Diário de Notícias - Dinheiro Vivo

COMUNICAÇíO SOCIAL Salvar o jornalismo, a bem da democracia

A crise do jornalismo é mais do que uma crise do modelo de negócio: é antes o reflexo da crise do espaço público. E combatê-la exige a disponibil­idade de poderes públicos e privados, como se tem visto no debate em torno das dificuldad­es dos média em Portu

- —DIOGO QUEIROZ DE ANDRADE geral@dinheirovi­vo.pt

A situação de crise da Global Media Group, de que o Dinheiro Vivo faz parte, tem motivado um longo debate sobre formas de resolução da crise dos média. A ideia da nacionaliz­ação, por razões óbvias, não ganhou terreno, pelo que a discussão se tem centrado em que tipo de apoios deve o Estado fornecer à comunicaçã­o social.

O tema será novo em Portugal, pelo menos com esta dimensão, mas não é nada que não esteja já a preocupar há vários anos entidades a nível a global. O debate tem motivado vários estudos internacio­nais, bem como uma miríade de artigos científico­s e análises técnicas que dissecam o que se passa noutros países. Até porque à crise do jornalismo equivale uma crise do espaço público, que é mais vasta, e que precisa de ser.

Esse é um bom ponto de partida para dissecar a situação em Portugal.

Razões nacionais para a crise

Portugal tem, paradoxalm­ente, títulos de imprensa a mais e a menos. Tem demasiados títulos demasiado iguais porque o mercado dos média não é racional e isso continua a baixar qualificaç­ões, salários e a dispersar demasiado a publicidad­e disponível. Títulos como o Sol, o i, o Novo, o Diabo, o Tal & Qual e vários outros são produtos que não vendem o suficiente para justificar a sua existência, mas continuam a ser publicados sem que se perceba o que os motiva.

Ao mesmo tempo tem títulos de menos: o deserto de jornais regionais cobre grande parte do nosso território, especialme­nte se excluirmos os títulos detidos por igrejas ou autarquias – e esse é um dos problemas do modelo atual: o registo de títulos na Entidade Reguladora para a Comunicaçã­o Social (ERC) confunde periódicos comerciais e títulos desinforma­tivos com jornais credíveis e títulos de qualidade, colocando no mesmo nível a revista do Continente, o Público, o Notícias Viriato e o Diário de Notícias.

Em paralelo, a grande maioria da população tem baixa literacia, poucos rendimento­s e um hábito generaliza­do de consumir informação sem pagar por ela, reclamando ao mesmo tempo da falta de qualidade do jornalismo disponível. Por outro lado, as universida­des continuam a promover cursos de comunicaçã­o social, jornalismo e temas aproximado­s, colocando anualmente no mercado muitas centenas de jovens treinados para uma profissão que nunca irão exercer, até porque o ensino não reflete a situação profission­al atual.

E falta falar do mercado publicitár­io, que não só é quase exclusivam­ente online como também é cada vez mais programáti­co. Entre a pressão de gerar receitas e a dependênci­a dos gigantes comerciais que definem os destinos da internet, os jornais estão incapazes de fazer face à redução de receitas que se tem verificado de forma continuada nos últimos 20 anos.

O valor do jornalismo

É fácil fazer a defesa do jornalismo enquanto bem público: um ecossistem­a de liberdade informativ­a torna as sociedades mais robustas e apelativas, reduzindo riscos de abusos de poder e aumentando o bem-estar coletivo. Ao mesmo tempo, há argumentos económicos a favor de um jornalismo pujante: a atividade enquadra-se no setor das indústrias criativas, tido pela União Europeia como um dos setores mais pujantes e responsáve­l por 4% do PIB europeu; e há argumentos tecnológic­os, que se concentram na degradação do espaço público graças ao digital, que tem sido repetidame­nte demonstrad­a por casos como o Cambridge Analytica e as manobras de desinforma­ção repetidas em várias eleições – tudo problemas que se vão agudizar muito com a populariza­ção das tecnologia­s alimentada­s por inteligênc­ia artificial; por fim, há também naturalmen­te argumentos de cidadania, que se resumem a isto: sem jornalismo livre e independen­te, a queda no fascismo é inevitável.

Por tudo isto, é essencial reforçar que a ideia de apoios ao jornalismo não só não é de agora como é parte de um esforço global para melhorar as condições de vida em liberdade e democracia. Vários países europeus têm sistemas consolidad­os de apoio aos média. As nações do centro e norte europeus como França, Alemanha, Finlândia e

Suécia possuem mecanismos estruturad­os, mas também países do sul como a Itália mantêm esquemas diversos que suportam meios de comunicaçã­o social. Para não distorcer o mercado, é essencial que estes apoios sejam tão neutros quanto possível; ou seja, que se apliquem a todos os média que cumprem a missão de informar e que os fatores de distribuiç­ão sejam claros.

A diversidad­e de apoios

Se é certo que a questão mais sensível passa pelos apoios financeiro­s, a manutenção de um espaço público saudável tem outras implicaçõe­s. Como, por exemplo, a exigência de transparên­cia sobre a propriedad­e das empresas de média noticiosos, como já está consagrada em lei, mas que deve ser acompanhad­a de uma ação rápida do regulador.

Por outro lado, os especialis­tas são unânimes a reconhecer que é essencial garantir a execução continuada de campanhas de literacia mediática, colocando o tema no currículo escolar obrigatóri­o e garantindo que todos os setores da população disso beneficiam.

Em Portugal, um aspeto que pode ser transforma­dor passa pela revisão da lei-quadro das Fundações, de forma a que a persecução do direito a informar seja considerad­o um fim prioritári­o de interesse social, bem como garantir que o estatuto de utilidade pública possa ser atribuído a entidades com esse objetivo – o que poderia desbloquea­r bastante dinheiro para os títulos informativ­os de referência.

E será também essencial que os empresário­s sérios que se interessem pelo setor sejam reconhecid­os pela sociedade, incluindo pelos atores políticos. A forma como Marco Galinha foi tratado desde que entrou na comunicaçã­o social ecoa o que aconteceu a António Carrapatos­o e Luís Amaral quando há dez anos anunciaram o Observador – até porque o risco é que se estes empresário­s se desinteres­sarem, os únicos dispostos a investir em imprensa em Portugal poderão ser fundos com capital de proveniênc­ia dúbia e representa­ntes sem nível para o setor que dizem representa­r.

Vários países europeus aplicam uma diversidad­e de mecanismos de apoio financeiro, quer diretos quer indiretos, o que aliás ocorre em diversas indústrias: variações dos mesmos existem para outros setores económicos que o Estado entende que devem ser prioritári­os, seja porque são considerad­os determinan­tes ou porque podem ser estratégic­os para o país.

Portugal tem, paradoxalm­ente, títulos de imprensa a mais e a menos. Tem demasiados títulos demasiado iguais, porque o mercado dos média não é racional.

 ?? FOTO: DIANA QUINTELA/GLOBAL IMAGENS ?? Os jornais não estão a conseguir fazer face à redução de receitas dos últimos 20 anos.
FOTO: DIANA QUINTELA/GLOBAL IMAGENS Os jornais não estão a conseguir fazer face à redução de receitas dos últimos 20 anos.
 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal