Diário de Notícias - Dinheiro Vivo
Valham-nos as contas certas
Num tempo de enorme incerteza, o Orçamento do Estado que Fernando Medina apresentou pontualmente – sem o habitual carnaval de inexplicáveis adiamentos até à última hora – tem um foco bem definido: mostrar que Portugal está empenhado em cumprir as regras. Redução da dívida e do défice a todo o custo, porque é certo que as coisas vão correr mal e será preciso um torniquete para travar a sangria.
Não é pessimismo, é realismo. Os problemas de fora contagiam-nos sempre com maior gravidade e quando vêm aliados a dificuldades nos nossos principais parceiros, como hoje acontece com a crise energética e a inflação, é irrealista e irresponsável assumir ou tentar convencer alguém que por milagre vamos escapar.
O mal é real e é bem pior do que nos mostram, escondendo o pleno potencial da desgraça atrás de previsões para a inflação – e tudo o resto é hoje direta consequência dela – que destoam das que fazem instituições como o Banco de Portugal e o FMI, que veem a escalada de preços a durar mais e a ser mais dura do que antecipa o governo.
Os dinheiros públicos são finitos, na proporção dos impostos que os portugueses, pessoas e empresas, têm capacidade de entregar ao Estado – das mais elevadas cargas fiscais do bloco europeu –, e as regras europeias que nos dão uma vantagem que não teríamos sozinhos implicam um patamar mínimo. Não há, portanto, margem para aventuras demagógicas que marcaram os tempos da geringonça e é isso que o governo assume finalmente neste Orçamento.
Depois, há a questão política, que vem retirar racionalidade à equação para colher dividendos na popularidade. Privilegia-se o crescimento das PME e incentiva-se o seu desenvolvimento, mas continua-se a penalizar o lucro com impostos, taxas e taxinhas, muitas delas extraordinárias mas eternizadas (neste OE, não só se renova as contribuições especiais da banca, das farmacêuticas, dos aparelhos médicos, da energia, como se cria duas novas, a taxa das celuloses e a windfall tax). Há apoios que dão um pouco a muitos, em vez de dar mais aos que precisam e no momento em que precisam. São os sinais contraditórios que geram dificuldades além das óbvias, desde logo para as pessoas.
Problema 1: Fazer este caminho sem explicar por que é inevitável uma dose de austeridade, preferindo dourar uma pílula que todos sabemos ser amarga só para ficar bem na fotografia, é desonesto. E a ilusão não dura. Veja-se o caso das pensões, em que se fala num aumento superior a 4% para quem ganha até 650 euros, mas quando se faz as contas ao ano se torna óbvio que o rendimento em 2023 será muito ligeiramente superior ao de 2022: serão 9492 euros contra 9425 recebidos neste ano, uma diferença total de 67 euros.
Problema 2: Nesta ânsia de querer mostrar-se amigo das famílias e alimentar a popularidade junto da classe média (onde está a fatia gorda dos votos), alimenta-se a desigualdade. Ainda que todos estejamos a sofrer as consequências da inflação, um bónus 125 euros para quem ganha o salário mínimo representa um acréscimo de 20% que lhe permite comprar o que já não podia (carne ou peixe para os filhos); para quem recebe 2500 euros, é mais um jantar fora. Melhor seria, por exemplo, dar um extra a quem verdadeiramente precisa e baixar impostos de certos produtos, tornando-os acessíveis para todos sem pôr em causa a receita fiscal.
E depois há o capítulo das empresas. É verdade que há investimento, mas ele virá de fundos europeus que têm sido sucessivamente adiados por gestão ineficiente e barreiras burocráticas (questões de licenciamento, parametrização, demasiado controlo a priori e fiscalização deficiente, politização de dossiers e processos...).
É um facto que há benefícios fiscais para puxar pela transformação energética e pelos salários, mas trazem agarradas tantas condicionantes e adversativas, além da complexidade habitual dos processos, que dificilmente produzirão grandes efeitos. Se uma empresa, apesar de todas as dificuldades, aumentar os trabalhadores em 5%, não só uma parte do valor segue diretamente para o Estado como não terá o benefício em IRC das que cheguem ou ultrapassem os 5,1% estabelecidos no Acordo de Rendimentos. Se um construtor quiser fazer um edifício na Sé não consegue pôr-lhe painéis solares porque há leis contra a descaracterização dos centros históricos e se o pretender aplicar fora dessa zona terá de esperar um ano pelas autorizações.
É este tipo de absurdos geradores de ineficiências e contravapor que devia ser combatido com políticas públicas e reformas há muito atrasadas, deixando ao Orçamento do Estado a gestão orçamental balizada pelas diretrizes de incentivo às transformações necessárias para a nossa economia ser verdadeiramente competitiva e ter condições para crescer. É o que não se faz.
Valham-nos as contas certas.