Diário de Notícias - Dinheiro Vivo
Lídia Pereira “Podemos pagar mais dois euros por bilhete de avião para compensar a pegada ecológica, mas não sabemos se isso acontece”
Eurodeputada redigiu a base que permitirá criar um mercado de remoção de carbono, para alcançar a neutralidade climática até 2050. Porque poluir menos só já não chega, vai ser preciso remover a poluição da atmosfera e armazená-la.
“Há técnicas de remoção de carbono e, recorrendo à geologia, pode-se armazenar esse carbono, capturando-o durante milhões de anos nos solos e subsolos.”
Lídia Pereira é formada em Economia pela Universidade de Coimbra. Aderiu ao PSD ainda muito jovem, foi dirigente associativa na universidade, começou a atividade político-partidária na JSD de Coimbra e desde 2018 que é presidente Juventude do Partido Popular Europeu (YEPP, na sigla em inglês). Foi eleita eurodeputada em julho de 2019 pelo Partido Popular Europeu (Democratas-Cristãos), onde se insere o PSD.
Algumas das suas áreas de especialidade são o combate às alterações climáticas e a estratégia europeia para a descarbonização.
Esta entrevista decorreu em Estrasburgo e coincidiu com a aprovação em plenário do seu relatório para uma proposta de regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece um quadro de certificação da União relativo às remoções de carbono.
A deputada e relatora principal explica-nos que é possível envolver mais e melhor a agricultura e o setor da construção para ajudar a fazer desaparecer mais depressa a poluição da atmosfera, isto num “novo quadro de certificação da
União Europeia (UE) para a remoção tecnológica e natural de carbono”, “para alcançar a neutralidade climática até 2050”.
Quais as principais conclusões deste trabalho sobre a nova abordagem para remover poluição, dióxido de carbono?
Uma das coisas que acaba por ser um ponto de partida e também um ponto de chegada é o relatório do IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas] que nos indica, diria até, alerta, que da forma como as coisas estão e têm evoluído nos últimos anos, a Europa não vai conseguir ser neutra em carbono em 2050 só por via de menos emissões. Só conseguirá a desejada neutralidade, começando a remover o próprio carbono da atmosfera.
Podemos dizer que estamos estagnados nessa nova abordagem?
Podemos dizer que existem já alguns elementos que podemos e devemos melhorar e daqui em diante, nas próximas duas décadas e meia, penso que é crítico encontrarmos uma forma de removermos o carbono da atmosfera e, no fundo, introduzir incentivos concretos e interessantes para efetivar essa remoção. Ora, o que existe atualmente é um mercado desregulado de créditos de carbono, de várias atividades, de várias tecnologias que estão a ser utilizadas e para o qual a integridade desse mesmo mercado está em risco.
Em risco como?
Há empresas, há organizações que estão a tirar proveito da falta de regulamentação e, portanto, aquilo que o Carbon Removal Certification Framework traz é, por um lado, um enquadramento para o funcionamento do mercado que seja confiável e que vá ao encontro dos objetivos climáticos. Portanto, este é o cenário generalizado de onde nós partimos.
Portanto, depender apenas de mais progressos nas energias renováveis e limpas não chega para atingir os objetivos climáticos?
Não chega e tem que se complementar com a remoção de carbono. Este relatório foi discutido com uma ampla maioria política no Parlamento Europeu e vem da proposta da Comissão Europeia, que foi aprofundada por nós. Há três pilares desta legislação. Um tem a ver com o carbon farming, que é, basicamente, a remoção de carbono no caso das atividades de agricultura.
Pode dar exemplos de agricultura de carbono?
É quando a remoção pode acontecer através da agricultura, ou seja, de atividades que melhorem ou maximizem a captura de carbono em solos e florestas, como, por exemplo, termos um investimento muito maior em restauração florestal, turfeiras e gestão de zonas húmidas.
Li no vosso relatório que também há a opção de remoção definitiva do dióxido de carbono em excesso que vai para a atmosfera.
Sim, também lá está a remoção permanente, ou seja, fazer armazenamento permanente, em que o carbono emitido é capturado diretamente do ar e armazenado de forma estável.
Onde?
Hoje em dia há técnicas de remoção de carbono e recorrendo à geologia, é possível fazer o armazenamento do carbono, capturando-o durante milhões de anos nesses solos e subsolos, através de outras novas tecnologias que estão sobretudo a ser desenvolvidas pelos países nórdicos.
Isso já é uma realidade?
Já existem, sim.
Como é que está a remoção de carbono em Portugal?
Portugal ainda está numa fase muito primária e há alguns projetos que estão a ser explorados nessa área, mas ainda não tem dimensão.
Envolve empresas e universidades, suponho.
Sim, mas eu só tenho conhecimento de alguns projetos, poucos. Muita investigação está a ser feita, isso sim, mas esta tecnologia tanto se desenvolverá mais, quando melhores forem as condições geológicas a serem utilizadas. Ou seja, também tem muito a ver com as condições da próprio território, do solo, subsolo. A remoção e o armazenamento de carbono só funciona de tivermos sítios bons para o armazenar, se o solo tem capacidade de isolar o carbono. Depende muito da geologia.
Mas não se aprisiona carbono só na rocha, certo? No vosso relatório há outras opções.
Sim, outra forma é poder fazer o armazenamento de carbono em pro
“Hoje em dia está muito em voga os prestadores de serviços declararem-se neutros em carbono, mas depois, se vamos avaliar as suas cadeias de valor, pode não corresponder a uma neutralidade total.”
dutos vários, sendo que neste relatório concluiu-se que os mais eficazes para o objetivo são os materiais de construção civil, em particular, a madeira.
Usar mais madeira na construção?
Sim, porque o carbono é capturado pelas árvores e fica armazenado em construções se estas forem mais à base de madeira do que hoje são. Isso implica plantar mais árvores, como é lógico. Em compensação, tende-se a usar menos outros materiais que podem ser muito mais poluentes. Também houve a discussão do papel da biomassa, que é relevante para os países nórdicos, mas este ponto foi dirimido nas negociações. Outro ponto que abordam neste relatório, que lança as fundações de um novo quadro legal para ir mais longe na descarbonização, é o problema grave do
greenwashing, o chamado branqueamento ecológico, o uso abusivo ou fraudulento de
marketing ambiental por parte de empresas e outras instituições, que dizem que investem muito, mas que no fundo não o fazem. Pode explicar-nos como abordam isto?
Começo por dizer que isto que fizemos é um primeiro passo de algo muito maior, isto que se deve tornar lei, este tipo de certificação, não existe em mais nada nenhum. Eu creio que um dos pontos principais é, de facto, proteger a integridade dos utilizadores e dos operadores que recorrem a créditos de carbono e depois, de facto, com essa transparência e na posse de métricas e de um entendimento comum que refletem a realidade que existe, combatermos o
greenwashing. Há muita fraude ecológica?
Temos ouvido muitas notícias, infelizmente, de esquemas de certificação de carbono, que depois se declaram neutros em carbono, e, portanto, depois não é isso que se verifica. Este relatório está diretamente associado a uma diretiva, que também já está em trílogo, que é o Empowering Consumers’ Rights [Reforçar os Direitos dos Consumidores], e que, precisamente, explica em maior detalhe que tipo de produtos ou serviços é que podem ser declarados neutros em carbono.
Por exemplo?
Hoje em dia está muito em voga as empresas, em concreto, os prestadores de serviços, declararem-se neutros em carbono, mas depois, se vamos avaliar as suas cadeias de valor, de tudo o que usam e precisam para entregar o serviço final ao consumidor, pode não corresponder a uma neutralidade total. Pode ser 80%, pode ser 90%, mas nós queremos que todos cheguem a 100%, de facto. E que isso possa ser efetivamente medido e provado.
Vai ser difícil medir?
Atualmente, é difícil, mas também é por isso que estamos a fazer este trabalho, os legisladores estão a debater e a abordar o vários problemas. Aquilo que existe atualmente, aquilo que serve de base para as empresas, tem parte de legislação já existente, por exemplo, a Corporate Sustainability Reporting [Reporte de Sustentabilidade Corporativa], que foi também recentemente aprovado, mas ainda estamos numa fase muito embrionária nessa parte da aferição de todas as emissões que as empresas e que as organizações produzem. Para avançarmos, é preciso trabalhar na credibilidade dessas medições e isto também está especificado neste relatório. Mas eu diria que o objetivo é garantir que não há esquemas fraudulentos e cuja reputação não seja válida. É isto que esta certificação tenta trazer ao mercado. No fundo, legitimar o mercado.
Quando se cria um novo mercado, normalmente isso vem associado a incentivos. Quais são?
Correto. Para começar é preciso incentivar o desenvolvimento da investigação e implementação de novas tecnologias de remoção de carbono. Tem de haver aqui algum incentivo económico para se aprofundar a remoção. Porque se nós deixarmos tudo como está, não vamos conseguir fazê-lo. E, portanto, precisamos de um instrumento que sirva aqui de gatilho para promover a inovação, a pesquisa de outros tipos de tecnologias que estão agora em expansão. Por exemplo, a tecnologia CCS [Captura e Armazenamento de Carbono], que é aquela que permitirá selar o carbono durante muito tempo, a CCU [Captura e Utilização de Carbono], que é a forma de usar o carbono a nosso favor, nos materiais que usamos, por exemplo.
Que estão numa fase incipiente, disse há pouco.
Sim. Já começam a existir, mas ainda não são economicamente eficientes. E, portanto, é preciso dar espaço para essas tecnologias crescerem. Este mercado voluntário de créditos de carbono pode ou vai incentivar o desenvolvimento dessas tecnologias para que depois possa ser possível haver uma remoção de carbono continuada no tempo.
Vai haver prémios diferentes consoante a eficácia da tecnologia de remoção praticada?
Sim, é importante que haja créditos distintos para as remoções permanentes e remoções das atividades agrícolas, por exemplo. Porque as permanentes são para sempre enquanto que remoção por via das atividades agrícolas, não. E, portanto, houve o cuidado em fazer essa distinção de acordo com todas as forças políticas intervenientes neste processo. E também há uma questão de credibilidade. Não podemos ressarcir aquilo que é diferente.
Como é que vai ser este mercado em termos de dimensão, número de empresas e entidades envolvidas? Acha que os grandes poluidores vão lá estar?
Isto é um mercado voluntário. Há exemplos de mercados que se baseiam num sistema que penaliza mais os que mais poluem, é um sistema de incentivos pela negativa. O que nós queremos com a nossa proposta é que o sistema funcione pela positiva. Ou seja, há várias formas de lá chegarmos e caberá às estratégias das organizações de como querem remover carbono.
Por exemplo?
Um exemplo concreto... Quando nós compramos um voo, e isto também está associado à questão do greenwashing, muitas vezes temos a opção proposta pelas companhias aéreas que é fazer a compensação da nossa parte de poluição, que é usar o avião. Somos convidados a pagar a pegada ecológica. Problema: até podemos dar um ou dois euros, ficamos mais descansados com isso, mas nunca ficamos a saber que projetos é que são apoiados com esses nossos pagamentos ecologicamente responsáveis. Portanto, o que esta certificação vai trazer é precisamente transparência nesse tipo de atividades. Quando nós comprarmos um voo TAP ou da Ryanair e pagamos mais para compensarmos a nossa pegada ecológica, vamos ter de saber como é que a companhia de aviação está a remover o carbono da atmosfera, saber exatamente o projeto concreto de remoção do carbono para o qual estamos a contribuir.
Pode haver uma conta dedicada a cada processo ou projeto?
Exatamente, é esse mercado que tem de existir, um mercado voluntário, não volto a dizer obrigatório, mas com esta legislação vai ser um mercado muito mais transparente, que combate efetivamente o greenwashing. Neste momento, podemos pagar mais dois euros por bilhete de avião, porque as companhias dizem que é uma forma de compensarmos a nossa pegada ecológica, mas nós não sabemos se essa compensação efetivamente acontece. Podem até não estar a fazê-lo. Deve haver mais transparência e mostrar aos consumidores os projetos reais de remoção de carbono que existem e funcionam.