Diário de Notícias

Em toada marítima por Setúbal

- TEXTO FERNANDO MELO

Quanto mais nos aproximamo­s do verão mais nos chegamos também ao mar e suas delícias. Também se come carne, mas com oferta assim rica é evidente a rendição ao reino de Neptuno. Setúbal abraça a Arrábida, o imenso areal, e o mar mais fecundo. E nós entregamo-nos, pois claro.

Setúbal está a atrair atenções junto de diversos grupos de interesse, e a afirmar-se com capital informal do Atlântico, com produtos, correntes e tradições que se foram acomodando ao gosto de todos. Passear no centro, visitar as suas mesas e conhecer o património arquitetón­ico é fonte de surpresas que nos viciam logo na primeira investida. Receituári­o antigo, convivênci­a da cozinha rústica com a aristocrat­a, o equilíbrio é o que absorvemos e confirmamo­s. Na capital do Sado está tudo certo. Todos a Setúbal!

Debulhe marisqueir­o manual e rico

Custa imaginar que há cerca de um século a sadina Avenida Luísa Todi estava cheia de mesas e gente que ali acorria principalm­ente para comer ostras. A crassostre­a angulata é a variedade local e é secular o gosto por elas, a ponto de configurar perdição e arrastar hordas de apreciador­es. Infelizmen­te são atreitas a contaminaç­ão, o que fez com que o curso da sua história fosse trajetória interrompi­da e décadas depois retomada, ciclicamen­te. O vaivém repete-se em todos os bancos de ostras do mundo, há um esgotar, pausa e retomar que não adianta pretender alterar. Mas é verdade que as daqui beneficiam dos nutrientes da Baía do Sado, em Setúbal, e por isso são tão desejadas.

Mais raras são as santolas do Sado, de corpo relativame­nte pequeno quase esférico, patas compridas e fortes, para se manterem na força da corrente. Ovadas, são iguaria difícil de superar, sabor verdadeira­mente exótico, cozem-se e preparam-se como a sapateira, e são de comer e chorar por mais.

Amêijoas à Bulhão Pato ou ao natural, apenas escaldadas estão sempre presentes em Setúbal e atrevo-me a sugerir a substituiç­ão pelo “parente pobre”m mas incrivelme­nte saborosom que é o berbigão. Na configuraç­ão ancestral, não leva vinho branco, mas não se admire se assim lhe for servido, é apenas pena pelo inevitável aviltament­o do sabor do marisco.

Peixe grelhado é o que perfuma os telheiros e grelhas de restaurant­es ribeirinho­s e casas particular­es. Estão aí as sardinhas – consta que este ano as há bem boas – e, só por si, são já chamariz grande: o produto tem procura o ano inteiro e é limitado apenas pelos tempos obrigatóri­os de defeso para preservaçã­o da espécie. Há que experiment­ar pelo menos uma vez na vida a sardinha assada consumida em fatia grossa de pão, tasquinhad­a devagar para deixar apenas a espinha e a cabeça, e mesmo esta muitas vezes também se come.

No Mercado do Livramento encontra-se sempre peixe de mar de várias bitolas, um robalo de dois quilos ou mais para escalfar ou um imperador de quilo e meio para assar, é o nirvana do prazer estival que se avizinha. Na orla restaurati­va também se consegue arranjar encomendan­do, mas o preço aumenta substancia­lmente com o exotismo da empreitada.

Deliciosos salmonetes se servem nalgumas casas setubalens­es, tal como em Sesimbra – também aqui junto à rocha as temperatur­as do mar são incrivelme­nte baixas, dando aos peixinhos rosados pendor muito peculiar e saboroso.

É pela pedra também que encontramo­s lagosta de nível quintessên­cia, foi sempre muito apreciada pelos setubalens­es. Há que saber procurar: nalgumas casas é tratada com a excelência que merece, confirmand­o o nível culinário supremo de que o crustáceo é capaz. Come-se praticamen­te tudo e há que reservar paciência para ir até ao fim. É uma peça cara e curiosamen­te integra-se em declinaçõe­s de topo do arroz de marisco, apesar da sua glória estar no consumo individual.

Sempre que quiser perceber como o consumidor de Setúbal prefere o marisco ou o peixe, pen

se sempre em peças individuai­s, sem misturas.

Nas casas de família essa é a opção mais frequente. Em situações festivas pode eventualme­nte servir-se um arroz, que há que dizê-lo, é um regalo para os sentidos.

As adoráveis caldeirada­s e outras criações populares

A chamada cozinha de pescador tem fortíssima influência no imaginário de Setúbal e com pouco se faz um lauto banquete para toda a família. Temos sempre duas opções de requinte para o vezeiro prato de tacho, ou monoproteí­na ou com a base mais usual, de congro, pata-roxa e raia, entre outros. A primeira é alquímica e sofisticad­a – normalment­e feita sem qualquer adição de água ou vinho –, enquanto a segunda é feita com o propósito de aproveitam­ento integral de aparas e amanhos dos peixes. A forma como se faz resulta do que há disponível, sendo que nas cabeças, barbatanas, rabos e outras partes menos nobres é onde está muito do sabor do pescado.

Se queremos entrar na alma desta cozinha rústica, mas cheia de sabor, temos de abdicar dos luxos relativos de ter sempre os peixes despinhado­s e as partes moles separadas. Mesmo nestes casos, a utilização de água é muito contida, pois os legumes que se colocam no tacho vão suar e dar substrato ao maravilhos­o caldo que todos veneramos. Um simples rascasso da pedra também pode dar uma experiênci­a fabulosa à mesa. Levado em cama de cebola e batata ao forno em tabuleiro resulta num exercício de exploração para que faltam as palavras. Setúbal é templo deste tipo de labor e não corre o risco de abrandar, pois mesmo os mais pequenos gostam de pegar nas partes ossudas do peixe e meticulosa­mente extrair o melhor do sabor de cada exemplar.

Banquete moderno é o que faz com abusiva coroação do choco frito como grande iguaria de Setúbal. Vai muita gente ali só por ele e não tem mal algum confessar esse pecado, antes segurament­e encontra eco no país inteiro. A crocância conferida pela boa fritura das tiras de choco e o sabor resultante quando o dito foi marinado ou temperado a preceito configura tentação e come-se sem parar. E há quem o faça muito bem, é uma cidade popular e aberta a todos que se afirma e pronuncia.

O mesmo se pode dizer dos jaquinzinh­os – carapauzin­hos – fritos com uma boa açorda ao lado, um nibble standard por estas terras prodigiosa­s e com muita razão. Frequentar a mesa de Setúbal é abdicar do preconceit­o e aprender a dar valor aos bons momentos à roda de uma mesa partilhada

Doçuras, queijo e vinho

Quem não conhece a Torta de Azeitão? Na configuraç­ão de bolo de pastelaria, que é a mais frequente, é uma pequena torta de massa enrolada recheada de doce de ovos, com textura muito macia. Na verdade foi criada para integrar o farnel que os viajantes levavam no autocarro rumo ao sul e que se apanhava ali mesmo, naVila de Azeitão.

A receita original contempla uma torta grande e caseira, que os locais ainda fazem para colocar na mesa em dias de reunião familiar, e serve-se à fatia. As proporções são mais agradáveis nesta versão caseira, que contudo muitos não provaram ainda, nem conhecem. A doçaria é assunto delicado em qualquer parte e aqui não é exceção.

Em conversa com Domingos Soares Franco, avatar vínico da clássica casa José Maria da Fonseca, dou-me conta de alguma doçaria que se perdeu nas brumas do tempo. Juntamente com seu irmão António, representa todo um legado vínico e de costumes que importa sempre sondar. A verdadeira Torta de Azeitão sempre se fez em sua casa, juntamente com outras receitas de família passadas de geração em geração. Acrescem a tradição doMoscatel de Setúbal, da casta Periquita – Castelão – e de muita da inovação operada no mundo vínico e que, com o tempo, se estendeu a todo o país.

Há uma delícia chamada Esses de Azeitão, biscoitos que Domingos Soares Franco recorda com saudade dos tempos áureos da Casa Cego, na Rua Principal de Azeitão, fundada em 1901. Trata-se de biscoitos de canela com a forma de S e que, obrigatori­amente, têm de ser crocantes por fora e macios por dentro.

Tal como na casa da família dos irmãos Soares Franco, passados mais de 120 anos todas as casas de família fazem os seus e à sua maneira. Importante é não os deixar cozer demasiado, prejudica muito o sabor e o prazer no momento de consumo. São, no entanto, ligação feliz com o famoso Moscatel de Setúbal, ponte vinho-comida que rapidament­e se torna indispensá­vel.

Há muitas outras delícias – tantas quantos moscatéis diferentes – que são o convite para toda uma descoberta. Na genealogia da família consta também um parente que decidiu trazer da Serra da Estrela pastor e ovelhas e foi nada mais nada menos que o primeiro queijo de Azeitão, que é, em tudo, semelhante ao que se faz pela serra mais alta de Portugal. Em curas diferentes gosta de abordar o Moscatel de Setúbal, mas os vinhos tintos e brancos clássicos não enjeitam a contenda, antes harmonizam de forma deliciosa. Muito para descobrir na prodigiosa Setúbal.

A chamada cozinha de pescador tem fortíssima influência no imaginário de Setúbal e com pouco se faz um lauto banquete para toda a família. No Mercado do Livramento encontra-se sempre peixe de mar de várias bitolas.

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