Diário de Notícias - Dinheiro Vivo
Cristina Siza Vieira “Algarve não vive sem o turismo e sem água”
Vice-presidente executiva da Associação da Hotelaria de Portugal teme o impacto da falta de água no Algarve para o setor, e pede ao futuro governo soluções sustentáveis e de longo prazo para a região.
Para Cristina Siza Vieira, a lei do alojamento local tem que ser afinada, porque é genérica e não satisfaz especificidades do setor. A vice-presidente executiva da AHP afirma que a maior preocupação do setor do turismo em relação ao futuro é o tema da sustentabilidade.
A hotelaria e o turismo vão reunir-se em congresso no Funchal entre 21 e 23 de fevereiro. Quais as prioridades do setor que exigem maior reflexão neste momento?
Existem situações em que temos de, não apenas refletir sobre o presente, mas de projetar o futuro, porque, de facto, há que preparar a indústria para aquilo que são os novos desafios, os novos players, novas gerações. E, portanto, há algo que está em cima da nossa cabeça todos os dias que é esta situação das alterações climáticas, do Horizonte 2030, é esse realmente o título do nosso congresso. O tema da sustentabilidade, e não há negócio se o negócio não for sustentável, mas também não há sustentabilidade se as empresas não sentirem que têm impacto positivo no negócio. E neste momento, com os desafios do Fit for 55 [Objetivo 55], esta década do make it or break it é realmente decisiva, a regulação europeia está muito pesada, está complexa, não sei se suficientemente densa do ponto de vista de perceber os impactos económicos, estamos a atravessar momentos realmente muito comgrandes plexos do ponto de vista geopolítico, etc.. E, portanto, olhar para o tema da sustentabilidade, que há muito que olhamos, mas na perspetiva de desafios e de negócio é neste momento a nossa maior preocupação, mais do que olhar para a espuma dos dias.
Já iremos à questão da sustentabilidade, mas primeiro, antes de tudo, 2023 é dado como o melhor ano da história do turismo, com receitas superiores a 25 mil milhões de euros, um aumento de 37% face a 2019. Acredita que em 2024 vão manter o trajeto? Somos conservadores nestas projeções e quando se vem do melhor ano de sempre, maior prudência haverá, porque the sky is not the limit, não é? No último inquérito que fizemos às perspetivas dos nossos associados hoteleiros, e foi um inquérito com uma amostra muito robusta, foram muito prudentes nas expectativas. Ainda assim, prevendo que o ano de 2024 seja pelo menos igual ao ano de 2023, ainda temos que recuperar no Algarve. O Algarve ficou aquém dos resultados de 2019. Tivemos um crescimento muito interessante noutras regiões. Os Açores têm uma marca muitíssimo forte de sazonalidade. É pena, de facto, não se conseguir distribuir melhor no tempo esta procura pelos Açores. As questões das condicionantes do transporte aéreo são fortes, quer nos Açores, quer em todo o território nacional. E, de facto, enfim, gostaríamos que pelo menos o ano de 2024 consolidasse 2023, é pelo menos essa a expectativa.
A Associação Portuguesa de Agências de Viagens antecipa uma desaceleração do turismo devido a fatores como a guerra, a inflação, as taxas de juro, sem esquecer a instabilidade política internacional, agora também nacional. Acredita que isso possa causar um travão no turismo?
De facto, há um equilíbrio que gostaríamos que se fosse sempre mantendo. Obviamente, como setor exportador, é ter mais turismo internacional do que turismo interno. Isso, aliás, contribui para o equilíbrio da nossa balança de pagamentos. Mas a verdade é que precisamos muito do turismo interno e, aliás, a Associação de Agências de Viagens vinha sinalizando que o turismo interno viajou muito para fora. E atenção: já temos também uma comunidade muito importante de estrangeiros a residir em Portugal. Portanto, turismo residente, turismo interno, era bom puxar por eles, aquilo que dizíamos como um fine-tuning, de conseguir encontrar aqui uma vontade de permanecer no próprio país, de o conhecer, no fundo de também gastar dinheiro no seu próprio país. É evidente que Portugal tem beneficiado do facto de sermos um país muito tranquilo, com uma boa relação qualidade-preço, com um tempo extraordinário.
Há novos hotéis previstos, se calhar também novas formas de alojamento e, atualmente, com a campanha política, alguns dos partidos até têm atacado que exista demasiada construção e demasiados hotéis em Lisboa. Ao nível do investimento, quer público, quer privado, o que é que se perspetiva para este ano e como é que vê declarações como esta?
Primeiro é bom que assumamos que o turismo é fundamental para a economia nacional. Em 2023 é preciso não esquecer que a economia portuguesa fechou com um crescimento de 2,3%, quando na zona euro fechou a 0,5% e muitíssimo impulsionada pelo turismo. Depois temos, de facto, um país muito bem servido de infraestruturas. Podemos e devemos apostar mais noutras, é verdade, de transporte, mas, em termos de serviço, encontramos hotéis em qualquer raio de distância onde se viaja e formas de alojamento. Temos muita oferta cultural, temos muita vida para várias gerações. Ao nível do investimento, o que é que se perspetiva para este ano? Nós temos desde grupos estrangeiros que têm investido, a fundos internacionais com bastante relevo. Temos um posicionamento neste radar destes
“Os imigrantes já representam 28% dos trabalhadores na hotelaria e restauração. É empírico, se nós andarmos por aí percebemos, não é?”
investidores muito interessante. Aliás, eles andam permanentemente às compras, mais houvesse e mais apostariam. Há, no entanto, um espaço que não está ainda bem trabalhado, nem em termos legislativos, nem em termos de um enquadramento geral, que são um bocadinho um mix-use. Portanto, temos, neste momento, hotéis que podem funcionar como residências mais ou menos permanentes de turismo, para passar períodos de tempo mais longos, que podem ter uma parte habitacional, que podem ter uma parte de serviços. E acho que esta versatilidade no alojamento vai ter de ser encontrada. Também consideramos que é necessário investimento permanente. Esta questão da adaptação às alterações climáticas, a questão da maior efi
ciência nos consumos, exige refrescamento da oferta que já existe, algumas com localizações extraordinárias.
Apesar da rentabilidade, o problema dos recursos humanos continua a ensombrar o setor. O que é que falta?
Uma coisa é o trabalho precário, outra é o trabalho sazonal e em picos de produção. E isso a nossa indústria precisará sempre, é como a agricultura ou setores extrativos, digamos assim. Temos, de facto, sazonalidade, por muito que se diga que não temos, temos. Há muitos hotéis que fecham, uns para férias, outros para recuperações, outros porque não têm capacidade para ter um hotel todo aberto. Em 2022, queixámo-nos imenso de um peso tremendo, de repente o serviço não conseguia ser prestado porque não nos preparámos para aquele pico tão brutal de procura. Estivemos todos com uma tampa em cima, tirámos a tampa, desatámos todos a ir viajar e a hotelaria não estava preparada. Em 2023, apesar de tudo, não foi tão mau, nem nos queixámos tanto. Ainda assim, é importantíssimo perceber, por exemplo, que os imigrantes, e são os que estão declarados à Segurança Social mensalmente, já representam 28% dos trabalhadores na hotelaria e restauração. É empírico, se nós andarmos por aí percebemos, não é? O que é que falta? Por exemplo, acho que faltam bons programas para integração e formação de imigrantes.
Com muitos países em eleições, aliás, como o nosso, será possível duplicar este ano o número de tu
ristas como aconteceu com o mercado norte-americano?
“[A questão do alojamento local] devia ter sido tratada um bocadinho mais cedo. Já tínhamos estudos que o indicavam. Neste momento, a habitação e esta relação abrasiva com este turismo está na ordem do dia.”
É uma boa pergunta, dado que os países vão estar em eleições e no final do ano também temos as eleições norte-americanas que trazem uma ansiedade a todos nós, não é? Portanto, verdadeiramente, dizer que continuará a crescer ao mesmo ritmo não seria tão natural, porque este crescimento galopante já vem de trás, houve um investimento muito forte em promoção por parte do Turismo de Portugal que deu muito bons frutos. Trata-se de um mercado consolidado para Portugal e tem de se continuar a apostar nele, atenção. E, portanto, acreditamos que temos espaço para crescer, acredito que teríamos muito espaço para crescer na Alemanha, que são os maiores globetrotters da Europa, e também acho que teríamos de diversificar, é um mercado importante para Portugal, mas Portugal é pouco importante para eles. Ainda temos muita capacidade para captar públicos interessantes. Todos eles são muito mais endinheirados do que nós e, portanto, também são consumidores e isso é importante para a nossa economia.
Com a perda de poder de compra dos portugueses e o aumento dos preços de alojamento nos destinos de praia nacionais, especialmente em época alta, haverá espaço para os portugueses?
Este fenómeno de dizer que perdemos poder de compra, etc., acho complicado dizer assim. E também nem todos vão para hotéis e a nossa oferta turística é muito mais do que hotéis. Além de termos turismo de espaço rural, agroturismo, bons parques de campismo, temos uma outra coisa que sempre dissemos ser absolutamente essencial, que são os apartamentos turísticos. E quando o alojamento local nasceu – muito para legalizar uma situação que já preexistia, que eram desde as casas que se alugavam na Nazaré e em Peniche, aos apartamentos que também estavam fora do mercado regulado no Algarve –, isso trouxe para o mercado regulado uma série de unidades e trouxe também uma gestão integrada. Há muitos operadores que gerem este pacote. A proposta que a Associação da Hotelaria de Portugal fez neste domínio, a propósito da lei – e considero que a lei tem mesmo de ser afinada –, é que era preciso distinguir situações. E uma coisa são as segundas habitações e outra é a pressão nas cidades que estão, de facto, a necessitar de algum equilíbrio e era preciso deixar que as câmaras municipais regulassem melhor este mercado. A escassez de habitação é imensa também nesses locais. Sabemos que é difícil, por exemplo, deslocar professores para o Algarve ou médicos.
Mas o Mais Habitação não resolvia essa questão?
Não nessa perspetiva, de todo. Mete tudo no mesmo saco. Porque a escassez de habitação pressionou de tal maneira o legislador que, a certa altura, mesmo quando propusemos atenção em algumas partes, não conseguimos. Não olhar, por exemplo, para os hostels que ocupam um prédio inteiro, da mesma maneira que se olham para frações que podem ser colocadas no mercado de rendimento, lá está. Mas nessas outras, distinguir segundas habitações de primeiras, etc., não calibrou bem. E, portanto, acho que as câmaras têm de olhar para isto de outra maneira, que se deve fazer alguma alteração e afinamento.
E é uma tarefa para o próximo governo?
Pois, diria que sim. Enfim, isto foi uma matéria que passou também pela Assembleia da República, como sabemos, e suscitou muita paixão. A nosso ver, devia ter sido tratada um bocadinho mais cedo. Já tínhamos estudos que o indicavam, que isto ia ser um problema grande. Todos os sinais na Europa são estes. Neste momento, a questão da habitação e esta relação abrasiva com este turismo está na ordem do dia.
Em matéria de sustentabilidade, acha que as empresas portuguesas neste ramo do turismo têm sido sensibilizadas para a sua importância?
As empresas hoteleiras e turísticas têm o meio ambiente e a comunidade onde se inserem. E, portanto, se não cuidarmos bem daquilo que é este nosso ativo, é evidente que depauperamos também o nosso património e a nossa procura. De alguma maneira sempre fomos bastante cuidadosos e sustentáveis, também por uma outra razão. Por exemplo, a redução dos caudais de água, a utilização eficiente da energia, é algo que já se fazia muito frequentemente e em grande escala, sobretudo nos grandes operadores, porque ia bater diretamente na tesouraria e no bolso dos empresários. E, nesse sentido, otimizava-se. Mas dizer que estavam despertos para o tema da sustentabilidade, do ambiente, da preservação, ficamos um bocadinho ainda longe. Neste momento, não só o quadro regulatório é um quadro pesado e o que vem aí, mesmo para as PME, é mesmo esta questão da obrigação do reporte, a par do reporte financeiro, é uma condição de acesso. Acesso, designadamente, a financiamentos, a promoções, a promoção turística, à procura dos próprios turistas, ao ranking que se vai fazendo. Se virem hoje, mesmo nos grandes motores de busca, já se percebe o que é que cada um faz em prol disto e daquilo. Portanto, é um caminho que se foi trilhando e que agora é mais impulsionado. Temo, apesar de tudo, que o quadro regulatório seja demasiado exigente para PME, mas isso é um tema que está, neste momento, outra vez em discussão na Europa.
TGV, TAP, o que é que perdeu o turismo com a queda do Governo?
Há algo que acho que ao nível da continuidade das políticas devia ser acompanhado com mais cuidado, que é o que está a ser preparado a nível europeu, porque muitas coisas têm, de facto, impacto no turismo. E estas situações de novos governos, de novos gabinetes, não conseguem acompanhar estes temas, que não são tanto diretos, de impacto no negócio, mas indiretos, na indústria. Também é preciso a Comissão Técnica Independente tomar uma decisão [sobre o novo aeroporto]. Avançar com a decisão, que lá ficou mais uma vez parada. A situação também do TGV... já sabemos que há muita vontade, mas até haver vontade e concretização entre os vários interesses em presença... Há uma situação para nós gravíssima e que tem de ser encarada com muita seriedade, que é a escassez hídrica no Algarve e também em todo o país. Esta questão do racionamento e da subida de custos não pode ser vista como uma situação estrutural, porque daqui a pouco estamos a racionar, racionar, racionar. Esta situação tem de ter soluções sólidas, sustentáveis. O Algarve não vive sem turismo, e o turismo não vive sem sustentabilidade ambiental, e, portanto, sem água. Esta situação, que já está a ser trabalhada noutros destinos, concorrentes no turismo, é essencial que seja pensada. O próximo governo tem esta situação, em que este foi apanhado no meio, mas não temos soluções, e isso é muito preocupante.