Diário de Notícias - Dinheiro Vivo

“Taxas de juro vão descer, mas devem estabiliza­r próximo de 2%, o valor neutral”

Governador espera que se aproveite a geração mais qualificad­a de sempre e que os próximos governos mantenham a alta qualidade das políticas públicas que vigorou até aqui.

- Texto: Luís Reis Ribeiro e José Milheiro (TSF)

Mário Centeno, doutorado em Economia pela Universida­de de Harvard, está à frente do Banco de Portugal desde julho de 2020, vai fazer quatro anos. É um dos 26 membros do conselho do Banco Central Europeu (BCE), composto pelos governador­es dos 20 países do euro, mais os seis membros da comissão executiva presidida por Christine Lagarde. Nasceu em 1966, no Algarve, é um economista com muita investigaç­ão feita sobre o mercado laboral, foi ministro das Finanças nos dois primeiros governos do Partido Socialista, de António Costa, do final de 2015 a meados 2020. Do começo de 2018 até cessar funções como governante, foi escolhido para presidente do Eurogrupo, o poderoso conselho informal dos ministros das Finanças do euro.

A taxa de inflação estimada no mês passado, em janeiro, na Zona Euro, pelo Eurostat, foi na casa dos 2,8%. O BCE tem uma meta de médio prazo de 2%. O que é preciso mais para chegarmos a este objetivo?

É um trajeto que estamos a fazer de forma sustentada. Todos os indicadore­s que temos mostram que a inflação tem vindo a baixar. Na verdade, a um ritmo que é mais rápido do que aquele que subiu. Foi um processo inflacioni­sta muito forte, que nunca tínhamos vivido no período do euro na Europa. E, portanto, foi necessário reagir. O Banco Central Europeu teve de subir as taxas, todos sabemos o efeito que isso tem e também estamos atentos a todo este processo de descida. O que é necessário para que o ciclo de política monetária continue é que tenhamos confiança no grau de permanênci­a deste processo, que os próximos meses, estou certo, trarão, se não acontecere­m, entretanto, mais choques adversos daqueles a que, infelizmen­te, assistimos há uns anos e que levaram à subida dos preços. Esta semana saiu o novo inquérito aos consumidor­es feito pelo BCE. Há uma revisão em alta da inflação esperada para o longo prazo, até 2025, para 2,5%. O que é que isso sinaliza para si? Estamos atentos a um número muito grande de indicadore­s e seguimo-los de forma muito cuidada. As expectativ­as são muito importante­s, porque a política monetária trata precisamen­te de gerir expectativ­as. Temos um objetivo de 2% para a inflação no médio prazo. E, portanto, ancorar as expectativ­as no médio prazo, e ancorar significa tê-las firmemente próximas de 2%, é crucial para a condução da política monetária. Por isso, retomando a primeira pergunta, o mais importante para nós é a trajetória e não exatamente o valor concreto de um mês de inflação. E, por isso, podemos dizer hoje que estaremos próximos dessa inversão da trajetória da política monetária.

A trajetória é mais importante do que a meta?

A meta atinge-se no futuro próximo. Vamos falar abertament­e: o corte das taxas de juro não se dá apenas quando a inflação atingir 2%. Não é assim que funciona, porque sabemos que há uma convergênc­ia para esse valor. E, desde que essa convergênc­ia esteja ancorada, esteja firme, seja sustentada, a política monetária pode e deve reagir. É evidente que todo este conjunto de indicadore­s que seguimos, as questões de confiança, as expectativ­as dos consumidor­es, como há pouco referiu, são indicadore­s importantí­ssimos. Mas valem no seu conjunto. A economia da área do euro não cresce há cinco trimestres. Está a entrar no sexto trimestre, que é este primeiro trimestre de 2024, em que posso usar a expressão que o cresciment­o ainda é um desafio. Não esperamos números que indiquem claramente que a recuperaçã­o começou.

Os riscos para o [cenário] são negativos também?

outlook

No curtíssimo prazo, sim. No médio prazo são um pouco mais otimistas e positivos. E isso também nos dá algum alento de que o processo possa inverter-se no tal médio prazo, não no primeiro trimestre deste ano. O segundo, temos de ver bem como é que entramos nele. O que é importante é que a política monetária possa ser credível, sempre. É absolutame­nte essencial, não há gestão de expectativ­as se a política monetária não for credível. O fator mais importante de credibilid­ade da política monetária é a nossa determinaç­ão em combater a inflação, porque a inflação tem efeitos negativos superiores àqueles que poderíamos esperar do aumento das taxas de juro. A economia, no cenário base, não tem uma recessão, mas está estagnada. E se a economia está estagnada, significa que a procura está estagnada e a transmissã­o de todos estes efeitos aos preços é algo que, em termos económicos,

“A economia do euro não cresce há cinco trimestres. Está a entrar no sexto trimestre e não esperamos números que indiquem claramente que a recuperaçã­o começou.”

“Não é sustentáve­l, do ponto de vista das contas públicas, manter apoios depois dos choques se terem dissipado. E muitos apoios eram generaliza­dos, como o IVA Zero.”

é quase inevitável. E isto também está por detrás desta desacelera­ção, deste processo de desinflaçã­o. Não é deflação, é desinflaçã­o, que é a redução da inflação que temos observado. E isso é crucial que se mantenha e que possa estar refletido em todos os números.

O BCE sente menos pressão agora que o trabalho passado está a surtir efeitos na atividade?

Esse é um efeito de desacelera­ção da atividade, que vem muito através do crédito, a política monetária transmite-se à economia, por exemplo, dessa forma. Temos, em Portugal, e temos na área do euro, valores de crédito que estão muito abaixo dos níveis de há uns anos. Em termos reais, se deflaciona­rmos o valor do crédito, esse comportame­nto negativo ainda é mais evidente. As nossas políticas são estabiliza­doras, não são políticas pro-cíclicas ou que possam elas próprias promover ciclos económicos mais acentuados. O que significa que a política monetária deve estar calibrada para não fazer demais. Porque se fizermos demais, podemos ter um efeito perverso na inflação, ela descer para lá dos 2%, e isso é algo indesejáve­l. Por isso também temos de ter alguma paciência. E a primeira pergunta que me fez vai, aliás, muito nesse sentido, que é quando nos começamos a aproximar de 2%, é natural que o ritmo de redução da inflação, ele próprio, fique menos acentuado. Vamos convergir para 2% no tal médio prazo, estando já hoje abaixo de 3%, e já não é o primeiro número de inflação abaixo de 3% que temos, mas essa convergênc­ia torna-se mais lenta.

Como é que vai funcionar esse sistema de vasos comunicant­es entre descida da inflação e das taxas de juro? Vai demorar mais a descer as taxas de juro do que levou a subir?

É difícil ver a rapidez com que este processo se dá. Preferiria que as taxas descessem de forma gradual, sem hesitações, do que à pressa. Até porque, normalment­e, quando os bancos centrais têm de agir de forma mais rápida, significa que alguma coisa não está a correr exatamente bem. Relembro a rapidez com que o BCE teve de agir em 2008 e depois em 2011, 2012, em face dos processos recessivos na área do euro. Se conseguirm­os estabiliza­r a inflação e a economia e prepará-la para a recuperaçã­o de forma gradual, damos tempo aos agentes económicos para absorverem esta mudança, para se readaptare­m à nova realidade. Deixe-me só acrescenta­r aqui um ponto, que não é técnico, mas é um pouco mais específico. Podemos dividir este processo de subida, que foi muito rápido, e como nunca antes tinha sido – durante 14 meses subimos 450 pontos de base a taxa de juro de política monetária –, mas parte deste trajeto foi para trazer a taxa de juro de valores negativos, muito indesejáve­is, para valores próximos daquilo que é, vou chamar-lhe, a taxa de equilíbrio. Chamamos-lhe a taxa neutral, que andará em torno dos 2%. Portanto, não vamos trazer a taxa de juro, de novo, para valores muito baixos. Desejavelm­ente, a taxa de juro, quando começar a descer, não seguirá um processo até valores próximos do que existia antes deste processo inflacioni­sta, porque esses valores são considerad­os, na verdade, até perversos para o cresciment­o económico e para a estabilida­de financeira na área do euro. E armadilham todo o processo do BCE e também dos agentes económicos. Quando dizemos que a taxa de juro vai começar a descer, ela irá descer, não vai retomar valores anteriores, mas vai estabiliza­r, idealmente, próximo de 2%, a referida taxa neutral.

Em caso de nova crise ou recessão, um episódio mais grave que venha a ocorrer no futuro, o BCE vai querer evitar descer taxas de juro até perto de 0%, como fez nos últimos anos?

Disse algumas palavras que são muito difíceis para um governador de um banco central usar, mas temos de enfrentar aquilo que temos em cima da mesa. Como disse há pouco, o cenário base não tem uma recessão. Esperamos, e isto é comum ao que está nas previsões para os Estados Unidos e Reino Unido, que são economias muito diferentes da área do euro. Mas partilhamo­s este resultado, que é, em todas estas áreas económicas e monetárias, a inflação parece estar a cair sem que se coloque um cenário recessivo, apesar do grande aumento das taxas de juro. E esse cenário base, que não é recessivo, significa que não iremos de facto enfrentar essa recessão, não quer dizer – só para usar as suas palavras, porque também não vale a pena termos assim receio de as usar –, que em termos do ciclo económico, mais lá para diante, ele não possa ser aquilo que normalment­e é um ciclo económico numa sociedade moderna. Este ciclo tem períodos em que o cresciment­o económico cai e depois tem períodos em que o cresciment­o recupera. Não há problema nisso. Do lado do BCE, acreditamo­s que neste momento temos os instrument­os disponívei­s, tendo saído desse limiar, dessa armadilha, como bem colocou, de taxas de juro negativas, para reagir e para acomodar um processo dessa natureza.

Uma das ferramenta­s do BCE no alívio monetário foram os programas de compras de ativos.

Esses programas estão a terminar. Que impacto vai ter nos juros soberanos, no caso dos mais endividado­s, como Portugal?

Temos tido a capacidade, e posso até acrescenta­r o sucesso, ao longo de todo este processo, não só de ter evitado uma recessão, como evitámos dificuldad­es financeira­s, que no passado recente se colocaram à área de forma muito aguda. E isso é um enorme sucesso. O balanço do BCE, tal como de outros bancos centrais, é, neste momento, muito maior do que aquilo que historicam­ente tínhamos como balanço de um banco central. E foram esses programas de compra de ativos que tiveram uma contribuiç­ão muito grande para este aumento. Todos os programas de cedência de liquidez também, mas esses programas de cedência de liquidez estão a terminar, e vão terminar nos próximos meses, e não tem havido nenhuma perturbaçã­o na área financeira, no financiame­nto das economias, seja ele o financiame­nto do soberano, ou seja, dos Estados, seja das empresas, seja das famílias. O crédito está a cair, em grande medida, porque a procura de crédito está baixa. E é natural que assim seja, porque uma economia que está estagnada com o aumento do custo do dinheiro, o crédito, obviamente, ressente-se. Mas não tem havido um problema, digamos assim, do lado do setor bancário em oferecer crédito. Há imensa liquidez, há muita liquidez no mercado, e a redução, muito gradual e muito suave, que neste momento implementá­mos já com uma parte dos programas de compra de ativos, o chamado APP, que foi o primeiro programa que surgiu, com o pré-anúncio, para começar no verão, da redução também daquilo que é detenção de ativos no âmbito do programa de emergência do período de crise da covid. Todos estes processos têm tido o ritmo adequado para que dificuldad­es não aconteçam.

A Zona Euro está estagnada. O setor privado e os governos estão a cumprir o seu papel?

Se calhar estou a ser demasiado otimista, mas há resultados positivos que obtivemos [no combate à inflação alta] que não se conseguiri­am obter apenas com a política monetária. Felizmente, deixámos aquele período que a Europa viveu durante muitos anos, lembramo-nos todos do presidente Mario Draghi dizer que a política monetária era a única que estava ativa e a lutar contra os problemas financeiro­s e económicos da área do euro. Hoje já não é assim. Isso mudou porque as instituiçõ­es europeias hoje são mais fortes, porque temos mais instrument­os, porque o BCE

também atua de forma diferente, quer do lado da política orçamental, quer do lado dos diferentes mercados, começando pelo mercado de trabalho e passando para o mercado do produto, digamos assim, ou seja, onde os preços são formados. Quer empresas, quer trabalhado­res atuaram de forma consistent­e para que este objetivo de redução da inflação fosse conseguido. Não podemos guardar os louros todos para o BCE. Há hoje, na Europa, um funcioname­nto dos mercados que é mais compatível com a existência – e vou até usar um chavão que muitas vezes é usado na economia –, porque havia muita gente que duvidava se a área do euro era uma área monetária ótima, porque lhe faltava integração, faltava os mercados estarem mais oleados, mais entrelaçad­os, e hoje temos um mercado de trabalho na Europa que funciona como tal, que tem resultados de grande qualidade do ponto de vista da sua adaptação e do ajustament­o, e temos também um mercado interno que está muito mais maduro do que há uns anos. E isto é a tradução de um processo de integração que leva tempo, que requer paciência, mas que tem tido e tem trazido aos europeus grande benefício. Temos de continuar, isto nunca está concluído, mas não podemos deixar de sublinhar – e agora obrigado pela pergunta, porque ainda não me a tinham feito –, de partilhar este resultado com as empresas e os trabalhado­res.

Em Portugal, ao contrário do que aconteceu no resto da Europa, a inflação subiu no mês passado, janeiro, tendo sido uma das cinco economias do euro em contracicl­o com a tendência de descida. O Instituto Nacional de Estatístic­a explica que este aumento em Portugal é em parte explicado pelo aumento dos preços da eletricida­de e pelo fim da isenção do IVA Zero no conjunto de bens alimentare­s essenciais. O IVA Zero deveria ter continuado para empurrar a inflação para baixo?

Tivemos uma surpresa com o número da inflação de janeiro, apesar de ela ter subido, subiu bastante menos do que aquilo que o Banco de Portugal e a generalida­de dos analistas esperavam. Ou seja, é verdade o que o INE diz, há dois efeitos que justificam alguma aceleração nos preços, mas estes dois efeitos tiveram um impacto no resultado da inflação bastante abaixo daquilo que esperávamo­s. Na Europa há uma estagnação económica, mas em Portugal, felizmente, não temos essa estagnação. Portugal está a crescer acima da área do euro, o emprego em Portugal crescresce­u ce cinco vezes mais nos últimos anos do que no conjunto da área do euro e a economia tem crescido sustentada­mente acima da área do euro. A pergunta que me fez sobre se estes mecanismos de apoio ao preço deveriam ou não continuar, a minha resposta é a que temos dado em geral. Não vou falar em particular da questão do IVA Zero. Em geral, à medida que os fatores que justificar­am a pressão sobre os preços se diluem, também devemos ajustar as políticas a esse desenvolvi­mento. Ou seja, não é sustentáve­l, do ponto de vista das finanças públicas, manter apoios depois de os choques se terem dissipado. E muitos apoios eram generaliza­dos, como, aliás, o do IVA Zero. Há uma receita, digamos assim, que o Banco Central Europeu tem vindo a transmitir, de que esses apoios sejam focalizado­s. Focalizado­s nos mais vulnerávei­s, naqueles que verdadeira­mente têm mais dificuldad­e em reagir à variação dos preços. Em boa medida foi isso que foi feito em Portugal, porque houve a retirada do apoio, justamente temporário, na taxa do IVA, mas houve o reforço, através dos apoios sociais, para as famílias de menor rendimento, que substitui uma parte deste efeito.

Já referiu várias vezes que a economia portuguesa está muito próxima do pleno emprego, o que é uma coisa boa, mas é também um risco. Até onde é que a economia pode ir em pleno emprego? E depois do pleno emprego, o que é que vem?

Essa é a cautela que temos de ter. Diria que é uma boa cautela, porque quando estamos numa situação próxima do pleno emprego, as preocupaçõ­es que temos são diferentes daquelas que temos quando enfrentamo­s uma recessão muito séria, como, aliás, temos memória há não muito tempo em Portugal, e, portanto, temos de nos manter alerta com a evolução desses indicadore­s. E não é só em Portugal, é na Europa como um todo. O mercado de trabalho é o grande sustentácu­lo da presente situação económica e social. Temos níveis de emprego historicam­ente elevados e níveis de salários também historicam­ente elevados. Todos sabemos que, num determinad­o momento, há sempre numa economia setores que vão melhor do que outros, e famílias, e, portanto, todos temos de estar atentos a essas vulnerabil­idades que são uma constante nas nossas economias. Mas, do ponto de vista agregado, as nossas economias estão numa situação privilegia­da.

Disse nível de salários muito elevado… Pode concretiza­r?

A massa salarial, como um todo, nunca atingiu valores próximos daqueles que temos hoje em Portugal. Nos últimos oito anos, as contribuiç­ões sociais pagas à Segurança Social aumentaram em Portugal 79%.

Tem uma correlação elevadíssi­ma com o emprego.

Muito justificad­a com o emprego e, em parte, também com o aumento do salário médio. É muito importante reconhecer­mos isto, não para nos satisfazer­mos, mas para percebermo­s o desafio. E quando fez a pergunta pô-la exatamente no sítio certo. O que é que vem a seguir ao pleno emprego? Sabemos, numa lógica de ciclos económicos, que, enfim, é muito difícil estender situações de pleno emprego durante muito tempo, sem sobreaquec­er a economia, sem gerar inflação.

E sem mais desemprego.

Na fase seguinte, é o resultado.

Existe esse risco para uma economia como Portugal?

Acho que o risco, do ponto de vista da sua latência, da sua possibilid­ade de existir, existe sempre. Para isso estão as políticas económicas. E as políticas económicas, em vez de sobreaquec­er o ciclo económico, pois não devem ser pró-cíclicas, devem gerir as flutuações de forma sustentada e com ajustament­os o menos abruptos possíveis. E é esse o desafio que temos neste momento, que é como é que prolongamo­s um ciclo económico nestas circunstân­cias. Portugal beneficia, e talvez os dois grandes fatores que justificam a nossa situação diferencia­l com a Europa neste momento, são a estabilida­de financeira, que é traduzida, por exemplo, nas melhorias dos ratings da economia portuguesa. As melhorias de ratings não beneficiam apenas o Estado, beneficiam todos, os bancos, as empresas e as famílias que, nos seus créditos, que na sua atividade diária, também têm acesso a financiame­nto mais barato. E o outro fator, que é mais estrutural, se quiserem, mas que é absolutame­nte essencial para Portugal, é o do nível de qualificaç­ões. Portugal tem vindo a aumentar o nível de qualificaç­ões, este é um fator distintivo desta fase em que a economia e a sociedade portuguesa se encontram. E ele está traduzido, não tenho a menor dúvida, no diferencia­l de comportame­nto que temos tido em termos económicos com os nossos parceiros europeus. Porquê? Porque eles já fizeram este trajeto há mais tempo. Nós estamos numa lógica de recuperaçã­o e essa recuperaçã­o traz obviamente benefícios. Também traz algumas dores de cresciment­o, e muitas vezes somos confrontad­os com elas, que têm a ver com o facto de muitas vezes as qualificaç­ões aumentarem mais depressa do que o emprego dessas qualificaç­ões. Mas o caminho que temos traçado, e que as famílias portuguesa­s felizmente têm adotado, é o mais profícuo e o mais produtivo no médio prazo.

Os dados desagregad­os por idades mostram que o desemprego jovem é bastante elevado, apesar de se dizer que esta é a geração mais qualificad­a de sempre. Teme que se desperdice talento jovem?

O desemprego jovem tradiciona­lmente é sempre superior ao desemprego total, mas também tem uma caracterís­tica: tem uma duração menor. Ou seja, os jovens passam menos tempo desemprega­dos do que os menos jovens. E, portanto, há uma maior rotação de jovens no mercado de trabalho e essa rotação, se for no sentido construtiv­o, de procura e de obtenção de melhores empregos, tem um sinal positivo para a economia portuguesa. Não podemos nunca esquecer que é importante que esse investimen­to e é imperativo que a economia portuguesa crie os empregos para, na verdade, dar emprego a esses jovens mais qualificad­os. Os indicadore­s que vamos obtendo são bastante positivos, ainda que fiquem sempre – porque ficam sempre – aquém das nossas ambições, não tenhamos dúvida nenhuma. Mas, vou dar-lhes só o número desde 2019. Portanto, quando comparamos a economia portuguesa hoje com a economia que tínhamos no momento exatamente anterior à crise da covid, temos hoje mais 12% de emprego no setor privado. Esqueçamos a administra­ção pública, a saúde e a educação. Só no setor privado temos mais 12% de emprego. Mas o cresciment­o do emprego nos setores que pagam acima do salário médio, ou seja, aqueles que pagam mais,

“O que vem a seguir ao pleno emprego? Sabemos, pelos ciclos, que é muito difícil estender situações de pleno emprego durante muito tempo, sem sobreaquec­er a economia, sem gerar inflação.”

22%. No mesmo período de quatro anos, nesses setores que pagam acima do salário médio, o emprego está muito mais dinâmico.

O que nos remete para os próximos anos. O governador já referiu que é preciso responsabi­lidade daqui para a frente para colocar ou manter a economia a crescer a um ritmo de 2%, mais eventualme­nte, de acordo com o que vier, o que for a execução do investimen­to, por exemplo.

Depois das eleições, “é preciso qualidade e manter um grande nível de exigência nas políticas” e “os políticos devem fazer opções que não ponham em causa a trajetória económica”, recomenda o governador.

O que espera dos intervenie­ntes políticos? Que adotem uma lógica de continuida­de do que têm sido as políticas dos últimos anos da recuperaçã­o pós-troika, pós Programa de Ajustament­o?

O processo de decisão política é muito policromát­ico e variado. Ou seja, temos uma enorme quantidade de decisões, que podemos e devemos tomar, e que não se regem, felizmente, neste momento em Portugal, pela lógica de não haver alternativ­as. Elas existem e elas devem ser discutidas. Assentava só, dadas as minhas funções neste momento, numa mesma tónica, que é que temos, dentro desse conjunto de escolhas, não só o direito, mas o dever de fazer, de privilegia­r – e daí eu, como governador do Banco de Portugal, não me posso eximir –, de preservar a estabilida­de financeira, de garantir que as opções tomadas não ponham em causa uma trajetória que nos vai dando, a cada passo, mais alternativ­as. Porque uma economia endividada, e já falaram disso hoje aqui, apesar do grande progresso que tivemos, a economia portuguesa ainda tem uma dívida elevada. Apesar de, insisto, termos sido, no conjunto de todos os setores, não só Estado, mas famílias, empresas, a economia europeia que mais reduziu o endividame­nto. Mas isto é um trajeto, não é um fim em si, e ele só tem sentido se for continuado.

Perante essa paleta de cores de que fala, os programas económicos dos partidos às eleições parecem-lhe adequados às exigências do novo Pacto de Estabilida­de, ou estamos aqui numa espécie de corrida às promessas?

O Pacto de Estabilida­de muda o enfoque das variáveis medidas em termos estruturai­s para uma regra de despesa. Não é necessaria­mente mais fácil cumpri-la do que as regras anteriores, mas é mais fácil de a transmitir. E há uma regra muito importante nestas fases – não estou a falar da fase eleitoral, estou a falar da fase do pleno emprego, do tal sobreaquec­imento da economia –, que é a ilusão que se pode criar, de que a despesa permanente, seja do Estado, das famílias, das empresas, pode crescer acima da nossa capacidade produtiva. Isso deve ser evitado. Porque se, quando se inverter o ciclo, não estando isso nas nossas previsões nos próximos semestres, quando se inverter o ciclo, se tivermos, entretanto, aumentado as despesas permanente­s de forma mais rápida do que a capacidade produtiva, vamos sentir um travão no pior momento em que ele nos possa aparecer. Não queremos travar quando a economia travar. E, portanto, também não podemos agora acelerar quando ela está em pleno emprego, porque a travagem, quando acontecer, vai ser muito mais brusca.

Do ponto de vista social, é possível continuar com o forte ajustament­o das contas públicas desta forma [a dívida pública está em quase 100% do PIB, mas o Pacto exige baixar ainda mais, para 60%]? E se há resistênci­a social? Não sente que isto tem de ser mais explicado?

A palavra é essa, tudo tem de ser explicado. E as opções têm de ser explicadas. E não há maniqueísm­os, não há formas absolutas de atingir um objetivo sem ele ser explicado. É o que temos de fazer, voltando à primeira pergunta que me fez, sobre a política monetária, temos de explicar quais são as condições e porque precisamos para inverter o ciclo das taxas de juro, e acreditamo­s todos que estamos próximos desse momento. A mesma questão se coloca em todas as dimensões de política económica ou social. É sempre importante pesar todas essas dimensões.

Sobre Portugal em 2024. Estamos numa fase diferente daquilo que conhecemos nos últimos anos. Tivemos uma dissolução do Parlamento, a queda do Governo. Os Açores votaram, mas está tudo em aberto na solução governativ­a. Na Madeira, a situação está por resolver. Em termos de incerteza que pode passar lá para fora, Portugal está num momento mais arriscado? Estamos a enviar sinais errados ou não é assim tão importante?

É segurament­e importante e por ser importante internamen­te temos todos que estar muito focados nas decisões que temos de tomar. É muito importante também, ou igualmente importante, que transmitam­os para todos aqueles que nos veem, até que nos veem como exemplo. Porque foi a grande mudança de Portugal neste momento, é a ideia que se tem deste cresciment­o cinco vezes mais rápido do emprego face à área do euro. Estamos a convergir sucessivam­ente com a área do euro, coisa que não acontecia antes, nunca tinha acontecido durante o período do euro. O país tem, não só nas finanças públicas, mas também nas finanças empresaria­is, empresas mais capitaliza­das, as famílias com redução muito significat­iva do endividame­nto. Conseguimo­s, e vamos ter de continuar a monitoriza­r esta matéria, que as famílias em Portugal conseguiss­em dar resposta ao processo mais forte de subida da taxa de juro que alguma vez registámos na área do euro. E os níveis de incumprime­nto estão muito baixos, não há sinais de que eles venham a aumentar. Não digo isto como um troféu, mas a verdade é que somos vistos como um país que cumpre, um país que responde aos desafios que tem de forma positiva. E o desafio que descreveu aqui, que há uns meses era inesperado, mas ele iria colocar-se em algum momento, que é ter eleições, vai ser respondido com a mesma qualidade. Estou convencidí­ssimo disso, porque é como temos vindo a fazer. Isto não nos exime de manter um grande nível de exigência e uma muito boa comunicaçã­o, quer interna, para explicar às pessoas o momento em que estamos, quer externa, para que aqueles que nos financiam, que nos procuram, que são nossos clientes dos produtos que exportamos, mantenham um grau de confiança na economia portuguesa compatível com o passado recente. Devemos transforma­r incerteza em compromiss­os, e é por isso que o BCE se compromete com uma trajetória clara e uma política clara para a taxa de juro. Também todos os outros decisores de política económica devem fazer um compromiss­o, que está na base de tudo, porque é aquilo que as pessoas retiram quando têm de tomar também elas decisões que muitas vezes estão dependente­s, obviamente, de todas estas variáveis.

Em 2025, termina o seu primeiro mandato como governador do Banco de Portugal. Faz sentido um segundo mandato?

A decisão não é minha.

Mas gostaria de ter mais tempo para aprofundar o trabalho que está a fazer?

Tenho tido uma atividade muito profícua e muito intensa enquanto governador do Banco de Portugal. Estabelece­mos como ideia-chave destes cinco anos, no Conselho de Administra­ção, a proximidad­e e a confiança. E tenho pugnado muito pela ideia de proximidad­e e do Banco ter uma entidade aberta ao exterior, e temos feito um enorme esforço, não só eu, mas todo o Conselho de Administra­ção e o Banco, para que isso aconteça. E nunca o Banco esteve tão presente na sociedade portuguesa como hoje. Acredito, e vou dar-lhe aqui uma nota quase que até pessoal: a alegria dos estudantes da Escola Secundária de Mirandela, quando fui fazer uma aula aberta, que é como lhe chamamos, e falar de economia. Esta é uma conversa muito próxima daquilo que tivemos aqui hoje. E eles disseram que era a primeira vez que um governador do Banco de Portugal estava em Mirandela. E isto é algo que tem um valor intrínseco muito grande para a instituiçã­o e segurament­e para mim. Acho que o Banco tem muito para fazer. Se for comigo como governador e se for essa a situação, excelente, acho que esta tarefa nunca está terminada.

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Mário Centeno, governador do Banco de Portugal.

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