Diário de Notícias - Dinheiro Vivo

O sonho de Costa e o bem real nuclear francês

- JOANA PETIZ Jornalista

Acrise energética que deixou a Europa a tremer silenciou os profetas do fim do mundo, com o risco real de apagões e congelamen­to da economia e da sociedade a abafar o clamor pela descarboni­zação selvagem. Ganhou-se, à custa da ameaça, o afastament­o que devia ter guiado desde o primeiro momento uma revolução que é necessária e urgente, mas cujos prazos não podem ser definidos por histeria coletiva mas assegurar que se toma o tempo necessário à ponderação que permitirá escolher caminhos que não somem erros ao erro, nem gerem graves problemas de exclusão, pobreza e sustentabi­lidade, ameaçando o que a Europa conquistou no último século. E a própria transição.

Por muito que se repita que a transforma­ção energética foi até acelerada pelas crises recentes, é inegável o abrandamen­to – vemo-lo todas as semanas, da subsidiaçã­o de combustíve­is fósseis para garantir a sobrevivên­cia de pessoas e empresas aos sucessivos reagendame­ntos da Alemanha para encerrar as duas centrais nucleares ainda em atividade. E até na aparente cedência francesa à construção de um pipeline que permita abastecer energetica­mente a Europa a partir da Península Ibérica, o Corredor Verde, ligando Celorico da Beira a Zamora e depois Barcelona a Marselha por via marítima.

As aparências iludem – e António Costa, orgulhoso da conquista das “bases de um entendimen­to sobre interligaç­ões energética­s” entre os três países, devia manter alguma prudência... afinal, ele era íntimo do governo de José Sócrates que em 2009 se congratula­va pelo acordo alcançado para o MidCat, nesta semana definitiva­mente enterrado sem que tivesse saído uma só linha do papel ao fim de 13 anos e dezenas de reuniões e anúncios dos chefes de governo.

O gasoduto a atravessar os Pirenéus para levar o gás importado pela Península Ibérica para o resto da Europa foi sempre inviabiliz­ado por Paris, suportado por uma produção energética capaz de responder aos problemas de abastecime­nto da Europa – captando a riqueza para os franceses – graças ao investimen­to em nuclear. É útil recordar que França anunciou há três meses a nacionaliz­ação da sua companhia energética de forma a garantir, com o beneplácit­o de uma Europa ameaçada, a expansão significat­iva da capacidade da maior produtora de energia nuclear do mundo. Em 2021, as receitas da EDF subiram 22,4% para 84 mil milhões (são 70 vezes as receitas da EDP Renováveis, a mais valiosa do PSI20) e os lucros octuplicar­am.

Há mais sinais de que este novo acordo pode morrer bem antes de sequer avistar a praia. A começar pela indefiniçã­o: quando vai avançar?; quanto vai custar?; quem vai pagar?; quanto tempo vai levar a estar pronto? “Falta acertar os pormenores”, disse Costa, sem perder o sorriso enquanto enumerava prazos para investimen­tos, repartição dos custos, volume de recursos económicos alocados, enfim, tudo.

Por outro lado, o pipeline é suportado no gás, que a própria Comissão frisou ser fonte de energia de transição para a eletrifica­ção da economia europeia, com sentença de morte em 2050 (não deve então representa­r mais de 10% das fontes, diz a Agência Internacio­nal de Energia), e no hidrogénio verde, tecnologia que está pouco além dos primeiros passos e ninguém pode dizer com segurança que será a solução de futuro, por muito que entusiasme os responsáve­is políticos nacionais.

Some-se a inflação e a incerteza à equação, adicione-se a pouca vontade expressa de muitos euroburocr­atas de financiar um projeto de custos expressivo­s e as consequênc­ias da alternativ­a de endividame­nto para cumprir esse grande investimen­to e ficam mais dúvidas do que certezas de que o Corredor Verde possa ter um fim diferente do MidCat. Até porque França, no centro da Europa Comunitári­a, vai bem a tempo de vender a energia nuclear como solução rápida e ideal para a crise energética.

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