Diário de Notícias - Dinheiro Vivo
“Temos de encontrar na economia formal meios para usar a criptomoeda”
Obastonário dos Notários defende que as criptomoedas devem ser tratadas como qualquer outro ativo. Se não se regular, Jorge Silva acredita que o que vai acontecer é que se fazem negócios na mesma, mas declaram-se valores abaixo do real.
Fez a primeira venda de um imóvel com criptomoedas em Portugal. É fácil nos dias de hoje?
É fácil. Já foram feitas algumas depois.
Quantas, sabe?
Muito poucas. Mas não é pela dificuldade ou complexidade do negócio. É porque muitas vezes o comprador não quer receber a criptomoeda, mas quer receber dinheiro. E, portanto, o que é feito é a conversão da criptomoeda numa exchange e a pessoa já recebe diretamente dinheiro. Quando assim é, não é verdadeiramente, porque tem de haver uma troca entre um imóvel e uma criptomoeda que, no regime jurídico português, se chama permuta. A grande complexidade do assunto é do ponto de vista do combate ao branqueamento de capitais, porque as medidas são reforçadas. Tenho de saber, antecipadamente, quem vão ser as pessoas que vão fazer a operação, ou se se tratar de empresas, quem são os verdadeiros beneficiários, guardar os registos todos, ver se não há desconfianças nenhumas. E depois há a questão da transação em si. Ou seja, no dia tenho que ter conhecimentos mínimos, para perceber como vou descrever na minha escritura pública, no contrato, a forma de pagamento para efeito de sujeito do branqueamento de capitais.
E procuram-no a si para fazer esse tipo de transações?
Atualmente, sempre que me procuram recomendo terceiros. Fiz a primeira por dois motivos: primeiro, porque quem a marcou eram pessoas que conhecia. No caso, o advogado da imobiliária. Por outro lado, porque era a compra de uma habitação e um dos requisitos que tinha era que o negócio não podia ser simbólico. Queria fazer um negócio normalíssimo. E o preço era adequado, era uma transação acima de 100 mil euros. Outra questão importante é que, na altura, acho que o negócio estava muito diabolizado, as criptomoedas. Acho que as criptomoedas devem ser tratadas como um outro ativo qualquer. Há regras de controlo de branqueamento de capitais e já depois disso o Estado até regulou, por exemplo, do ponto de vista fiscal. Não são muitas operações, mas o interesse voltou. O que aconteceu foi que houve a grande descida da moeda a seguir à primeira transação que formalizei.
Ou seja, quem vendeu acabou por perder dinheiro?
Claramente, mas é o risco do negócio. Uma das coisas que digo sempre é que isto é uma troca e deve continuar a ser uma troca, porque isto verdadeiramente não é moeda, não tem curso legal em Portugal. E a criptomoeda deve estar regulada.
O que acontece se não se regular a criptomoeda e não se trouxerem as pessoas das criptomoedas para o mundo normal e formal?
O que vai acontecer é que as pessoas fazem as transações na mesma, por valores declarados abaixo e pagam o resto em criptomoeda. O objetivo da criptomoeda no final é servir para comprar coisas, e quem ganha dinheiro com criptomoedas quer comprar coisas do mundo físico, por mais que seja giro comprar coisas do mundo virtual. E, portanto, temos que encontrar na economia formal meios para que a criptomoeda seja utilizada. O dever do notário também é esse, é ser alguém que é capaz de pegar num negócio do mundo digital e formalizá-lo normalmente, sem qualquer problema, sem transtornos, porque é um risco enorme.
O seu conselho, para quem estivesse a fazer uma transação e não tem conhecimento sobre criptomoedas, seria que o faça, se quiser mesmo fazer, apoiado por quem pode dar o aconselhamento certo.
“O dever do notário também é o de ser capaz de pegar num negócio do mundo digital e formalizá-lo.”
Sem dúvida nenhuma, mesmo que seja com bens móveis. Às vezes as pessoas dizem que comprar um carro tem um formalismo muito menor, mas pode colocar-se num problema gigantesco. Se a pessoa tem o azar de comprar um carro a alguém que é traficante de drogas, a partir desse momento está metido num problema enorme, porque ele pagou com criptomoeda. A pessoa tem de ter noção que aquela forma de pagamento é como se fosse em notas. E se há regras para o máximo que possa receber em notas, também há regras para a criptomoeda, com uma agravante: as notas, em teoria, apesar de serem numeradas, não sabemos a origem, mas as criptomoedas, muitas vezes, deixam rasto. E é possível chegar, especialmente se for em exchange, ao detentor da criptomoeda.