Diário de Notícias - Dinheiro Vivo
Um livro branco sobre o serviço público?
Na proposta de Orçamento do Estado para 2023, na área dedicada à Cultura (que tem a tutela da comunicação e audiovisual), o governo faz várias propostas interessantes. Por exemplo, prevê um novo Plano Nacional para a Literacia Mediática – e recordo que a Marktest divulgou recentemente um estudo onde se refere que cerca de 6 milhões de portugueses costumam ler notícias online, o que significa 78,4% dos utilizadores da internet.
Outra das propostas é a criação de uma Comissão de Livro Branco sobre o serviço público de rádio e televisão. A intenção é boa, mas Pedro Adão e Silva faria bem em balizar os seus objetivos, até porque a realidade mudou muito. A situação atual é bem diferente do que se passava aquando dos levantamentos sobre o setor feitos há uns anos. Os hábitos de consumo de televisão e rádio alteraram-se de forma substancial desde meados da década passada.
O consumo da Pay TV, o conjunto dos canais de cabo, cresceu muito: segundo a Anacom, no primeiro semestre de 2022, 94,8% das famílias tinham acesso aos canais de Pay Tv. Ao mesmo tempo, as plataformas de streaming também cresceram – segundo a Marktest, cerca de 33% dos portugueses subscrevem estes serviços. O resultado é que, atualmente, mais de metade do universo de telespectadores não segue os chamados canais generalistas – RTP1 e 2, SIC e TVI. Na semana passada, estes quatro canais juntos tiveram um share de 41,8% e o conjunto da plataforma TDT registou apenas 1,4%. Estes números comparam com 40,6% para o conjunto dos canais de cabo e 16,2% para as plataformas de streaming de diversos tipos. Ou seja, se juntarmos o cabo e o streaming, obtemos 56,2% de share. No cabo, os canais da RTP são praticamente irrelevantes, embora a sua plataforma de streaming, a RTP Play, seja um dos pontos mais positivos da atuação do operador de serviço público nos últimos anos. Ela é, neste momento, uma referência do setor em Portugal.
Falo das audiências porque este é sempre um dos pontos críticos quando se discute o serviço público de televisão e rádio e há que encará-lo sem receios – até porque, voltando aos números da semana passada, a RTP1 registou 8,9% de share e a RTP2 0,7%, que comparam com 16,4% da SIC e 15,8% da TVI. Estes números mostram bem o dilema que existe: o serviço público deve ser concorrencial ou complementar? Deve o Estado, acionista único da RTP, preconizar uma programação de que tipo?
Há um falso pudor do acionista em entrar neste debate – sob o pretexto de não interferir. Mas o ponto que defendo é que deve mesmo dar uma orientação, sem receios, dizendo o que pretende do serviço público e da sua presença no mercado audiovisual, de forma transversal, em todos os seus canais de televisão e também de rádio.
Passemos então à rádio. Também aqui se registaram alterações significativas, igualmente propulsionadas pelo digital. O confinamento, aliado à alteração de hábitos e modos de trabalho, provocou um aumento do consumo de rádio nas emissões online – e também aqui a concorrência de serviços de streaming, como o Spotify, se faz sentir. Por outro lado, foi introduzido um novo fator, incipiente há uns anos, mas significativo hoje: os podcasts. Há um ressurgimento do áudio, da presença da voz, há autores de podcasts que têm um número de seguidores que faz inveja a algumas estações de rádio. Também isto deve ser motivo de reflexão no serviço público – que aliás tem na já citada RTP Play uma excelente ferramenta nesta área. Vou apenas pegar num exemplo do que pode ser relevante e diferenciador no serviço público de rádio. Há um programa na Antena Um, E Deus Criou O Mundo, que promove o diálogo entre representantes de comunidades religiosas distintas, cristãos, judeus e muçulmanos, que semanalmente expõem os seus pontos de vista. É um programa de informação de espírito ecuménico, que promove o diálogo inter-religioso de forma rara no contexto europeu – de tal forma que, em 2018, o Papa concedeu uma audiência aos protagonistas do programa.
E Deus Criou O Mundo é, de facto, um exemplo de inclusão e diversidade que só fica bem ao serviço público. É este caminho, da complementaridade e diferença que, creio, pode e deve ser estimulado. Espero que do Livro Branco saiam ideias luminosas, baseadas na realidade e no interesse público.