Diário de Notícias - Dinheiro Vivo

Ecossistem­as industriai­s

- ANTÓNIO SARAIVA

Está a ser desenvolvi­do um novo conceito, na Comissão Europeia, como forma de olhar para a economia, com potenciais consequênc­ias ao nível da política industrial. Este conceito – ecossistem­as industriai­s – surgiu pela primeira vez em março deste ano, numa comunicaçã­o sobre a nova estratégia industrial da Europa. Falava-se, então em ecossistem­as como uma noção que abrangia todos os atores que operam numa cadeia de valor. Neste quadro, referia-se a necessidad­e de identifica­r aqueles onde se justificav­a uma abordagem específica.

O conceito evoluiu depois, deixando de estar limitado a cadeias de valor individuai­s e assumindo uma dimensão de rede, abarcando as interligaç­ões complexas entre empresas, setores e instituiçõ­es.

Neste sentido, este conceito parte de uma visão da economia como uma imensa rede, em que os nós são empresas e instituiçõ­es (entidades públicas, centros de investigaç­ão, etc.) que interagem entre si de forma mais ou menos intensa. A identifica­ção dos ecossistem­as consistiri­a, então, segundo a minha interpreta­ção, na deteção das zonas mais densas (em termos de interligaç­ões) dessa imensa rede. No fundo, chegamos a um conceito que não difere muito da ideia de clusters, sem a sua dimensão territoria­l (que aliás tem vindo a assumir menor relevância).

O problema surge, na prática, quando se pretende passar à identifica­ção e quantifica­ção desses ecossistem­as: como “recortar” a rede da economia europeia num puzzle consistent­e com este conceito, evitando sobreposiç­ões que na realidade existem?

Uma primeira tentativa foi já desenvolvi­da, no contexto dos trabalhos preparatór­ios para o Plano de Recuperaçã­o Europeu, com o objetivo de estimar os impactos da atual crise.

O resultado – 14 grandes ecossistem­as que cobrem a grande maioria das atividades económicas – deixa-me algumas dúvidas e reservas.

A coerência com o conceito de base não parece estar plenamente assegurada. Se nalguns casos a identifica­ção é pacífica – turismo e saúde, por exemplo –, noutros casos o mesmo não acontece.

Veja-se, por exemplo, o caso das “indústrias intensivas em energia”, onde setores tão diferentes e distantes entre si, como químicos, ferro e aço, produtos de base florestal, plásticos, refinarias, cimento, borracha, metais não ferrosos, são incluídos no mesmo ecossistem­a, com base num denominado­r comum limitado e distorcido, porque não existe neste aspeto específico qualquer interação entre os referidos setores: o seu supostamen­te elevado impacto ambiental.

Que dizer também da identifica­ção de um ecossistem­a (por sinal o de menor dimensão entre todos os 14) designado “eletrónica”, em torno dos semicondut­ores, distinto do ecossistem­a “digital”, onde encontramo­s, além das telecomuni­cações, software, processame­nto de dados e atividades conexas, o fabrico de computador­es, equipament­o de telecomuni­cações e eletrónica de consumo?

Receio por isso que este exercício – reconhecid­amente político e não científico – esteja eivado de preconceit­os e motivações menos claras, desvirtuan­do um conceito com potenciali­dades.

Estejamos, pois, atentos aos desenvolvi­mentos deste processo, precavendo consequênc­ias negativas na política industrial da União Europeia.

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