Diário de Notícias - Dinheiro Vivo
Óscar Gaspar “Preço muito aquém da estrutura de custos vai tornar impossível praticar vários atos médicos”
Texto:
Líder da APHP diz que com as atuais tabelas beneficiários da ADSE perderam acesso a hospitais, médicos e atos clínicos. Inflação sem ajuste do Estado agravou a situação. Critica orçamentos irreais no SNS e vinca: “Não ter em conta capacidade de privados e social no planeamento não ajuda os portugueses ou o SNS.”
Éeconomista, presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (APHP) e pertence à direção da CIP. Trabalhou na banca e foi assessor do Grupo Parlamentar do PS e chefe de gabinete do secretário de Estado do Orçamento. Fez parte do Conselho de Fiscalização do Instituto de Gestão da Segurança Social e entre outros cargos foi secretário de Estado da Saúde de Ana Jorge, num gabinete onde também estava o atual ministro, Manuel Pizarro.
Em julho, a Autoridade da Concorrência (AdC) aplicou uma coima de 191 milhões a um conjunto de grupos de saúde acusadas de práticas de concertação, no âmbito de negociações com a ADSE. APHP recorreu para o Tribunal da Concorrência. Como está caso?
O que está em causa na acusação da AdC à APHP é ter tido intervenção, negociado com a ADSE. Nunca o negámos, é público que houve contactos entre a APHP e a ADSE mas, como notámos na contestação, eles aconteceram sempre a pedido expresso e por escrito da própria ADSE e do ministro da Saúde. Não foi de motu proprio ou interesse especial nosso, mas porque a ADSE e a tutela entendiam que era razoável haver entendimento entre os players – tanto que o fizeram também com as Misericórdias, operadores de laboratório... porque era importante haver um diálogo antes da fixação de tabelas. Justificava-se o contacto porquê? Esse é o outro ponto essencial. No caso da ADSE não há negociação do preço A para este grupo e B para outro. Há uma fixação de uma tabela igual para todos e fixada pela ADSE. O que aconteceu, portanto, foram contactos para se criar condições para uma relação mais estável e de sustentabilidade entre as partes. As matérias exigem discussão técnica mas também financeira. Entende a AdC que devemos abster-nos desse tipo de interlocução e a partir do momento em que no-lo disseram deixámos de ter diálogo sobre preços. Mas, até aí, a nossa perspetiva em boa-fé absoluta era que estávamos a contribuir para manter uma boa relação com a ADSE. Olhando 2015 a 2019 – depois a covid alterou as circunstâncias –, é público que a ADSE melhorou resultados. Ou seja, decorreu dos contactos com os hospitais privados nenhum prejuízo para a ADSE. Pelo contrário, aumentaram sustentabilidade e resultados líquidos em cada ano. Recorremos do processo e estamos à espera.
Agora não falam com a ADSE, nem sobre as novas tabelas do regime convencionado?
Temos falado, mas não de preços. Falamos de questões processuais, admi
“As tabelas da ADSE já nasceram desatualizadas. Com esta inflação estão fora da realidade.” “Uma seringa de biópsia custava 18€ e era paga no procedimento a 28€; agora custa 32€. É mais do que o ato.”
nistrativas – também com a tutela. Temos chamado a atenção para a importância de algumas alterações para o que é a perspetiva da ADSE. Cada vez há mais atos no regime livre e menos no convencionado. Com as atuais tabelas, os beneficiários da ADSE têm menos acesso a hospitais, médicos e atos. Isso penaliza fortemente o acesso e a atratividade da ADSE. O que temos vindo a explicar é que as tabelas publicadas em setembro do ano passado já nasceram desatualizadas.
Com a inflação, agora as tabelas estão fora da realidade?
Não me atrevo a dizer melhor. É exatamente isso. E a resposta da tutela é não haver resposta, parece não ter interesse. O que é estranho porque a inflação não impacta só nos hospitais privados, impacta em todos os setores, em todos os hospitais, públicos ou privados. É óbvio para todos que a estrutura de custos não é igual à de há um ano. O oxigénio subiu 30% nestes meses; as fraldas 20%.
Sem falar na energia.
Que aumentou quatro ou cinco vezes – e os hospitais são obviamente grandes consumidores de gás natural e eletricidade, porque têm de estar climatizados 24 horas por dia e têm instrumentos energeticamente intensivos. Há duas semanas, oito associações na área da saúde – APHP, ANF, Apifarma, Apormed, etc. – tonão
“Espero que haja uma mudança com Manuel Pizarro.” “Em covid houve preconceito ideológico em relação a privados.”
maram posição junto do ministro da Economia dizendo que o Estado não pode pôr-se à parte deste problema. Porque o problema é do conhecimento do Estado. Todos temos impacto com o aumentos de custos, mas na saúde, e quando a relação é com uma entidade pública, não temos hipótese de repercutir efeitos no preço. Porque na ADSE, nas convenções do SNS, o preço é fixado unilateralmente pela entidade pública que, até agora, não deu abertura para ajustamentos. Em maio, o governo publicou um decreto-lei que prevê a atualização de preços de acordo com a inflação, mas só tem aplicado às empreitadas de obras públicas.
Só às obras?
Só. Eu percebo que as obras podem ficar desertas se o preço ficar aquém da realidade, mas, no caso da saúde, preços bastante aquém da estrutura de custos típica das instituições de saúde põem em causa a oferta.
Podem significar mais atos médicos excluídos dos acordos com a ADSE, por exemplo?
Os beneficiários já dirão que é isso que tem acontecido. Em janeiro, a ADSE fez uns ligeiros ajustamentos e foi muito divulgada a questão dos partos, mas é um processo anterior a esta inflação. E de fevereiro para cá não houve ajustamentos. A consequência é a que diz: há muitos atos que deixam de ser possível praticar. Dou um exemplo: uma seringa de biópsia custava 18 euros e era paga no procedimento de saúde a 28; agora custa 32 euros, só isso é mais do que o procedimento. Até agora, foi possível ir acomodando, mas já vamos em dez meses de inflação muito elevada e as previsões para 2023 apontam para valores significativos. O que se justifica é que o Estado se comporte como pessoa de bem e dê o exemplo fazendo ajustamentos necessários. Temos tido muito melhores exemplos de outras entidades, como as seguradoras. Do lado do Estado, temo-nos confrontado com uma parede que parece inamovível.
A ADSE representa 1,5 milhões de pessoas e os seguros de saúde 3 milhões. Os hospitais privados já não precisam da ADSE?
Seria incapaz de dizer isso. Há 3,2 milhões de portugueses com seguros de saúde, 1,3 milhões têm ADSE e há 200 mil de outros subsistemas públicos de saúde. A ADSE representa 15% da atividade dos hospitais privados e as seguradoras já vão em mais de 25%. Mas, em termos institucionais, a ADSE é muito importante. Temos um respeito enorme pelos seus beneficiários e queremos continuar a servi-los bem com todas as valências, qualidade e segurança. Mas tem de haver condições para se manterem as convenções.
Já trabalhou com o atual ministro. Do que é que está à espera de Manuel Pizarro? Espera uma nova postura na Saúde?
Espero e desejo, enquanto cidadão, que haja uma mudança. A situação da Saúde em Portugal é difícil e preocupante e não tem que ver com a covid: em dezembro de 2019 vários relatórios internacionais questionavam a sua sustentabilidade. Um novo ministro e um novo diretor executivo do SNS podem trazer uma mudança real e é bom que isso aconteça. Não é por eu defender os privados que quero que haja uma depreciação do serviço público, pelo contrário, sou um defensor do SNS, que deve ser robustecido e sustentável. Penso que o OE2023 representa a primeira vitória política de Manuel Pizarro, com o reforço da dotação para o SNS em 1,2 mil milhões e com 760 milhões de investimento – em 2021 o investimento no SNS foi 230 milhões, menos de um terço. Parece haver condições financeiras e políticas para que o SNS se robusteça e isto é importante para todos: para o SNS, para os portugueses, para todos os stakeholders. Não é razoável termos um sistema em que, de acordo com o Tribunal de Contas, mais de dois terços dos hospitais públicos têm capitais próprios negativos. Não é razoável que, como diz o Conselho das Finanças Públicas, sistematicamente os hospitais EPE tenham 800 milhões em resultados negativos. É uma questão de transparência e inquina toda a relação. Se os hospitais públicos não trabalham com orçamentos reais, com estruturas de custos efetivas, a contratualização que se faz não pode ser real. E quando há discussão pública sobre os gastos com os privados ela está inquinada à partida. Isso aconteceu na pandemia?
Não escondo que na altura da covid houve um preconceito ideológico em relação aos privados. É um erro. Todos os estudos internacionais dizem que é absolutamente relevante para o acesso das pessoas aos cuidados de Saúde mas também para a eficácia, que haja articulação entre todos os players do setor.
Marta Temido fechava a visão no serviço público e desconsiderava os privados e setor social?
Essa é uma conclusão inegável. O SNS e os privados vão evoluindo em paralelo, não se tocam, mas têm pontos de ligação e podem ser positivos para o SNS porque permitem aumentar eficácia e dar acesso a quem não o tem. Fazer de conta que esta componente privada não existe, não ter em conta esta capacidade em termos de planeamento dos cuidados de saúde, parece-me um erro e não beneficia os portugueses nem traz vantagem ao SNS.
O CEO do SNS também devia pensar no privado?
Sempre vi com bons olhos a direção executiva do SNS, mas há um ponto essencial, que já esteve nos programas de governo do PS e do PSD: haver separação de competências entre o que é o Estado prestador, o Estado financiador, o Estado regulador, o Estado legislador, etc.. A direção executiva deve tratar da gestão do SNS em termos de articulação da componente assistencial, da repartição de verbas entre unidades de saúde primárias, entre estas e as hospitalares, tudo isso. E deve haver outra entidade responsável pela contratualização, que pode ser a ACSS – Administração Central do Sistema de Saúde, não do SNS.
Voltando às contas da inflação, quanto é que a fatura do gás e eletricidade pesa nos associados?
Não mais do que 4%, mas em muitas circunstâncias o custo quadruplicou num ano e isso faz toda a diferença porque altera a estrutura de custos dos hospitais.
E há margem para aguentar esse aumento de custos ou vai haver subida de preços?
A saúde e os privados não vivem fora deste mundo. Quando o governo define que o SMN passa para 760 euros e deve haver um aumento salarial de 5,1%, quando a energia sobe assim, quando bens e serviços ficam mais caros, nós também compramos e contratamos aos preços dos outros todos. Há uma componente que pode ser acomodada e pode haver ganhos de eficiência, mas outra parte terá de ser repercutida nos preços. Quando os preços são livremente fixados pelos operadores privados, já tem havido essa evolução. No caso em que o Estado é o comprador não, e é um problema. O que sentimos não é diferente do que sente um hospital público, mas no público, entre agosto e setembro, houve um reforço de verbas da ordem dos 12% para acomodar esses aumentos. Não houve isso no privado e no social.
Os hospitais são elegíveis para as ajudas de Estado de 3 mil milhões do pacote energético?
Não sabemos. Também estive envolvido nesse Acordo de médio-longo prazo e sei exatamente o que lá está escrito, mas há uma série de normas que ainda estão em termos bastante vagos. Temos comunicado ao governo a necessidade de ser célere e específico no apoio. Há países com políticas ativas e se elas não existem aqui, a competitividade das nossas empresas reduz-se. Isso já aconteceu nos anos covid e tememos que aconteça o mesmo com esta espiral inflacionista.
No OE2023 as PPP na área da saúde apresentam um valor de contingências de 93 milhões (+56%). As PPP fazem parte da solução ou são um problema?
Mais do que a discussão ideológica, fixemo-nos nos factos: todos, repito, todos os relatórios conhecidos sobre PPP dão nota positiva. Ou seja, entregaram quatro hospitais novos, a tempo e sem derrapagens, prestando bom nível de cuidados de saúde, e pessoas e profissionais avaliam positivamente a experiência. E diz o TdC de forma clara que se poupou centenas de milhões de euros ao erário público. Mas sempre houve suspeições de parte a parte e isso e algumas questões jurídicas não acauteladas de início levaram a processos. É isso que leva à despesa, porque não ficou claro onde estava a responsabilidade. As PPP são hospitais do SNS mas o Estado quis imputar aos operadores algumas responsabilidades. Resumindo, a experiência foi excelente, começou há 20 anos, mas infelizmente está praticamente morta.
No OE, o governo limitou os aumentos nas pensões para ter contas certas. É o caminho?
O cenário macro neste ano tem ainda muitas incógnitas devido à guerra e à inflação... Mas veja o Acordo de Rendimentos, firmado no dia 9 para preceder o OE e garantir previsibilidade. O acordo é de competitividade e rendimentos, mas só se valorizou a componente rendimento. Sabemos o SMN em 2023 e até 2026, sabemos o expectável aumento da massa salarial e mais uma série de medidas em IRS, mas a questão relevante para o país é a competitividade. E enquanto não nos sentarmos à mesa para discutir seriamente as vias de desenvolvimento do país estamos a perder tempos. Por isso dissemos que é um primeiro passo e faltava a outra componente.
Valorizar os salários em 5,1% para ter a majoração em IRC será possível na saúde?
Essa norma da majoração dos aumentos é um bom exemplo de como o governo redigiu o acordo, é uma norma que tem três condições e cada uma torna mais difícil aceder à majoração. Dá ideia que o governo não quer aplicar a norma a ninguém. Nós tememos que as medidas sejam muito restritivas. No caso dos hospitais, ainda não arrancaram as negociações com os sindicatos.
Para terminar: os prémios europeus da hospitalização privada vão voltar a Portugal?
Nós trouxemos a Lisboa mais de 200 pessoas de 12 países e premiámos os hospitais em sete categorias – a de workplace excellence foi para um português, a Luz Saúde, o que é muito relevante. É sinal que os hospitais privados em Portugal estão bem conscientes da importância de reter quadros. Os prémios europeus foram muito importantes e na semana passada conseguimos garantir em Bruxelas que a segunda edição fosse cá. Em maio, voltaremos a ter aqui a nata dos privados da Europa.