Diário de Notícias - Dinheiro Vivo

Luís Cabral “Portugal devia pensar em parcerias público-privadas nas escolas do básico e secundário”

- —LUÍS REIS RIBEIRO luis.ribeiro@dinheirovi­vo.pt

Professor de Economia da Universida­de de Nova Iorque e da AESE Business School considera que combater a inflação com um banco central grande, como o BCE, é mais fácil. E diz que Portugal tem das melhores posições geográfica­s do mundo nesta “revolução digital”. Atualmente, existe um dilema que é combater a inflação – bancos centrais a subirem taxas de juro – sem derrubar o cresciment­o económico. Quão preocupado­s devemos estar com este custo de oportunida­de?

Esse custo, de facto, sempre existiu, o custo de oportunida­de de cresciment­o e inflação. Falou-se muito disso nos anos 70, aquando dos choques petrolífer­os, depois deixou-se falar porque a inflação foi desaparece­ndo. Nos últimos anos, praticamen­te não existiu, por assim dizer. Nós passámos três décadas sem saber o que é inflação ao ponto de, mesmo nas universida­des, nós já não sabermos se vale a pena falar sobre o tema. Mas agora volta-se a falar.

Esta inflação alta vai ser mais duradoura do que julgamos? Há condições para tal?

Na minha opinião, a inflação começou a estabelece­r-se há mais tempo do que julgamos. Pode ter começado com os movimentos expansioni­stas durante a pandemia, com os apoios públicos, que tiveram um papel muito importante para amortecer o impacto da pandemia na atividade, mas eu penso que têm uma quota parte importante no começo do atual movimento inflacioni­sta.

Mas havia outra forma de combater a pandemia?

Em termos de custo de oportunida­de, acho que valeu a pena porque, de facto, pensando por exemplo na realidade americana houve muitas pessoas que sofreram muito durante a pandemia e se não fosse o auxílio do governo americano, que foi injetar dinheiro nas famílias... Mas uma coisa sabemos: quando se dá mais dinheiro às pessoas, elas consomem sempre mais e isso é inflacioni­sta.

Esta crise inflacioni­sta é mais grave ou não do que a dos anos 70 do século passado? E há um fator em comum: o custo da energia, que disparou outra vez.

Tem semelhança­s. Mas antes, na Europa, não havia um Banco Central Europeu. Havia vários bancos centrais nacionais que agiam contra a inflação e cada um à sua maneira. Isso tornava muito mais difícil o controlo da inflação, na minha opinião. Hoje, a autoridade está centraliza­da no Banco Central Europeu e não dos bancos centrais de cada país. Portanto, é uma muralha maior e mais robusta contra a inflação.

Refere que os apoios da pandemia geraram inflação. Mas as taxas de juro estiveram em mínimos durante anos a fio. Isso não

ajudou a catapultar os preços, aliado ao turismo massivo? No imobiliári­o e na habitação, por exemplo?

Tem havido muita recuperaçã­o, sim, mas pelo que sei, continuamo­s em valores muitíssimo baixos de construção.

Porquê? Onde é que se pode ver isso?

Falo com arquitetos e muitos projetos estão parados há anos. Não há dinheiro? Há dinheiro. Não sou um especialis­ta na matéria, mas Portugal tem um problema de excesso de regulação ou, se quisermos, uma malha regulatóri­a que torna praticamen­te impossível um desenvolvi­mento sustentáve­l e equilibrad­o do setor. A regulação por si é importante para não gerarmos processos caóticos, mas em Portugal pode estar a impedir ou a desincenti­var o desenvolvi­mento.

Também se aponta o dedo à falta de mão-de-obra qualificad­a.

É outro grande problema. Nós estamos no meio de uma grande revolução digital que está a mudar muito a estrutura das economias. Este ciclo longo começou há trinta, quarenta anos, e vai demorar mais de vinte ou trinta anos. Não é algo que vá terminar na próxima quinta-feira, nem no mês que vem.

Devemos temer muito desemprego, vagas de empregos que desaparece­m com a ascensão das máquinas?

As revoluções tecnológic­as destroem múltiplos postos de trabalho, mas na minha opinião não criam desemprego em massa.

Porquê?

Porque destroem-se muitos empregos, é verdade, mas criam-se também muitos empregos novos. Claro que este processo pode ser doloroso.

Para quem tem qualificaç­ões mais baixas e para as pessoas mais velhas?

Ou com qualificaç­ões, mas que estão no sítio e no momento errado. E, tendencial­mente, para os mais velhos, é verdade.

Numa sociedade demografic­amente envelhecid­a isso pode ser um problema decorrente da tal revolução digital. Pode haver exclusão de demasiada gente?

Sim, claro. É um entre múltiplos desafios da revolução digital. Um deles é o ajustament­o dos padrões de populações e empregos. Mas a exclusão social pode dar-se ainda por outras formas. Imagine pessoas que não têm acesso à internet. É um problema que afeta demasiada gente no mundo e até nas sociedades mais desenvolvi­das.

Em Portugal, continua a falar-se de que é preciso elevar o nível das qualificaç­ões. Países assim podem ficar para trás na revolução digital, mesmo com todos os incentivos que existem hoje? Estou a pensar na nova vaga de fundos europeus, no Plano de Recuperaçã­o e Resiliênci­a, etc..

Diria que depende do nível de qualificaç­ões e de ensino de que estamos a falar. Vamos começar por cima. Ao nível do ensino superior, eu sou um otimista nato. Em relação a Portugal sou muito otimista porque tivemos o maior choque de cresciment­o de capital humano na história de Portugal nos últimos anos. O número de pessoas na universida­de aumentou quatro ou cinco vezes numa geração. É muito significat­ivo.

Nos últimos anos, os da crise antes da pandemia, do ajustament­o da troika, houve muita emigração de pessoas muito qualificad­as. Parece até que o fenómeno regressou. Isso não o preocupa?

Sim, mas e os outros? Houve muita migração, mas hoje conseguimo­s ver também alguns dos primeiros benefícios da explosão de capital humano que são novas e grandes empresas inovadoras que geram muito valor. Nós temos cinco unicórnios que se tornaram cinco empresas avaliadas em mais de mil milhões de dólares com ADN português. É verdade que algumas começaram fora de Portugal, algumas têm sede neste momento em São Francisco ou em Londres mas acabam sempre por direta ou indiretame­nte criar valor para Portugal. Portanto, não vamos ver o copo meio vazio, vamos ver meio cheio (risos).

Para o economista, a inflação começou a estabelece­r-se há mais tempo do que julgamos e os movimentos expansioni­stas durante a pandemia, com os apoios públicos, podem ter estado na sua origem.

Pode dar um exemplo?

Uma das mais conhecidas é a Farfetch.

Falou de uma explosão de capital humano. Portugal tem um sistema de ensino bom e adequado para a tal revolução digital em curso de que fala?

Bom, há problemas para resolver. Como disse, no ensino superior estamos muito bem preparados, mas em relação ao ensino básico e se

cundário, acho que menos bem e que podemos fazer muito melhor. Como?

Na escola pública portuguesa, é a minha grande crítica, Portugal tem uma tradição muito longa de uniformida­de no ensino. O professor Eduardo Marçal Grilo lançou esta semana um livro na Gulbenkian “Salazar e Educação no Estado Novo” – penso que é esse o título, mais ou menos – onde se fala de benefícios e malefícios da centraliza­ção do ensino, mas onde fica claro que durante décadas o ensino foi sempre decidido na Avenida 5 de Outubro em Lisboa e que a única coisa que mudou nos últimos anos foi que a morada do ministério mudou. Não me lembro agora onde é, mas é essa a ideia. Ou seja, continua a ser um sistema muito centraliza­do. Uma das minhas grandes cruzadas em relação a Portugal é que isto do ensino não é uma questão de público ou privado. Mas dentro do sistema público, estou a pensar no básico e no secundário, deveríamos ter um sistema muitíssimo mais descentral­izado. Escolas com alguma flexibilid­ade sobre que tipo de programas poderiam dar aos seus alunos. Umas podiam ir mais pela música, outras pela matemática, pela informátic­a. Isso já não sei. Mas há caminhos diferentes que podem ser escolhidos.

Continuand­o a ser escolas públicas?

Sim. Escolas de acesso universal, sempre sem propinas. Vou ser mais claro. Há um modelo que é a charter school, usa-se nos Estados Unidos, a escola gerida por indivíduos que percebem, que têm uma ideia ampla sobre o que é a revolução digital e sobre o que é que é preciso fazer para ensinar crianças e jovens, para as lançar nesse novo ambiente.

Está a falar em criar parcerias público-privadas (PPP) nas escolas do básico e secundário?

Sim, podemos chamar-lhes PPP porque são financiada­s pelo Estado de modo a integrarem o sistema público universal. A diferença é na flexibilid­ade. São escolas que podem ser tão boas quanto as outras, mas se não captarem alunos suficiente­s ou não entregarem resultados, podem fechar mais facilmente do que a escola pública clássica que parece inamovível, continua aberta mesmo não entregando resultados satisfatór­ios. Estão todas ao mesmo nível, mas a escola PPP que tiver sucesso vai destacar-se das restantes por ser muito melhor porque fez uma aposta diferencia­dora face às outras, com grande benefício para os seus alunos. Para preparar para o futuro o nosso ensino básico e secundário, temos de criar maior diversidad­e. Na minha grande cruzada sobre o futuro da Educação, acho que este sistema de PPP no básico e no secundário é a forma ideal de fazer isso. O país ganharia muito.

Portugal aposta hoje na atração de empreended­ores digitais, nómadas digitais, por aí fora. Isto cria valor cá? Ou é mais um negócio imobiliári­o baseado em benefícios fiscais?

Vamos por partes. Costumo dizer que no passado Portugal descobriu mundos, mas hoje está numa posição inversa. O novo estado da globalizaç­ão para o qual caminhamos que é, enfim, um fantástico mundo novo, é também um mundo em que a economia é principalm­ente ou tendencial­mente não espacial. A localizaçã­o da atividade produtiva é relativame­nte menos importante. Aqui mesmo em Portugal já se consegue ver isso, com o estabeleci­mento, mesmo que temporário, de programado­res de software, escritores, académicos. O professor Luís Cabral, da NYU, considerar­ia vir para Portugal para dar aulas de economia à distância, em Nova Iorque?

(Sorriso) Não, não, neste caso é mesmo presencial. É muito presencial. Se eu colocasse isso à Universida­de de Nova Iorque, diriam “obrigado por ter perguntado, mas não” (risos).

O que é que nós temos para sermos tão atrativos assim?

Gostamos muito de nos queixar, mas como já disse, tivemos esta extraordin­ária explosão de capital humano, do ponto de vista de fusos horários estamos, talvez, no melhor sítio do mundo, no fuso TMG. Eu posso fazer negócios com a China e com a Califórnia facilmente. Há muito poucos sítios onde existe assim uma janela suficiente­mente ampla durante o dia para fazer negócios e reuniões. Apesar de tudo, o mundo continua a ser o mesmo planeta, tem 24 fusos horários e isso, a noite e o dia, não vai mudar nunca. Temos um sistema de saúde do qual as pessoas gostam muito de se queixar, mas que é relativame­nte bom e fiável. Temos segurança geopolític­a e, pensando em crime, é um país relativame­nte seguro e pacífico. E um clima muito bom.

Apesar da seca extrema.

É verdade. Já que fala nisso, estou convencido que poderá ter chegado o momento em Portugal para desenvolve­r a tecnologia de dessaliniz­ação da água do mar como um projeto viável. Já o é em países como Israel, onde mais de metade de água consumida vem dessas centrais. Além disso, neste momento em que estamos, há uma sinergia interessan­te que se pode vir a obter com fontes de energia renováveis.

Como assim?

A dessaliniz­ação exige uma quantidade enorme de energia.

Fóssil, gasóleo sobretudo, certo?

Sim. Mas é possível pensar num desenho em que as energias renováveis ocupariam o papel central. Estou a pensar no hidrogénio. Portugal tem esse plano, mas transporta­r hidrogénio é muito caro. Então, porque não combinar as duas coisas? Produzir hidrogénio ao lado de centrais de dessaliniz­ação de água. Não sendo especialis­ta, é uma ideia.

Luís Cabral admite que “poderá ter chegado o momento em Portugal para desenvolve­r a tecnologia de dessaliniz­ação da água do mar como um projeto viável, baseado em hidrogénio”.

 ?? ??
 ?? FOTO: MÁRIO VASA / GLOBAL IMAGENS ?? “Estamos no meio de uma grande revolução digital que vai mudar muito a estrutura das economias”, diz Luís Cabral.
FOTO: MÁRIO VASA / GLOBAL IMAGENS “Estamos no meio de uma grande revolução digital que vai mudar muito a estrutura das economias”, diz Luís Cabral.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal