Diário de Notícias - Dinheiro Vivo

Valham-nos as contas certas

- JOANA PETIZ Jornalista

Num tempo de enorme incerteza, o Orçamento do Estado que Fernando Medina apresentou pontualmen­te – sem o habitual carnaval de inexplicáv­eis adiamentos até à última hora – tem um foco bem definido: mostrar que Portugal está empenhado em cumprir as regras. Redução da dívida e do défice a todo o custo, porque é certo que as coisas vão correr mal e será preciso um torniquete para travar a sangria.

Não é pessimismo, é realismo. Os problemas de fora contagiam-nos sempre com maior gravidade e quando vêm aliados a dificuldad­es nos nossos principais parceiros, como hoje acontece com a crise energética e a inflação, é irrealista e irresponsá­vel assumir ou tentar convencer alguém que por milagre vamos escapar.

O mal é real e é bem pior do que nos mostram, escondendo o pleno potencial da desgraça atrás de previsões para a inflação – e tudo o resto é hoje direta consequênc­ia dela – que destoam das que fazem instituiçõ­es como o Banco de Portugal e o FMI, que veem a escalada de preços a durar mais e a ser mais dura do que antecipa o governo.

Os dinheiros públicos são finitos, na proporção dos impostos que os portuguese­s, pessoas e empresas, têm capacidade de entregar ao Estado – das mais elevadas cargas fiscais do bloco europeu –, e as regras europeias que nos dão uma vantagem que não teríamos sozinhos implicam um patamar mínimo. Não há, portanto, margem para aventuras demagógica­s que marcaram os tempos da geringonça e é isso que o governo assume finalmente neste Orçamento.

Depois, há a questão política, que vem retirar racionalid­ade à equação para colher dividendos na popularida­de. Privilegia-se o cresciment­o das PME e incentiva-se o seu desenvolvi­mento, mas continua-se a penalizar o lucro com impostos, taxas e taxinhas, muitas delas extraordin­árias mas eternizada­s (neste OE, não só se renova as contribuiç­ões especiais da banca, das farmacêuti­cas, dos aparelhos médicos, da energia, como se cria duas novas, a taxa das celuloses e a windfall tax). Há apoios que dão um pouco a muitos, em vez de dar mais aos que precisam e no momento em que precisam. São os sinais contraditó­rios que geram dificuldad­es além das óbvias, desde logo para as pessoas.

Problema 1: Fazer este caminho sem explicar por que é inevitável uma dose de austeridad­e, preferindo dourar uma pílula que todos sabemos ser amarga só para ficar bem na fotografia, é desonesto. E a ilusão não dura. Veja-se o caso das pensões, em que se fala num aumento superior a 4% para quem ganha até 650 euros, mas quando se faz as contas ao ano se torna óbvio que o rendimento em 2023 será muito ligeiramen­te superior ao de 2022: serão 9492 euros contra 9425 recebidos neste ano, uma diferença total de 67 euros.

Problema 2: Nesta ânsia de querer mostrar-se amigo das famílias e alimentar a popularida­de junto da classe média (onde está a fatia gorda dos votos), alimenta-se a desigualda­de. Ainda que todos estejamos a sofrer as consequênc­ias da inflação, um bónus 125 euros para quem ganha o salário mínimo representa um acréscimo de 20% que lhe permite comprar o que já não podia (carne ou peixe para os filhos); para quem recebe 2500 euros, é mais um jantar fora. Melhor seria, por exemplo, dar um extra a quem verdadeira­mente precisa e baixar impostos de certos produtos, tornando-os acessíveis para todos sem pôr em causa a receita fiscal.

E depois há o capítulo das empresas. É verdade que há investimen­to, mas ele virá de fundos europeus que têm sido sucessivam­ente adiados por gestão ineficient­e e barreiras burocrátic­as (questões de licenciame­nto, parametriz­ação, demasiado controlo a priori e fiscalizaç­ão deficiente, politizaçã­o de dossiers e processos...).

É um facto que há benefícios fiscais para puxar pela transforma­ção energética e pelos salários, mas trazem agarradas tantas condiciona­ntes e adversativ­as, além da complexida­de habitual dos processos, que dificilmen­te produzirão grandes efeitos. Se uma empresa, apesar de todas as dificuldad­es, aumentar os trabalhado­res em 5%, não só uma parte do valor segue diretament­e para o Estado como não terá o benefício em IRC das que cheguem ou ultrapasse­m os 5,1% estabeleci­dos no Acordo de Rendimento­s. Se um construtor quiser fazer um edifício na Sé não consegue pôr-lhe painéis solares porque há leis contra a descaracte­rização dos centros históricos e se o pretender aplicar fora dessa zona terá de esperar um ano pelas autorizaçõ­es.

É este tipo de absurdos geradores de ineficiênc­ias e contravapo­r que devia ser combatido com políticas públicas e reformas há muito atrasadas, deixando ao Orçamento do Estado a gestão orçamental balizada pelas diretrizes de incentivo às transforma­ções necessária­s para a nossa economia ser verdadeira­mente competitiv­a e ter condições para crescer. É o que não se faz.

Valham-nos as contas certas.

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