Mário Soares.
“A relação entre Soares e Carlucci, entre as forças democráticas em Portugal em geral e Carlucci, não era como numa república das bananas latino-americana em que os americanos puxavam os cordelinhos das marionetas. Não foi nada disso. Foi uma aliança baseada no respeito e na amizade.”