Diário de Notícias - Dinheiro Vivo
“Numa terceira travessia sobre o Tejo, seria um crime se não tivesse ferrovia”
Carlos Vasconcelos, presidente da Medway, elogia Pedro Nuno Santos: “Foi aquele que eu vi fazer” pela “recuperação das oficinas de Guifões e por ter posto a CP finalmente num bom caminho”.
Não é de política que Carlos Vasconcelos quer falar no que toca à ferrovia. O presidente da Medway deixa escapar um elogio ao antigo ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, mas fica-se por aí. O que procura são consensos. “O País é muito pequeno, tem poucos recursos para andar a mudar de estratégia e de política ferroviária ao sabor das eleições e das forças partidárias que momentaneamente ocupam o governo”, justifica.
Como é que traduz estes oito anos da Medway em números? A atividade está dentro dos carris, quer ao nível do investimento, da frota, ou da criação de novos postos de trabalho?
Diria que a atividade está dentro dos objetivos que traçámos e da estratégia que definimos antes da privatização da empresa. Temos crescido dentro do possível face aos condicionalismos que, entretanto, surgiram nos últimos três anos, e reporto-me diretamente à epidemia de covid e à guerra na Ucrânia.
Ao nível da gestão de recursos
humanos fala-se de um aumento médio salarial na ordem dos 40%. Foi para todos os trabalhadores?
Não foi igual para todos. A média acumulada nos últimos oito anos foi de 40%. Tivemos a preocupação de ter aumentos salariais sempre acima da inflação.
Continuam a recrutar? Quais são as vossas necessidades de mão-de-obra nesta altura?
Sim. Essencialmente, o que necessitamos são maquinistas. E estamos, neste momento, com dois cursos de formação de maquinistas e prevemos, pela expansão da atividade, continuar a recrutar. Mas vamos recrutando à medida que identificamos as necessidades. Os dois cursos rondarão cerca de 40 maquinistas.
A Medway organizou um evento recentemente em Lisboa para apresentação de novo material circulante. Quando é que esse material começa a ser usado em Portugal?
Para uma locomotiva poder circular, num país como Portugal, tem que ter um sistema de segurança que faça a ligação entre a máquina e a rede ferroviária. Quer para receber avisos, quer para bloquear a máquina. Por qualquer circunstância especial que seja, e para ser rastreada pelo centro de controlo que existe. Em Portugal é a IP que controla todo o tráfego ferroviário, para não termos dois comboios na mesma linha, ao mesmo tempo. Ou quando surgir um obstáculo, se possam tomar medidas adequadas. Esse sistema em Portugal é um sistema chamado Convel. É um sistema obsoleto, já não existe, não se fabrica mais. E não há hipótese de o replicar. Nós, ao comprarmos as novas locomotivas, tivemos que desenvolver simultaneamente um novo sistema, que vá ler este Convel. Esse sistema vai levar algum tempo a ser testado. Portanto, perspetivamos que no final de 2025, janeiro de 2026, possamos trazer essas locomotivas para Portugal.
Essas locomotivas apresentadas são para o mercado espanhol?
Vão circular exclusivamente no mercado espanhol, porque não podem circular no mercado português, por causa desta situação. Como é que caracteriza estas locomotivas? São todas elétricas?
É um modelo fabricado pela Stadler e são todas rigorosamente iguais, todas elétricas. São o melhor que há no estado da arte neste momento. São máquinas muito eficientes em termos de sustentabilidade, porque têm um sistema elétrico, o mais avançado que há.
Em que pé está o terminal de Lousados que pretende ser o maior do género na Península Ibérica? Está parado?
Para poder construir um terminal daquela dimensão foi necessário fazer um estudo de impacto ambiental. O estudo identificou determinadas características do solo que fogem ao normal. O projeto tem concentrações de arsénio com um teor elevadíssimo em alguns pontos do terreno. São concentrações que são muito normais em Portugal, que existem desde o Alentejo até ao Norte, mas são situações muito pontuais. A APA, em termos gerais, aprovou o projeto, mas quer ter a certeza de que essas concentrações de arsénio são de origem natural e não de origem humana. Se forem de origem natural, nós podemos utilizá-las, elas têm um tratamento diferente e eventualmente poderemos utilizá-las no próprio terreno. Para podermos utilizar localmente, precisamos que Portugal transponha para o direito interno uma diretiva europeia que já está em vigor em quase todos os países da Europa, mas o Governo português ainda não a transpôs – consta-me que estará para breve.
E esses custos de descontamina
“Não há bitola europeia para as mercadorias em toda a Espanha e em Portugal. Não há, e em Espanha não vai haver. Não havendo em Espanha, nós não podemos ter.”
ção dos terrenos encaixarão no orçamento que tinham de 80 milhões?
Não. Se pudermos aproveitar no local o projeto segue, porque está dentro do plano de negócios e os investimentos previstos. Se tivermos de os deslocar, dispara o valor de investimento.
Então está em risco de inviabilização?
Não acredito que esteja em risco, porque acho que é um projeto muito importante para o país, na medida em que fica localizado no que é o terceiro maior exportador do país. Tem um volume de exportação extraordinário para a Europa. Vai retirar centenas, senão milhares, de caminhões da estrada. Vai estar mais próximo do Porto de Leixões e do
Porto de Sines, até em termos ferroviários. E vai criar postos de trabalho, não só diretos, mas indiretos.
A unidade de fabrico de vagões e o complexo de oficinas para manutenção e reparação, avaliado em 70 milhões, está a andar?
Esperamos começar as obras, se tudo correr bem, ainda até ao final do ano. É um projeto muito querido para nós, porque é um passo para voltar a construir material rolante em Portugal, um país que já tinha uma larga tradição nessa matéria e que há décadas abandonou esse setor. E seria um prazer enorme voltarmos a trazer a indústria pesada para Portugal. O projeto chama-se Smart Wagons, porque são vagões muito inteligentes, que permitem uma gestão mais eficiente do vagão, permitem antecipar necessidades de manutenção, de reparação e, portanto, vão ser, de facto, bastante inovadores e vamos estar na ponta, por assim dizer, nesta área. Os projetos já estão praticamente concluídos, brevemente serão submetidos à Câmara do Entroncamento para licenciamento. Depois, será aberto o concurso para os empreiteiros e arrancaremos com as obras.
E quantos postos de trabalho é que estão calculados?
Não tenho a certeza do número exato, mas julgo que rondará os 200 na primeira fase.
E a conclusão está prevista para quando?
Em 2025 já estaremos a operar.
Ao nível da operação, que balanço faz da atividade em Espanha onde estão desde 2018?
Tem corrido bem, temos crescido, notamos interesse e procura da parte do mercado, talvez por sermos um operador novo. É um mercado onde apostamos bastante, porque enquanto que em Portugal temos uma quota de mercado muito significativa, que não é fácil crescer, em Espanha temos uma quota ainda muito pequena e, portanto, ainda temos muito caminho a percorrer.
Também já manifestou o desejo de começar a operar em França em 2025. De que forma estão a estudar esse novo mercado?
Já comprámos oito novas locomotivas, que nos serão entregues nos finais de 2025. Só devemos começar em França em 2026. Já estamos no processo de obter a tal licença para poder operar em França. Demorará cerca de dois anos. Portanto, só nos finais de 2025 é que estaremos prontos. Já temos alguns clientes do mercado francês contactados e interessados.
Os Pirineus e a questão da bitola têm sido sempre uma barreira neste domínio da ferrovia. Vê a ferrovia como um transporte mais sustentável para Portugal e para a própria União Europeia?
Cada comboio penso que substitui, em média, 40 camiões que andam na estrada. É, de facto, o meio de transporte mais eficiente, mais sustentável, com menos emissões de CO2. Se quiser, numa média geral, cada tonelada transportada por comboio consome menos 70% de anidrido carbónico do que transportada por rodovia. Portanto, nós, para transportarmos a mesma quantidade podemos reduzir as emissões a 70%. Para além da questão da eficiência, há os custos de externalidades, em que a ferrovia faz uma diferença enorme, como os acidentes, a ocupação das estradas. A ferrovia não sofre desses problemas. Ou melhor, os seus níveis são muito mais baixos do que a rodovia.
Porque é que Portugal não tem a mesma bitola europeia?
Historicamente, a Península Ibérica tem uma bitola própria. Chama-se a bitola ibérica, que é mais larga do que a bitola europeia. A rede ibérica de ferrovia é quase 100% em bitola ibérica, com exceção da alta velocidade de passageiros, que é de bitola europeia. Nas linhas de alta velocidade, não podem andar comboios de mercadorias. Portanto, não há bitola europeia para as mercadorias em toda a Espanha e em Portugal. Não há, e em Espanha não vai haver. A ADIF, a IP espanhola, não tem planos para implementar a bitola europeia para as mercadorias. Não havendo em Espanha, nós não podemos ter, porque senão aí é que ficávamos numa verdadeira ilha. Há muitas pessoas que andam a reclamar isto, e eu vou ser bruto: as pessoas que falam disto dizem uma coisa que não é verdade, porque Espanha não tem, nem vai ter, bitola europeia. Ou então falam do que não sabem, que acho que ainda é mais grave. O problema não está na bitola. O problema está numa série de outros fatores. Comboios de 750 metros, eletrificação, rampas, túneis. Há um conjunto de fatores na infraestrutura que impedem o comboio de ser competitivo. Portanto, a bitola não é um problema. Da China para a Europa há um comboio com muito sucesso que chega a Espanha atravessando quatro bitolas.
Pedro Nuno Santos, enquanto ministro das Infraestruturas, anunciou uma forte aposta na ferrovia. Como é que avalia o trabalho dele, e o que pensa que ele poderá fazer se for eleito primeiro-ministro?
Está a levar-me para um campo que eu não quero ir, que é o campo da política. Mas posso dizer o seguinte: em oito anos de trabalho, conheci três ministros do setor. E, antes de estar na ferrovia, tinha 40 anos desta atividade e lidei com ministros e secretários de Estado com áreas relacionadas a portos, ferrovia, transportes. E, em relação ao ministro Pedro Nuno Santos, de facto, foi aquele que eu vi fazer. Acho que se deve a ele, por exemplo, o que para mim foi um passo muito importante – a recuperação das oficinas de Guifões e ter posto a CP finalmente num bom caminho. A CP de hoje não tem nada a ver com a CP de antes. Na análise que fazemos dele enquanto ministro das Infraestruturas, só temos a dizer bem. E poderia ter feito mais alguma coisa? Talvez, com certeza.
Portugal está a caminho das legislativas. A ferrovia deve ser prioridade entre as grandes obras públicas para o futuro governo?
Há bastantes anos que andamos a pedir às principais forças políticas que se entendam em termos de ferrovia. E, na verdade, a ferrovia é o que nós queremos. O país é muito pequeno, tem poucos recursos para andar a mudar de estratégia e de política ferroviária ao sabor das eleições e das forças partidárias que momentaneamente ocupam o governo. Entendemos que é necessário um amplo consenso nacional, tem sido sempre a nossa bandeira.
Mas para um acordo plurianual?
Exato. Temos em cima da mesa um plano ferroviário nacional em que também colaborámos. Não é o plano perfeito, mas é um bom plano. E se Portugal conseguir implementar este plano, teremos dado um passo enorme na ferrovia, dotando o país de uma boa ferrovia capaz de contribuir para a economia sustentável, para a redução do CO2 e para retirar automóveis, passageiros e carros e autocarros e camiões de passageiros e de carga das estradas. Reduzir, não é eliminar, é reduzir.
Então o que é que falta para a ferrovia ser imprescindível como alternativa de transporte?
Precisamos ter uma rede ferroviária que permita, na parte das mercadorias – eu de passageiros não sou entendido e não gostaria de me pronunciar –, de ter uma rede ferroviária que permita em toda a sua extensão comboios de 750 metros, porque só comboios muito grandes é que nos permitem ser competitivos em termos de custos face à rodovia. Precisamos de ter a linha completamente eletrificada e é fundamental descongestionar a linha norte-sul, que não pode levar mais comboios e por isso a linha de alta velocidade que está projetada para passageiros é mais do que bem-vinda, já devia estar implementada. Falta dizer outra coisa que é essencial para que a ferrovia possa cumprir o papel e dar a sua contribuição: é que não seja discriminada negativamente face à rodovia. Ou seja, aquilo que a rodovia tem, a ferrovia no mínimo também tenha, para não dizer que devia ter mais.
O Governo diz que aguarda decisão da Comissão Europeia sobre o apoio ao transporte ferroviário de mercadorias pelo aumento dos custos com energia e combustível. Que leitura é que faz sobre isso?
A primeira leitura que faço é que em setembro o Governo, através de um dos seus ministros, disse que havia um apoio para a ferrovia de 15 milhões de euros. Não falou em problemas da Europa. A verdade é que passou um ano e tal e não recebemos qualquer apoio. O Governo agora diz que há um problema da Europa. Eu admito que haja, não conheço em detalhe. O que posso dizer é o seguinte: A Áustria cobra zero na taxa de uso. Espanha mantém a mesma taxa de uso há não sei quantos anos e é sete vezes inferior à nossa. Além disso, nós em Espanha já recebemos ajudas por causa deste agravamento de custos, já recebemos este ano as ajudas referentes ao ano passado. Se Espanha pode fazer, se a Áustria faz, se a Alemanha faz, custa muito a perceber qual foi o caminho ou a razão por que Portugal não faz o que os outros também fazem. E não acredito que os outros cometam ilegalidades.
A escolha da localização do novo aeroporto deve ser feita também em função da ligação ferrovia? Também há transporte aéreo de mercadorias.
Qualquer infraestrutura deste género deve ter em mente que o aeroporto tem mercadorias, como o da Portela tem, e o Sá Carneiro também. Numa perspetiva de incrementar a ferrovia para o transporte de mercadorias, faz sentido que tenha uma ligação ferroviária de mercadorias.
E uma terceira travessia sobre o Tejo que ligasse Lisboa-Barreiro, por exemplo, para transporte de mercadorias. Também fazia sentido?
Sim, fazia. Aliás, acho que o país devia ter tomado outra opção na [Ponte] Vasta da Gama, que devia ter tido ferrovia. Se for construída uma terceira ligação entre as duas margens em Lisboa, acho que seria um crime se ela não tivesse ferrovia.