Diário de Notícias - Dinheiro Vivo
Manuel Reis Campos “Não podemos abrir as portas aos estrangeiros, sobretudo a espanhóis”
O pedido para prolongar o PRR além de 2026 está em Bruxelas, mas o presidente da AICCOPN defende que é preciso trabalhar com o atual calendário. As empresas querem avançar com obras.
Osetor da construção pode estar salvaguardado da recessão que se perspetiva para 2023, mas para isso é necessário que sejam lançados os concursos e entregues as obras, diz Manuel Reis Campos, presidente da Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas (AICCOPN). Até julho, os contratos celebrados apresentaram uma quebra de 50%.
Alertou logo no início de 2022 para a urgência de o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) estar calendarizado até fim do ano. Faltam quatro meses. É suficiente para pôr em marcha o PRR?
A questão do PRR é extremamente delicada e de grande preocupação. Nós temos de planear, calendarizar e contratualizar até ao fim deste ano. Estes atrasos conduzem a uma pressão para que não se perca os fundos. Nós precisamos de ter estas três fases concluídas. Os donos de obra pública – autarquias, institutos, a Infraestruturas de Portugal (IP) – têm de conseguir fazer isto de forma a não se perder os fundos. Ainda temos para executar seis mil milhões de euros até 2023, do Portugal 2020 – a taxa de execução é de 75%. Temos de nos focar em terminar o Portugal 2020, que é muito dinheiro. Seis mil milhões é o dobro ou o triplo do orçamento das obras públicas nacionais. E no PRR. Não me cabe na cabeça que não seja possível no tempo que falta até fim do ano. Temos de usar estes 4 meses.
O pedido de prolongamento dos prazos já está em cima da mesa...
Ouve-se dizer que pode ser adiado. Mas nós temos de ter a capacidade de planear, calendarizar e contratualizar até ao final do ano. Temos de cumprir. O país tem condições para isso, é uma questão de trabalhar. O problema põe-se mais com as câmaras e os projetos de habitação. Os institutos e a IP têm total competência para pôr isto a andar. E as empresas querem fazer as obras. Nós não podemos partir do princípio que vai haver prolongamento dos prazos. Temos de trabalhar com o calendário que existe. Nós estamos a reclamar este planeamento e calendarização há muito tempo. Não faz sentido que haja atrasos e que o país possa perder um tostão neste desafio do PRR.
Quais são os riscos que estes atrasos podem trazer ao setor?
Estamos a sentir que se pode vir a optar por processos de maior dimensão, que não se ajustam à dimensão das nossas empresas. É grave. O que pode vir a suceder é que ao invés de termos nas obras públicas determinado número de lotes, e as empresas concorrerem aos lotes, termos só um. Esta situação não se adequa à realidade da maioria das empresas do setor. Estamos a falar de grandes obras – da ferrovia, do metro, da rodovia... O código dos contratos públicos prevê que haja distribuição em lotes, que uma obra grande possa ser dividida, e dividida está ao alcance da nossa estrutura. Não podemos abrir as portas aos concorrentes estrangeiros, sobretudo aos espanhóis, relegando as empresas portuguesas para um papel de subempreiteiros. Isso é a destruição do tecido empresarial. E nós não podemos de forma nenhuma caminhar nesse sentido. Temos o desafio de responder ao PRR, é fundamental, mas não podemos ir por esse caminho. A falta de planeamento pode levar-nos por um caminho pouco transparente, a que haja dúvidas sobre os processos e a que sejam as grandes empresas estrangeiras a usufruir do plano de investimentos. Esta é a nossa preocupação. Nós não precisamos de concorrência. O setor é constituído por milhares de empresas, há empresas grandes, mas não tantas assim. Só há uma Mota-Engil, uma Teixeira Duarte, uma Dst, uma Casais.
Em maio, o governo deu uma resposta à subida abrupta dos custos da construção com a aprovação do regime extraordinário de revisão de preços nos contratos públicos. A medida termina no fim do ano. Está preocupado?
Foi uma boa medida até pela celeridade com que foi aprovada. Foi extremamente positiva. Estivemos em contacto permanente com o Ministério das Infraestruturas e conseguimos repor a situação e salvaguardar um problema muito complicado. Abril foi o descalabro total. Acho que até agora todas as empresas com contratos públicos pediram revisão de preços e as que não pediram vão pedir. O que está estabelecido é que a medida vigore até ao fim do ano e depois logo se vê se será necessário prorrogação ou se termina. Ninguém consegue avaliar o que vai acontecer em termos de guerra e preços. Há custos que tendem para alguma normalidade. Se compararmos com dezembro de 2021, há uma queda de 8% no barão para aço na bolsa de futuros de Londres, de 15% no preço do alumínio e de 17% no cobre. Se falarmos em relação aos valores de setembro de 2020, ainda continuamos com aumentos de 40%. Isto em dólares, porque se falar em euros esta diminuição de 8% transforma-se num aumento de 6%. O aço de barão, fundamental para a construção, está agora nos 658 dólares a tonelada. Em abril, custava 936. Temos depois aqueles custos e materiais mais genéricos, como a energia, os betuminosos, as madeiras, os vidros, as cerâmicas, que continuam com preços altos. Acredito que no final do ano vamos continuar a aplicar o regime, porque não estou a ver que esta questão da guerra na Ucrânia se resolva rapidamente. Passaram seis meses e nada diz que vá haver entendimento, pelo contrário. Quando apresentámos ao governo o pacote de medidas para apoiar o setor, esta era a mais importante, mas não era a única. O setor precisa de mais. Andamos a pedir para o imobiliário o fim do AIMI. O facto de pedirmos isto todos os dias não nos vai cansar. Isso é certo. O imobiliário não pode ser a fonte de receitas para todas as coisas. Há também o problema do IVA na construção. A taxa deveria ser reduzida.
Outro grande problema do setor é a falta de mão-de-obra. Como estão a resolver?
De facto, um dos grandes problemas é a mão-de-obra. E aumenta quando as outras atividades também precisam de mão-de-obra, como a restauração, a hotelaria, a indústria, o comércio – e o nosso setor não é o mais atrativo. Em 2019, estimámos que havia necessidade de 60 mil trabalhadores. Mas depois veio a pandemia e, em consequência, o PRR. Hoje, estimamos que precisamos de 80 mil. E aonde é que os vamos buscar? Os que vieram de Angola ou Moçambique e passaram por cá, mas com a anterior crise foram para a Europa, já não regressam. Lá também há PRR e com outra dimensão. Não podemos contar com esses trabalhadores. Temos de ir buscar os 24 449 trabalhadores do nosso setor que estão inscritos nos centros de emprego. Só aí estão um 1/3 dos que necessitamos. O governo também assinou protocolos de mobilidade com Angola, Moçambique, Cabo Verde, Brasil, Marrocos e Índia, e deu a possibilidade às empresas que estão internacionalizadas e que têm trabalhadores no exterior de os trazer para cá. E depois precisamos de uma terceira vaga, que é a da reconversão. Fala-se que esta crise em que vamos entrar, da energia, pode provocar desemprego noutras atividades. Nós somos um setor que precisa de trabalhadores e estamos em condições de preparar essas pessoas. Temos dois centros de formação. E nós precisamos de mão-de-obra qualificada, mas tam
“O que pode vir a suceder é que ao invés de termos determinado número de lotes, e as empresas concorrerem a eles, termos um só. Esta situação não se adequa à realidade da maioria das empresas do setor.”
“O que está previsto no PRR é o bastante para preencher a capacidade das empresas até 2026. Há um conjunto de projetos no PRR e no PNI2030 que convergem muito para o nosso setor. Está protegido da recessão.”
bém de não qualificada. Em simultâneo, o setor está a fazer uma capacitação. Há evolução, principalmente nas grandes empresas, que estão a adotar métodos e competências totalmente diferentes. Também iremos colmatar o problema por essa via. Atualmente, 84% das empresas associadas apontam a mão-de-obra e subida abrupta das matérias-primas como os maiores
constrangimentos à atividade.
Há vários sinais que apontam para uma nova recessão. O aumento das taxas de juro pode afetar o crescimento do setor? A banca está mais cautelosa?
Com o aumento dos juros, os custos vão subir. Quem é prejudicado é sempre o utente, seja particular ou o Estado. Neste momento, não se justifica e não faz sentido que haja alteração de comportamento da banca para com as empresas da construção e obras públicas. O setor tem assegurada uma posição até 2030 que lhe dá capacidade para cumprir. Tem um grande desafio que é o PRR e o Plano de Nacional de Investimentos 2030 (PNI2030). Isso quer dizer que o setor está imune à recessão que já se avizinha em 2023?
Nós vamos fazer praticamente o mesmo. Talvez menos casas. Mas o que está previsto no PRR é bastante para preencher a capacidade das empresas até 2026. Há um conjunto de projetos no PRR e no PNI2030 que convergem para o nosso setor. Não diria que está imune mas está mais protegido da recessão. Se as coisas forem bem feitas – e não sou eu que o digo, diz o Banco de Portugal, diz a Comissão Europeia –, não temos de estar tão preocupados.
E neste ano? Como se está a comportar o setor?
Está a crescer. Mas quando falamos em crescimento, estamos a falar no imobiliário e na reabilitação. No ano passado, construímos 25 mil fogos e houve 165 mil transações, num volume de 31 mil milhões de euros. Este ano, já temos mais transações e vamos ter mais obra nova. No fim do primeiro semestre, temos 15 558 fogos novos licenciados, o que corresponde a um crescimento de 4,4% face ao homólogo. Desde 2014, quando tivemos apenas 6700 fogos novos, a evolução é positiva. Em 2017, houve 14 mil, em 2021, 28 mil. Neste ano, vamos produzir mais casas. A atividade da reabilitação urbana teve em julho crescimento homólogo de 5,3% e em junho já tinha um aumento de 6,2%. A carteira de encomendas, que tinha apresentado uma ligeira descida em janeiro e março, corrigiu e já cresceu 8,7%. A produção contratada está quase nos dez meses. O nível de atividade e de encomendas consolida a posição da reabilitação, que teve durante algum tempo problemas, com a subida das matérias-primas e a falta de mão-de-obra. O índice de preços de habitação no primeiro trimestre valorizou-se 12,9%. Há mais casas construídas, o preço da habitação cresceu, o número de alojamentos familiares transacionados também. No ano passado, até março, foram transacionados 34 614, neste 43 544. Há um aumento de 25,8% que é significativo. O valor das transações também cresceu. Este ano, atingiu os 8,1 mil milhões de euros, o que traduz um aumento de 44% face ao trimestre homólogo, mas uma diminuição de 1,7% em cadeia. Na construção, temos crescimento no primeiro trimestre de 5,3% em termos homólogos e variação em cadeia da ordem dos 3,9%. O crescimento do VAB acelerou em termos homólogos 3,9%. E Portugal continua a ser um país atrativo em termos de investimento privado. Pode acontecer que a subida da taxa de juro faça que as pessoas deixem de apostar tanto no imobiliário, mas não me parece que suceda agora. Está a falar das obras privadas. E nas públicas?
Nas obras públicas a situação é diferente. O valor dos concursos promovidos é 15% menor do que no ano passado. Em julho de 2021 tínhamos um acumulado de 2,5 mil milhões de euros, neste ano temos 2,14 mil. Mas temos uma situação pior, que são os concursos celebrados, aqueles que contam para nós. Temos menos 50% do que no ano passado, 1,27 mil milhões. Esta situação, por um lado entende-se – no princípio do ano não havia governo, estávamos em eleições, depois de concretizadas foi preciso aprovar o Orçamento do Estado, veio a guerra. Os donos de obra pública não foram capazes ou não tiveram possibilidade de entregar as obras e celebrar os contratos. Neste ano, tivemos um primeiro semestre mau em obras públicas. Colocou-se a questão se o setor tinha capacidade para realizar as que aí vinham. Hoje, a este ritmo, esse problema nem se põe. O segundo semestre tem de ser de recuperação desta situação. Já existe uma certa normalização dos preços, o setor sabe que, em princípio, não se vão agravar, embora também não seja crível que haja abaixamentos fortes, mas pelo menos o decreto de revisão de preços dá possibilidade aos construtores de concorrer.
Esta paragem das obras públicas terá consequências no ano?
O setor cresceu 2,2% em 2020, 4,3% em 2021 e prevemos neste ano 5,5%. Não temos dúvidas de que vai ter este crescimento, alavancado nas obras públicas e privadas. A carteira está estabilizada. O que não faz sentido é que se estejam a promover obras e não se entreguem. Se há uma ponte ou um caminho-de-ferro, se há projeto, concurso, concorrentes, se se passou esses trâmites todos é porque a obra é necessária. Quanto mais depressa se fizer o concurso, mais depressa se dá a possibilidade à empresa de planear a sua atividade.