Diário de Notícias - Dinheiro Vivo
Morrer de cura milagrosa
No início era proibido tocar. Aconselhava-se que prescindíssemos do dinheiro em benefício do cartão. Que desinfetássemos todas as embalagens que entrassem em casa. Que deixássemos roupa e sapatos à porta. A máscara não era essencial... As crianças e assintomáticos raramente contagiavam. E os transportes públicos não ofereciam perigo nenhum. Entretanto vieram notícias de que afinal todas as embalagens são seguras, o dinheiro não representa risco e dificilmente o vírus resiste em tecidos e na maioria das superfícies. As máscaras, porém, são fundamentais para controlar contágios. E depois de meses a andarem livremente, pedem-nos que mantenhamos os miúdos sob controlo porque são um perigo para os mais frágeis.
De caminho, os nossos velhinhos sofrem de solidão nos lares porque é perigoso receber visitas. Mas acabam por morrer infetados por funcionários – que não estiveram em festas selvagens, mas passam diariamente várias horas comprimidos contra o resto da multidão que não tem remédio se não usar transportes públicos.
O governo encolhe os ombros e vai tomando medidas. Álcool não se vende depois das 20.00, ajuntamentos no Coliseu para ouvir música são tranquilos, mas estádios de futebol (mesmo com limites à lotação) são antros de contágio. Os bares, mesmo ao ar livre, não podem funcionar como tal porque o álcool potencia o convívio, mas pode-se beber até às 3.00 no Casino. E a liberdade de fumar em espaços abertos pode ter os dias contados porque, dizem os vizinhos, levar o cigarro à boca aumenta o risco de contágio – o que naturalmente não acontece ao partilhar o prato de azeitonas ou o pão num restaurante.
Todos entendemos que estamos a lidar com o desconhecido e o que hoje julgamos verdade amanhã pode ser desmentido pela ciência. Haja porém a humildade e a transparência de admitir que todos – a começar pela OMS – sabemos ainda pouco sobre a covid. Estamos, e estaremos durante muito tempo ainda, a tentar perceber como o vírus atua, como podemos efetivamente proteger-nos e que efeitos terá a milagrosa vacina. É normal que assim seja.
O que é incompreensível – inadmissível – é que nos queiram a aceitar hoje uma verdade absoluta para amanhã nos garantirem o seu oposto, servindo um e outro de argumento para impor regras em que é difícil encontrar lógica e causando uma destruição económica e social sem precedentes.
Não há um novo normal. O que é preciso – é urgente – é fazer regressar a normalidade com os ajustes mínimos necessários para nos protegermos do vírus sem pôr em causa tudo o resto. Ponderar sequer um novo confinamento é condenar-nos à morte – pela cura, se não pela doença.