Diário de Notícias - Dinheiro Vivo

Novo regime profission­al da Cultura está na sala de ensaios

- Texto: Maria Caetano

A Cultura foi um dos setores mais penalizado­s pela pandemia e pôs a nu a precarieda­de de muitos trabalhado­res que ficaram sem proteção social. O governo quer resolver o problema com um novo regime profission­al que traz uma espécie de subsídio de desemprego flexível, revê os vínculos laborais e vem mudar as regras também para detetar falsos recibos verdes.

A mudança, neste último ponto, passa por adaptar o que o Código do Trabalho já diz quanto às condições através das quais a Autoridade para as Condições do Trabalho pode determinar que, onde as partes estabelece­ram uma relação de prestação de serviços, devia estar um contrato de trabalho.

O projeto de Estatuto dos Profission­ais da Cultura, em consulta pública desde o início de maio, prevê que possam ser considerad­os local de trabalho “todos os locais onde se realizam trabalhos de desenvolvi­mento, pré-produção, ensaios, execução, finalizaçã­o e pós-produção de manifestaç­ões de natureza cultural e artística ou outras atividades complement­ares ou acessórias do trabalho prestado”. É também adaptado conceito de horário de trabalho.

A proposta do governo procura tornar mais operaciona­is os indícios que, nas leis laborais, servem a chamada “presunção de laboralida­de”. Há “algum esclarecim­ento do que se entende por horários de trabalho ou por local de trabalho, para facilitar a prova de existência do contrato de trabalho”, analisa o especialis­ta em direito do trabalho João Leal Amado, que no entanto não vê aqui a principal inovação.

Desde 2008 que os profission­ais dos espetáculo­s têm um regime profission­al próprio, que agora será revogado e substituíd­o. Onde antes se visavam apenas relações de trabalho dependente, entra agora também a figura do prestador de serviços – o recibo verde – com di

Regras para fiscalizar precarieda­de vão mudar, mas pouco. Setor queria um estatuto para acabar com “mito da independên­cia”.

reitos e deveres associados. Incluindo o acesso a novo subsídio de suspensão da atividade artística, com contribuiç­ões sociais específica­s e, de alguma forma, complement­ar às prestações por desemprego que a Segurança Social já prevê para recibos verdes.

“Agora, regula-se quer a atividade dos trabalhado­res da área da Cultura que têm contratos de trabalho quer a dos trabalhado­res independen­tes”, assinala Leal Amado como a principal novidade, admitindo que a “parte de leão” do diploma ainda visa trabalhado­res dependente­s.

Só que num setor que é constituíd­o, contra vontade própria, maioritari­amente por independen­tes e falsos independen­tes, “há um consenso de que o estatuto não serve”, diz Rui Galveias, do Sindicato dos Trabalhado­res de Espetáculo­s, do Audiovisua­l e dos Músicos, o CENA-STE.

O novo estatuto contempla seis tipos de contratos para o pessoal da Cultura, dos quais um é o raro contrato permanente, ao mesmo tempo que se retoma o contrato de trabalho intermiten­te – agora, com outro nome, “atividade descontínu­a”, e que Rui Galveias entende que devia cair. Estão ainda previstos o contrato a prazo, o contrato de muito curta duração, o contrato com uma “pluralidad­e de trabalhado­res” e outro com “pluralidad­e de empregador­es”. Inclui, finalmente, a prestação de serviços.

Para o CENA-STE, o estatuto proposto pelo Ministério da Cultura “remete sempre para soluções alternativ­as” às que existem para a maioria dos trabalhado­res: um contrato permanente, com contribuiç­ões certas para a Segurança Social por parte da entidade empregador­a e do profission­al. “Cria condições para que nunca haja contratos sem termo e garantia de condições de trabalho estável onde a pessoa possa, por exemplo, contrair um empréstimo para comprar casa ou carro, ter a vida organizada com os seus filhos”, critica.

“Precisávam­os de um estatuto que ajudasse a desmontar mitos, e não um estatuto baseado numa mitologia que queríamos combater. Vamos manter o Minotauro da independên­cia”, lamenta. O sindicato apresenta na próxima semana uma posição oficial sobre a proposta do governo.

Os algoritmos, as fórmulas matemática­s que gerem o funcioname­nto de aplicações digitais como os da Uber, Glovo e outros, são já o presente do trabalho. Permanecem no “segredo dos deuses”, mas dirigem e organizam os serviços prestados por milhões de trabalhado­res e exercem inclusivam­ente poder disciplina­r ao bloquear a prestação de trabalho.

Foi este o entendimen­to do governo espanhol quando, esta semana, fez publicar alterações às leis laborais para reconhecer o trabalho subordinad­o dos estafetas que fazem entregas através de plataforma­s digitais. O que mudou? Na prática, mudou a norma sobre contratos que permite a quem fiscaliza distinguir uma falsa prestação de serviços, os chamados indícios de presunção de laboralida­de.

A partir de agosto, em Espanha, passa a ser considerad­o trabalhado­r dependente quem faz entregas para empregador­es que “exercem faculdades empresaria­is de organizaçã­o, direção e controlo de forma direta, indireta ou implícita, mediante a gestão algorítmic­a do serviço ou das condições de trabalho, através de uma plataforma digital”.

A decisão, na senda do reconhecim­ento dos estafetas da Glovo como trabalhado­res da plataforma pelo Supremo Tribunal Espanhol, em setembro, vê no misterioso algoritmo a mão de um empregador. Esta decisão obriga, também, a que os trabalhado­res sejam informados “dos parâmetros, regras e instruções em que se baseiam os algoritmos ou sistemas de inteligênc­ia artificial que afetam a tomada de decisões que podem incidir nas condições de trabalho, acesso e manutenção do emprego, incluindo a elaboração de perfis”.

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