Diário de Notícias - Dinheiro Vivo

BCE AVISA EMPRESAS COM LUCROS MUITO ALTOS SÃO PROBLEMA PARA INFLAÇÃO

Se salários e lucros dispararem para acompanhar a inflação anormalmen­te alta – está já em 9,1% em Portugal, 9% na zona euro –, Lagarde pode acelerar ainda mais as taxas de juro para arrefecer os preços. Texto:

- Luís Reis Ribeiro

Não são apenas os aumentos salariais que preocupam os banqueiros centrais da zona euro. Desde sempre, os altos responsáve­is da política monetária têm alertado contra efeitos de segunda ordem que dão ainda mais gás à inflação e, no limite, dificultam o trabalho do Banco Central Europeu (BCE), manter a inflação à volta dos 2%.

Os salários costumam ser os principais (muitas vezes únicos) visados na narrativa. Mas na nova era monetária há um segundo alvo: os empresário­s que aumentam margens de lucro de forma significat­iva. Isso também pode das problemas no controlo da inflação, avisa o BCE. Tal como os salários, as margens das empresas (lucros) são preços a ter em conta na política monetária.

Se forem muito elevados no atual contexto de inflação já de si anormalmen­te alta (9% na zona euro, 9,1% em Portugal, na leitura de julho), isso pode contribuir para que o banco central acelere ou aumente ainda mais as taxas de juro de modo a arrefecer a economia e os preços.

No boletim económico de agosto, o BCE indica que os lucros das empresas (sobretudo excessivos e desligados dos fundamento­s económicos) também fazem parte da equação e são um risco que pode alimentar a cavalgada dos preços. “Uma inflação alta e persistent­e aumenta o risco de efeitos de segunda ordem que se materializ­am através de salários mais elevados e margens de lucro mais elevadas”, considera o estudo preparado pelos economista­s Niccolò Battistini, Helen Grapow, Elke Hahn e Michel Soudan.

Mas porquê o foco nos lucros se no passado o cerne do problema da sobrealime­ntação da inflação residia sobretudo nos salários? Vários economista­s consideram que algo estrutural mudou em relação ao choque petrolífer­o dos anos 70. Os economista­s do BCE consideram que o peso dos salários é hoje menor no cardápio de custos que influencia­m a inflação fruto das reformas estruturai­s que tiveram lugar nas últimas décadas e que foram retirando poder aos trabalhado­res. A desregulam­entação das leis do trabalho, a redução das taxas de sindicaliz­ação, a redução do pelo da contrataçã­o coletiva, são fatores apontados. Outros dizem ser herança da pandemia.

Nesta investigaç­ão publicada no boletim de agosto, refere-se que, “em comparação com os anos 70, a evolução recente do peso dos salários e do deflator do produto interno bruto (PIB) foi silenciada, ao passo que os efeitos secundário­s dos preços mais altos da energia sobre a inflação têm estado em grande parte ausentes desde 1999”. “Após a recente subida dos preços da energia, o deflator do PIB da zona euro aumentou considerav­elmente menos que o Índice Harmonizad­o de Preços no Consumidor” e “comparativ­amente ao que aconteceu nos anos 70, a evolução moderada do peso dos salários e do deflator do PIB pode resultar de várias alterações económicas de longo prazo”.

Os peritos do BCE dizem que, por exemplo, ao nível da estrutura da produção pode haver “menor dependênci­a energética, maior integração nas cadeias de valor globais”. E ao nível das instituiçõ­es do mercado de trabalho, tudo aponta para “indexação salarial menos generaliza­da e menor grau de sindicaliz­ação”. Os trabalhado­res parecem ter cada vez menos poder negocial, basicament­e, inferem os peritos.

E na política monetária existe agora “uma estratégia mais clara destinada a controlar a inflação”.

Tudo considerad­o, eles defendem que, porventura, os salários sejam hoje um fator inflacioni­sta menos ameaçador do que antes e que as margens das empresas (ou alguns setores mais poderosos nesta capacidade de estabelece­r esses preços) passem a ser seguidas com atenção.

Herança da pandemia e um novo imposto

O norte-americano Josh Bivens, diretor de investigaç­ão no Economic Policy Institute (EPI) e professor da Universida­de de Maryland (EUA), não tem dúvidas. Olhando para a realidade da economia dos EUA, Bivens conclui que “os lucros das empresas têm contribuíd­o desproporc­ionadament­e para a inflação”.

A ideia do economista é que durante a pandemia o emprego foi relativame­nte protegido e o desemprego acabou por ficar estável. Ou seja, o fator trabalho nunca foi realmente um constrangi­mento e não foi decisivo para determinar o nível de inflação atual, como no passado.

O que mudou foram os congestion­amentos crescentes no fornecimen­to de matérias-primas e componente­s a nível global. Isso começou a ser visível em 2021, bem antes da guerra da Rússia contra a Ucrânia, com falta de matérias alimentare­s, fertilizan­tes, sementes, componente­s automóveis, semicondut­ores, capacidade de transporte global (fretes marítimos, por exemplo). Segundo o professor, “desde a recessão da covid-19, iniciada no segundo trimestre de 2020, os preços globais no setor das empresas não financeira­s subiram a uma taxa anualizada de 6,1% -- um valor muito mais pronunciad­o face ao cresciment­o de preços de 1,8% que caracteriz­ou o

Para o economista-chefe do EPI, “um imposto temporário sobre os lucros em excesso poderia compensar este fenómeno.

ciclo económico pré-pandémico de 2007-2019”.

“De forma impression­ante, mais de metade deste aumento (53,9%) pode ser atribuído a margens de lucro mais amplas, sendo que os custos de mão-de-obra contribuír­am menos de 8%. Isto não é normal”, atira. Antes, “de 1979 a 2019, os lucros só contribuír­am com cerca de 11% para o cresciment­o dos preços e os custos da mão-de-obra com mais de 60%”, indicam os cálculos do professor. “Os inputs não laborais – indicador decente para aferir as perturbaçõ­es nas cadeias de abastecime­nto – estão também a aumentar os preços mais do que o habitual na recuperaçã­o económica atualmente em curso”.

“Em recuperaçõ­es anteriores, o cresciment­o da procura interna foi lento e o desemprego elevado nas fases iniciais da recuperaçã­o. Isto levou as empresas a ficarem desesperad­as por mais clientes, mas também lhes permitiu liderar as negociaçõe­s com os potenciais empregados, o que levou a um cresciment­o moderado dos preços e à supressão dos salários”, conclui. “Desta vez, a pandemia impulsiono­u a procura nos setores dos bens duradouros e o emprego recuperou rapidament­e”. No entanto, “o estrangula­mento na satisfação desta procura do lado da oferta não foi na mão-de-obra”. “Foi na capacidade de transporte e noutras áreas não laborais. As empresas que, por acaso, tinham oferta disponível acabaram por obter um enorme poder de fixação de preços junto dos clientes” quando a procura disparou. Para o economista-chefe do EPI, “um imposto temporário sobre os lucros em excesso poderia compensar este fenómeno”.

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