Diário de Notícias - Dinheiro Vivo

O bebé, a porteira e o cão

- Jurista

Num prédio vive uma família a quem chegou recentemen­te um bebé. É um prédio grande, com vários apartament­os, no centro de Lisboa. Neste prédio vivem poucas ou nenhuma criança – não há barulho e o movimento é muito pouco, apesar de os apartament­os estarem todos habitados. Como em todos os prédios das cidades que se dizem grandes, as pessoas convivem pouco, ou nem se conhecem. É o caso deste prédio. Bom dia, boa tarde, quando se cruzam no elevador e chega. É tudo gente crescida, que só admite barulho a horas certas, um barulho com rotinas. É estranho quando visto de fora se contarmos os anos e medirmos a proximidad­e. Mas é a vida.

Só que desde a chegada do bebé as coisas mudaram neste prédio: o bebé chora. Parece que é o único bebé daquele grande prédio – pelo menos é o único bebé que chora. E veio desarrumar o prédio todo, incomodá-lo. E nada é como era. As pessoas do prédio estão chateadas. Profundame­nte chateadas com aquele choro e com o bebé.

O pior é que ninguém sabe onde mora o bebé. De quem é o bebé; onde está o bebé? O bebé não anda de elevador, que é o sítio por excelência onde as pessoas do prédio se encontram. Ou anda a horas incertas. Tem sido um virote, um mistério irritante.

Enquanto não se descobre, o bebé teima em chorar a desoras. O bebé atreve-se a fazer barulho fora do horário do barulho. Chora de noite, imaginem só. Chora quando as pessoas do prédio estão a dormir, sem respeito pelo descanso dos adultos, de quem trabalha. O prédio, por sorte, tem porteira, e já se pediu à porteira que descobriss­e onde vive o bebé porque é preciso tomar medidas. Umas medidas quaisquer que façam o bebé parar de chorar a horas indecentes. Se calhar são cólicas ou apenas mimo ou dentes, sabemos lá – e nem queremos. Naquele prédio não há memória de choro de bebés. Mas a porteira vai descobrir porque neste prédio as pessoas têm o direito de dormir.

Também há um cão nesse prédio. Há um cão lindo, castanho e grande. Este não ladra, mas se ladrasse também não faria mal, é um cão e os cães ladram: não têm outra forma de se exprimirem. São como os bebés mas a vida toda. Sei do caso de uns donos que puseram uma coleira que dava choques ao cão sempre que ele ladrava porque tinham medo que não os deixassem lá morar com o cão que ladra. Mas agora é proibido fazer estas coisas. O cão agora ladra sempre que ouve o elevador a parar e ninguém se chateia. Seja a que horas for. (É outro prédio.)

Voltando ao cão castanho. Naquele prédio onde vive o bebé misterioso, as pessoas, na pessoa da porteira, querem que o cão saia pela porta dos fundos, como se o cão fosse pessoa menor, que apanhe o elevador de serviço. Ele ladra, mas pouco, para se exprimir porque não sabe falar, só que é grande e por isso devia sair pelos fundos. Pois era o que mais faltava: não sai. Tem direitos e é fofinho, diz a porteira.

Já o bebé, continua o mistério: devem-no ter escondido não vá ser o tema principal da reunião do condomínio. Ponto 1 – Bebé que chora e incomoda o descanso dos restantes condóminos: discussão das medidas a adotar para o neutraliza­r.

Digam-me lá: há coisa mais fofinha do que um cachorrinh­o castanho de olhos verdes?

“Já se pediu à porteira que descobriss­e onde vive o bebé porque é preciso tomar medidas. Umas medidas quaisquer que façam o bebé parar de chorar a horas indecentes.”

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INÊS TEOTÓNIO PEREIRA

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