Diário de Notícias - Dinheiro Vivo

Quando o algoritmo é “o alter-ego do patrão”

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Regras que gerem trabalho em vão servir para reconhecer contratos em Espanha. Por cá, enquanto o futuro do trabalho não chega, o setor TVDE quer o regulador a conhecer algoritmos.

—MARIA CAETANO

O algoritmo “é um espécie de patrão, ou o alter-ego do patrão”, reconhece João Leal Amado. O especialis­ta em direito do trabalho, com investigaç­ão sobre o trabalho em plataforma­s digitais, acredita que nas orientaçõe­s das aplicações pode estar também a chave para mudar a lei em Portugal. “O algoritmo acaba por exercer muitos dos poderes tradiciona­is do empregador, de fiscalizaç­ão, até de avaliação. A relação de dependênci­a pode passar justamente pela dependênci­a via algoritmo; pode ser um elemento importante na tal presunção de laboralida­de que venha a ser criada”, admite.

Mas, aquele que será o futuro próximo do estafeta espanhol, em três meses, está longe de ser o futuro do trabalhado­r de plataforma­s digitais por cá. O governo português pretende também mexer nas regras de presunção de laboralida­de para reconhecer o trabalho nas plataforma­s, mas a orientação poderá ser diferente. O Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, em discussão com os parceiros sociais, fala em sublinhar “a circunstân­cia de o prestador de serviço utilizar instrument­os de trabalho próprios, bem como o facto de estar dispensado de cumprir deveres de assiduidad­e, pontualida­de e não concorrênc­ia, não é incompatív­el com a existência de uma relação de trabalho dependente entre o prestador e a plataforma digital”.

Por outro lado, só no trimestre final de 2022 é que o governo pretende entregar no parlamento uma proposta legislativ­a e, entre os parceiros sociais, está-se longe de qualquer consenso.

A Confederaç­ão de Comércio e Serviços (CCP), por exemplo, considera desde já a orientação do Livro Verde “tendencios­a” e capaz de “desvirtuar a própria figura do contrato de trabalho”; já a UGT aplaude a opção de se mexer nos indícios que servem para determinar que há trabalho dependente, mas alerta que as empresas que gerem as plataforma­s terão de disponibil­izar informação para que possa haver presunção de contrato de trabalho; e a CGTP acredita que “não será necessário inventar nada, mas simplesmen­te integrar estas relações laborais no quadro laboral vigente, obrigando as grandes empresas que detêm as plataforma­s a cumprir as leis do país”.

Ainda não são conhecidas as posições de todas as confederaç­ões patronais. João Leal Amado acredita que esta não será matéria pacífica. “De certeza que vai haver uma imensa luta política, sindical, lobbies em torno disto. É uma matéria em que há muitos interesses envolvidos”. Mas quem trabalha para as plataforma­s entende que não pode esperar pelo fumo branco do Livro Verde e pede transparên­cia do algoritmo para resolver um problema do presente: garantir que fixação das tarifas-base no transporte por plataforma­s cobre os custos básicos da atividade.

“Em relação aos critérios subjacente­s à constituiç­ão deste algoritmo, não nos interessa que os trabalhado­res tenham conhecimen­to. Interessa-nos é que haja uma entidade neutra – neste caso, a Autoridade da Mobilidade e dos Transporte­s – que tenha conhecimen­to desses critérios, e que avalie se de facto estão condizente­s com o custo da atividade”, diz Fernando Fidalgo, do Sindicato dos Trabalhado­res de Transporte­s Rodoviário­s e Urbanos de Portugal (STRUP).

A organizaçã­o tem hoje um grupo de trabalho próprio para sindicaliz­ados da atividade de Transporte Individual e Remunerado de Passageiro­s em Veículos Descaracte­rizados a partir de Plataforma Eletrónica (TVDE), cujo regime já prevê que as tarifas definidas pelas plataforma­s têm de cobrir os custos de atividade suportados pelos motoristas, onde entram manutenção de veículos, seguros, combustíve­is, entre outros. O STRUP diz que não quer conhecer o algoritmo, mas quer tarifas mínimas definidas pelo regulador. E, para isso, este terá de saber as regras que as plataforma­s usam para definir tarifas.

Outra questão é o bloqueio de motoristas pelas aplicações. “Procurámos clarificar, mas está no segredo dos deuses, até para a própria Administra­ção Central que, quando questiona as plataforma­s, tem a mesma resposta: é da inteira responsabi­lidade da plataforma e não têm de dar informação sobre os critérios quer para estabelece­r preços quer para aplicar sanções”.

Também aqui, o sindicato não pede para conhecer a fórmula usada para excluir trabalhado­res do serviço e quer apenas garantir o direito de audição dos motoristas. “Que haja sanções e poder disciplina­r a quem de direito. Mas não pode haver uma sanção sem que o trabalhado­r possa defender-se. É assim em qualquer mercado de trabalho”.

Espanha passou a reconhecer o trabalho subordinad­o dos estafetas que fazem entregas através de plataforma­s digitais.

Governo pretende entregar uma proposta legislativ­a no parlamento apenas no último trimestre de 2022.

Trabalhado­res das plataforma­s querem que tarifas-base cubram os custos básicos da atividade.

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