Diário de Notícias

O grande voo transatlân­tico de 1919 pulou entre os Açores e Lisboa

CIÊNCIA VINTAGE A 27 de maio de 1919, a cidade de Lisboa recebeu a visita de um voo pioneiro. A primeira ligação transatlân­tica da história contou com escalas nos Açores e na capital portuguesa. Um feito consumado no céu, mas com apoio no mar.

- TEXTO JORGE ANDRADE

No ano de 1918 uma fronteira de morte fechou a passagem setentrion­al do Mar do Norte. Entre junho e outubro do derradeiro ano do primeiro conflito mundial, mais de 70 000 minas e 24 000km de cabo de aço blindaram a passagem de submarinos alemães a partir de águas setentrion­ais. A Grande Barragem do Norte, um imenso campo minado, formou um cinturão de 300km de compriment­o por 56km de largura, entre a Escócia e a Noruega. As minas submarinas foram dispostas a diferentes profundida­des num esforço conjunto da Marinha dos Estados Unidos e da Marinha Real britânica.

Das fábricas automóveis norte-americanas saiu grande parte dos componente­s das minas. No mar, uma Armada de lança minas afadigou-se em entregar às águas os engenhos. Entre os navios destinados à empresa encontrava-se o USS Aroostook, nave construída em 1907 com a finalidade de transporte de passageiro­s, convertido em 1917 em lança minas.

Nos meses que antecedera­m a conclusão da barragem letal, o USS Aroostook arrojou até ao seu destino mais de 3000 minas. Um dos esforços derradeiro­s da I Guerra Mundial. Em novembro de 1918, um mês após a conclusão da barragem era assinado o Armistício com a Alemanha. Estatístic­as oficiais datadas de 1919 indicam que quatro submarinos germânicos sucumbiram à força das explosões. Sobre outros quatro submarinos pende a dúvida se terão, de facto, cedido às detonações.

Um ano após concluir a sua missão bélica, o USS Aroostook protagoniz­aria um episódio ao serviço da paz. A 8 de maio de 1919, a nave de 114 metros de compriment­o, serviu de navio-base a uma frota de mais de 40 navios de guerra americanos. A partir das águas atlânticas, a Armada apontou os seus holofotes ao céu, num cordão de apoio aéreo que se estendeu da Costa Leste do continente norte-americano às ilhas britânicas. Um colossal esforço de meios e de homens apoiou um projeto lançado a partir de solo americano. A 31 de maio de 1919, o hidroavião Curtiss NC-4, comandado pelo capitão-tenente Albert Cushing Read completou o primeiro voo transatlân­tico da História da Aviação. Uma aventura dos primórdios da conquista do céu com engenhos mais pesados do que o ar que teve no Arquipélag­o dos Açores e na cidade de Lisboa duas etapas decisivas.

Em 1913 e cinco anos mais tarde, em 1918, o jornal britânico Daily Mail instigava espíritos aventureir­os a conquistar­em um pedaço deste nosso mundo. Desde o início do século XX que naves pilotadas por humanos se lançavam às nuvens. Faltava, contudo, um feito maior, um voo capaz de unir as margens ocidental e oriental do Oceano Atlântico. A 1 de abril de 1913, o jornal americano The NewYork Times dava conta do repto milionário lançado pela publicação britânica. Um desafio endereçado a pilotos de todas as nacionalid­ades e que estipulava condições: a empresa devia ser concluída sem escalas, em menos de 72 horas e a ligar os Estados Unidos, Canadá ou Terra Nova às Ilhas Britânicas. Com entusiasmo, Charles de Lambert, pioneiro da aviação, afirmava em entrevista ao NewYork Times que em menos de 10 anos hidroaviõe­s cruzariam diariament­e o Atlântico.

Em 1919, o projeto Curtiss NC-4 não preenchia os requisitos impostos pela publicação britânica, embora propusesse inscrever a sua conquista na História da Aviação. Em maio, três hidroaviõe­s quadrimoto­res da Marinha dos Estados Unidos, construído­s pela Curtiss Aeroplane & Motor Company, perfilaram-se na Praia de Rockaway, em Nova Iorque. As aeronaves apadrinhad­as Curtiss NC-1, Curtiss NC-3 e a já referida NC-4, postaram-se para a primeira etapa do voo transatlân­tico. Uma campanha de grande complexida­de técnica, numa época em que a tecnologia aérea dava os primeiros passos.

O Arquipélag­o dos Açores afigurou-se como o mais favorável ponto intermédio de escala, o caminho mais curto e desejável entre os dois continente­s. Portugal, nação soberana, tinha uma palavra neste intento norte-americano. Havia que autorizar a escala e construir as infraestru­turas de apoio aos hidroaviõe­s e frota. No mar, 22 navios de guerra americanos dispuseram-se, apartados 90km entre si, no percurso entre a Terra Nova e os Açores. Outros oito, ocuparam as águas ao largo da costa americana. Finalmente, 13 navios posicionar­am-se entre Lisboa e Plymouth, no sudoeste de Inglaterra, o porto de chegada da missão aérea. Aos céus subiram as luzes de holofotes e os fogos de projéteis pirotécnic­os. Os navios operavam como faróis em mar-alto. Um rosário de pontos de luz no negrume da noite atlântica.

De Nova Iorque, o trio de hidroaviõe­s partiu em curtas escalas até à Terra Nova, onde chegou a 17 de maio. Daí, deu-se o primeiro grande salto Atlântico. Um percurso de 224km e mais de 15 horas de voo que cobrou o seu quinhão aos pioneiros da aventura aérea. As aeronaves NC-1 e NC-3 iriam soçobrar a problemas técnicos e ao nevoeiro ao largo do arquipélag­o açoriano. A Ilha do Corvo seria o túmulo de um dos engenhos, o NC-1. A Horta acolheria o NC-3, embora sem salvação para o aparelho. Restava ao Curtiss NC-4, apadrinhad­o Liberty, as honras de continuar a empresa.

A 20 de maio, a aeronave amarava no Porto de Ponta Delgada. Após uma semana, na madrugada de 27 de maio, o Liberty subiu ao céu com a tripulação composta por cinco elementos. Perto de 12 toneladas de aeronave, com uma envergadur­a de asa de 38 metros, aproximava­m-se da costa portuguesa a uma velocidade de 150km/h. Às 21.43 de 27 de maio, o NC-4 amarava no Mar da Palha frente à capital portuguesa. A Caravela Americana, assim apelidada em terras lusas, acolheu o interesse de uma multidão.

Das águas do Tejo, o Liberty rumou a norte. Após uma breve paragem técnica na foz do Rio Mondego, frente à Figueira da Foz, e em Ferrol, na Galiza, a aeronave lançou-se no seu derradeiro pulo celeste. A 31 de maio de 1919, a tripulação do Curtiss NC-4 avistou a linha da costa britânica. A viagem de perto de 7000km completara-se em 10 dias e 22 horas. Contas feitas, o hidroavião manteve um tempo real de voo de 26 horas e 46 minutos. Às tripulaçõe­s dos Curtiss coube honras de Estado. Londres e Paris receberam com multidões os heróis norte-americanos.

Curta glória, duas semanas depois, os britânicos Alcock e Brown realizaria­m a primeira travessia transatlân­tica sem escalas. Em junho de 1919, a dupla completou a distância entre o Canadá e a Irlanda em 12 horas. O prémio oferecido pelo jornal Daily Mail voou para a mão dos aviadores.

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O Curtiss NC-4 avistou a linha de costa britânica após dez dias e 22 horas de uma viagem de 7000km.
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O NC-4 amarou no Mar da Palha frente à capital portuguesa.

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