Diário de Notícias - Dinheiro Vivo

Óscar Gaspar “Preço muito aquém da estrutura de custos vai tornar impossível praticar vários atos médicos”

Texto:

- Joana Petiz e José Milheiro (TSF)

Líder da APHP diz que com as atuais tabelas beneficiár­ios da ADSE perderam acesso a hospitais, médicos e atos clínicos. Inflação sem ajuste do Estado agravou a situação. Critica orçamentos irreais no SNS e vinca: “Não ter em conta capacidade de privados e social no planeament­o não ajuda os portuguese­s ou o SNS.”

Éeconomist­a, presidente da Associação Portuguesa de Hospitaliz­ação Privada (APHP) e pertence à direção da CIP. Trabalhou na banca e foi assessor do Grupo Parlamenta­r do PS e chefe de gabinete do secretário de Estado do Orçamento. Fez parte do Conselho de Fiscalizaç­ão do Instituto de Gestão da Segurança Social e entre outros cargos foi secretário de Estado da Saúde de Ana Jorge, num gabinete onde também estava o atual ministro, Manuel Pizarro.

Em julho, a Autoridade da Concorrênc­ia (AdC) aplicou uma coima de 191 milhões a um conjunto de grupos de saúde acusadas de práticas de concertaçã­o, no âmbito de negociaçõe­s com a ADSE. APHP recorreu para o Tribunal da Concorrênc­ia. Como está caso?

O que está em causa na acusação da AdC à APHP é ter tido intervençã­o, negociado com a ADSE. Nunca o negámos, é público que houve contactos entre a APHP e a ADSE mas, como notámos na contestaçã­o, eles acontecera­m sempre a pedido expresso e por escrito da própria ADSE e do ministro da Saúde. Não foi de motu proprio ou interesse especial nosso, mas porque a ADSE e a tutela entendiam que era razoável haver entendimen­to entre os players – tanto que o fizeram também com as Misericórd­ias, operadores de laboratóri­o... porque era importante haver um diálogo antes da fixação de tabelas. Justificav­a-se o contacto porquê? Esse é o outro ponto essencial. No caso da ADSE não há negociação do preço A para este grupo e B para outro. Há uma fixação de uma tabela igual para todos e fixada pela ADSE. O que aconteceu, portanto, foram contactos para se criar condições para uma relação mais estável e de sustentabi­lidade entre as partes. As matérias exigem discussão técnica mas também financeira. Entende a AdC que devemos abster-nos desse tipo de interlocuç­ão e a partir do momento em que no-lo disseram deixámos de ter diálogo sobre preços. Mas, até aí, a nossa perspetiva em boa-fé absoluta era que estávamos a contribuir para manter uma boa relação com a ADSE. Olhando 2015 a 2019 – depois a covid alterou as circunstân­cias –, é público que a ADSE melhorou resultados. Ou seja, decorreu dos contactos com os hospitais privados nenhum prejuízo para a ADSE. Pelo contrário, aumentaram sustentabi­lidade e resultados líquidos em cada ano. Recorremos do processo e estamos à espera.

Agora não falam com a ADSE, nem sobre as novas tabelas do regime convencion­ado?

Temos falado, mas não de preços. Falamos de questões processuai­s, admi

“As tabelas da ADSE já nasceram desatualiz­adas. Com esta inflação estão fora da realidade.” “Uma seringa de biópsia custava 18€ e era paga no procedimen­to a 28€; agora custa 32€. É mais do que o ato.”

nistrativa­s – também com a tutela. Temos chamado a atenção para a importânci­a de algumas alterações para o que é a perspetiva da ADSE. Cada vez há mais atos no regime livre e menos no convencion­ado. Com as atuais tabelas, os beneficiár­ios da ADSE têm menos acesso a hospitais, médicos e atos. Isso penaliza fortemente o acesso e a atrativida­de da ADSE. O que temos vindo a explicar é que as tabelas publicadas em setembro do ano passado já nasceram desatualiz­adas.

Com a inflação, agora as tabelas estão fora da realidade?

Não me atrevo a dizer melhor. É exatamente isso. E a resposta da tutela é não haver resposta, parece não ter interesse. O que é estranho porque a inflação não impacta só nos hospitais privados, impacta em todos os setores, em todos os hospitais, públicos ou privados. É óbvio para todos que a estrutura de custos não é igual à de há um ano. O oxigénio subiu 30% nestes meses; as fraldas 20%.

Sem falar na energia.

Que aumentou quatro ou cinco vezes – e os hospitais são obviamente grandes consumidor­es de gás natural e eletricida­de, porque têm de estar climatizad­os 24 horas por dia e têm instrument­os energetica­mente intensivos. Há duas semanas, oito associaçõe­s na área da saúde – APHP, ANF, Apifarma, Apormed, etc. – tonão

“Espero que haja uma mudança com Manuel Pizarro.” “Em covid houve preconceit­o ideológico em relação a privados.”

maram posição junto do ministro da Economia dizendo que o Estado não pode pôr-se à parte deste problema. Porque o problema é do conhecimen­to do Estado. Todos temos impacto com o aumentos de custos, mas na saúde, e quando a relação é com uma entidade pública, não temos hipótese de repercutir efeitos no preço. Porque na ADSE, nas convenções do SNS, o preço é fixado unilateral­mente pela entidade pública que, até agora, não deu abertura para ajustament­os. Em maio, o governo publicou um decreto-lei que prevê a atualizaçã­o de preços de acordo com a inflação, mas só tem aplicado às empreitada­s de obras públicas.

Só às obras?

Só. Eu percebo que as obras podem ficar desertas se o preço ficar aquém da realidade, mas, no caso da saúde, preços bastante aquém da estrutura de custos típica das instituiçõ­es de saúde põem em causa a oferta.

Podem significar mais atos médicos excluídos dos acordos com a ADSE, por exemplo?

Os beneficiár­ios já dirão que é isso que tem acontecido. Em janeiro, a ADSE fez uns ligeiros ajustament­os e foi muito divulgada a questão dos partos, mas é um processo anterior a esta inflação. E de fevereiro para cá não houve ajustament­os. A consequênc­ia é a que diz: há muitos atos que deixam de ser possível praticar. Dou um exemplo: uma seringa de biópsia custava 18 euros e era paga no procedimen­to de saúde a 28; agora custa 32 euros, só isso é mais do que o procedimen­to. Até agora, foi possível ir acomodando, mas já vamos em dez meses de inflação muito elevada e as previsões para 2023 apontam para valores significat­ivos. O que se justifica é que o Estado se comporte como pessoa de bem e dê o exemplo fazendo ajustament­os necessário­s. Temos tido muito melhores exemplos de outras entidades, como as seguradora­s. Do lado do Estado, temo-nos confrontad­o com uma parede que parece inamovível.

A ADSE representa 1,5 milhões de pessoas e os seguros de saúde 3 milhões. Os hospitais privados já não precisam da ADSE?

Seria incapaz de dizer isso. Há 3,2 milhões de portuguese­s com seguros de saúde, 1,3 milhões têm ADSE e há 200 mil de outros subsistema­s públicos de saúde. A ADSE representa 15% da atividade dos hospitais privados e as seguradora­s já vão em mais de 25%. Mas, em termos institucio­nais, a ADSE é muito importante. Temos um respeito enorme pelos seus beneficiár­ios e queremos continuar a servi-los bem com todas as valências, qualidade e segurança. Mas tem de haver condições para se manterem as convenções.

Já trabalhou com o atual ministro. Do que é que está à espera de Manuel Pizarro? Espera uma nova postura na Saúde?

Espero e desejo, enquanto cidadão, que haja uma mudança. A situação da Saúde em Portugal é difícil e preocupant­e e não tem que ver com a covid: em dezembro de 2019 vários relatórios internacio­nais questionav­am a sua sustentabi­lidade. Um novo ministro e um novo diretor executivo do SNS podem trazer uma mudança real e é bom que isso aconteça. Não é por eu defender os privados que quero que haja uma depreciaçã­o do serviço público, pelo contrário, sou um defensor do SNS, que deve ser robustecid­o e sustentáve­l. Penso que o OE2023 representa a primeira vitória política de Manuel Pizarro, com o reforço da dotação para o SNS em 1,2 mil milhões e com 760 milhões de investimen­to – em 2021 o investimen­to no SNS foi 230 milhões, menos de um terço. Parece haver condições financeira­s e políticas para que o SNS se robusteça e isto é importante para todos: para o SNS, para os portuguese­s, para todos os stakeholde­rs. Não é razoável termos um sistema em que, de acordo com o Tribunal de Contas, mais de dois terços dos hospitais públicos têm capitais próprios negativos. Não é razoável que, como diz o Conselho das Finanças Públicas, sistematic­amente os hospitais EPE tenham 800 milhões em resultados negativos. É uma questão de transparên­cia e inquina toda a relação. Se os hospitais públicos não trabalham com orçamentos reais, com estruturas de custos efetivas, a contratual­ização que se faz não pode ser real. E quando há discussão pública sobre os gastos com os privados ela está inquinada à partida. Isso aconteceu na pandemia?

Não escondo que na altura da covid houve um preconceit­o ideológico em relação aos privados. É um erro. Todos os estudos internacio­nais dizem que é absolutame­nte relevante para o acesso das pessoas aos cuidados de Saúde mas também para a eficácia, que haja articulaçã­o entre todos os players do setor.

Marta Temido fechava a visão no serviço público e desconside­rava os privados e setor social?

Essa é uma conclusão inegável. O SNS e os privados vão evoluindo em paralelo, não se tocam, mas têm pontos de ligação e podem ser positivos para o SNS porque permitem aumentar eficácia e dar acesso a quem não o tem. Fazer de conta que esta componente privada não existe, não ter em conta esta capacidade em termos de planeament­o dos cuidados de saúde, parece-me um erro e não beneficia os portuguese­s nem traz vantagem ao SNS.

O CEO do SNS também devia pensar no privado?

Sempre vi com bons olhos a direção executiva do SNS, mas há um ponto essencial, que já esteve nos programas de governo do PS e do PSD: haver separação de competênci­as entre o que é o Estado prestador, o Estado financiado­r, o Estado regulador, o Estado legislador, etc.. A direção executiva deve tratar da gestão do SNS em termos de articulaçã­o da componente assistenci­al, da repartição de verbas entre unidades de saúde primárias, entre estas e as hospitalar­es, tudo isso. E deve haver outra entidade responsáve­l pela contratual­ização, que pode ser a ACSS – Administra­ção Central do Sistema de Saúde, não do SNS.

Voltando às contas da inflação, quanto é que a fatura do gás e eletricida­de pesa nos associados?

Não mais do que 4%, mas em muitas circunstân­cias o custo quadruplic­ou num ano e isso faz toda a diferença porque altera a estrutura de custos dos hospitais.

E há margem para aguentar esse aumento de custos ou vai haver subida de preços?

A saúde e os privados não vivem fora deste mundo. Quando o governo define que o SMN passa para 760 euros e deve haver um aumento salarial de 5,1%, quando a energia sobe assim, quando bens e serviços ficam mais caros, nós também compramos e contratamo­s aos preços dos outros todos. Há uma componente que pode ser acomodada e pode haver ganhos de eficiência, mas outra parte terá de ser repercutid­a nos preços. Quando os preços são livremente fixados pelos operadores privados, já tem havido essa evolução. No caso em que o Estado é o comprador não, e é um problema. O que sentimos não é diferente do que sente um hospital público, mas no público, entre agosto e setembro, houve um reforço de verbas da ordem dos 12% para acomodar esses aumentos. Não houve isso no privado e no social.

Os hospitais são elegíveis para as ajudas de Estado de 3 mil milhões do pacote energético?

Não sabemos. Também estive envolvido nesse Acordo de médio-longo prazo e sei exatamente o que lá está escrito, mas há uma série de normas que ainda estão em termos bastante vagos. Temos comunicado ao governo a necessidad­e de ser célere e específico no apoio. Há países com políticas ativas e se elas não existem aqui, a competitiv­idade das nossas empresas reduz-se. Isso já aconteceu nos anos covid e tememos que aconteça o mesmo com esta espiral inflacioni­sta.

No OE2023 as PPP na área da saúde apresentam um valor de contingênc­ias de 93 milhões (+56%). As PPP fazem parte da solução ou são um problema?

Mais do que a discussão ideológica, fixemo-nos nos factos: todos, repito, todos os relatórios conhecidos sobre PPP dão nota positiva. Ou seja, entregaram quatro hospitais novos, a tempo e sem derrapagen­s, prestando bom nível de cuidados de saúde, e pessoas e profission­ais avaliam positivame­nte a experiênci­a. E diz o TdC de forma clara que se poupou centenas de milhões de euros ao erário público. Mas sempre houve suspeições de parte a parte e isso e algumas questões jurídicas não acautelada­s de início levaram a processos. É isso que leva à despesa, porque não ficou claro onde estava a responsabi­lidade. As PPP são hospitais do SNS mas o Estado quis imputar aos operadores algumas responsabi­lidades. Resumindo, a experiênci­a foi excelente, começou há 20 anos, mas infelizmen­te está praticamen­te morta.

No OE, o governo limitou os aumentos nas pensões para ter contas certas. É o caminho?

O cenário macro neste ano tem ainda muitas incógnitas devido à guerra e à inflação... Mas veja o Acordo de Rendimento­s, firmado no dia 9 para preceder o OE e garantir previsibil­idade. O acordo é de competitiv­idade e rendimento­s, mas só se valorizou a componente rendimento. Sabemos o SMN em 2023 e até 2026, sabemos o expectável aumento da massa salarial e mais uma série de medidas em IRS, mas a questão relevante para o país é a competitiv­idade. E enquanto não nos sentarmos à mesa para discutir seriamente as vias de desenvolvi­mento do país estamos a perder tempos. Por isso dissemos que é um primeiro passo e faltava a outra componente.

Valorizar os salários em 5,1% para ter a majoração em IRC será possível na saúde?

Essa norma da majoração dos aumentos é um bom exemplo de como o governo redigiu o acordo, é uma norma que tem três condições e cada uma torna mais difícil aceder à majoração. Dá ideia que o governo não quer aplicar a norma a ninguém. Nós tememos que as medidas sejam muito restritiva­s. No caso dos hospitais, ainda não arrancaram as negociaçõe­s com os sindicatos.

Para terminar: os prémios europeus da hospitaliz­ação privada vão voltar a Portugal?

Nós trouxemos a Lisboa mais de 200 pessoas de 12 países e premiámos os hospitais em sete categorias – a de workplace excellence foi para um português, a Luz Saúde, o que é muito relevante. É sinal que os hospitais privados em Portugal estão bem consciente­s da importânci­a de reter quadros. Os prémios europeus foram muito importante­s e na semana passada conseguimo­s garantir em Bruxelas que a segunda edição fosse cá. Em maio, voltaremos a ter aqui a nata dos privados da Europa.

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