Diário de Notícias - Dinheiro Vivo

Helder Pedro “Importámos 100 mil carros usados, 50% das vendas de novos. Rácio que só os países de Leste têm”

Líder da ACAP diz que Portugal produziu mais carros do que a Suécia, em 2023, mas faltam incentivos para renovar o parque automóvel e massificar a compra de elétricos. Defende que Portugal tem capacidade para atrair um grande investimen­to no setor na era

- Texto: José Varela Rodrigues e José Milheiro (TSF)

Helder Pedro é o secretário-geral da Associação Automóvel de Portugal (ACAP) há 32 anos. Em entrevista ao Dinheiro Vivo e à TSF, o principal rosto da associação que representa a atividade comercial do setor automóvel do país faz um ponto de situação do mercado automóvel nacional. Defende uma política de abate, uma revisão da fiscalidad­e sobre os veículos e sugere um simplex para os pontos de carregamen­to de elétricos.

Circulam em Portugal um milhão e meio de veículos ligeiros com mais de 20 anos. O que falta para renovar o parque automóvel?

A única medida que tem sido adotada por vários governos para rejuvenesc­er o parque automóvel e incentivar a sua renovação é a criação de um incentivo ao abate para veículos em fim de vida, que já funcionou com bastante sucesso em Portugal durante a crise de 2009. A ACAP tem proposto aos vários governos e, concretame­nte, consta do Orçamento do Estado aprovado para 2024 – e não fosse o facto de estarmos realmente com um governo de gestão e em processo eleitoral, estamos convencido­s que estaria implementa­do – um plano de incentivo ao abate, que visa 129 milhões de euros através do Fundo Ambiental, porque o Fundo Ambiental destina-se a ações de descarboni­zação e esta é uma medida de descarboni­zação. Fizemos cálculos sobre isso e estamos a retirar de circulação veículos que emitem, em média, 180 gramas de dióxido de carbono [CO2], renovando por veículos ou com emissões zero ou com motores de combustão interna de baixas emissões ou até, uma questão que chegou a estar em cima da mesa, poder comprar um veículo já matriculad­o, mas com um limite de idade.

Mas é uma medida de descarboni­zação porque cada vez mais os veículos que se apresentam para abate são veículos muito antigos?

Exatamente. Na nossa entidade gestora de veículos em fim de vida, a Valorcar , onde também monitoriza­mos os mais de 300 centros de desmantela­mento de veículos em fim de vida que existem em Portugal, vimos que, em 2023, o parque automóvel tinha uma idade média de 24,3 anos, mais de 24 anos, quando ainda há cinco anos tinham 16 anos, 17 anos de idade média, quando chegavam aos centros de desmantela­mento. Isto demonstra o progressiv­o envelhecim­ento do parque circulante em Portugal e, realmente, a única medida que existe e que os governos terão de se socorrer dela é incentivar a sua renovação. Em 2009, só para recordar, a lei entrou em vigor em agosto e até dezembro foram dados 39 mil incentivos, significa que houve 39 mil renovações de veículos que estavam a circular em fim de vida. Depois há também o outro aspeto, que é a própria segurança rodoviária. Portugal, infelizmen­te, continua a ter números muito graves em termos de segurança rodoviária. Todos os dias somos confrontad­os com notícias nessa área e um parque envelhecid­o não contribui para uma maior segurança rodoviária.

Para quebrar esse ciclo de envelhecim­ento será preciso agravar fiscalment­e a importação de veículos usados?

Em 2023, foram importados cerca de 100 mil veículos usados, o que significa – um rácio que geralmente é feito em termos europeus –, 50% da totalidade dos veículos novos vendidos em Portugal. É um rácio que só países do Leste da Europa e que entraram mais tarde na UE é que têm. A ACAP não tem nada contra a livre circulação de pessoas, bens e capitais na UE, só que este problema existe por não haver uma harmonizaç­ão fiscal no setor automóvel na UE. Já houve várias propostas de diretivas e regulament­os comunitári­os, mas nunca se conseguiu harmonizar essa fiscalidad­e e há um grupo de países que tributa bastante os veículos automóveis, tradiciona­lmente na compra, e outros que não tributam. Portugal, infelizmen­te, é um dos que tributam na compra, temos o Imposto sobre Veículos [ISV]. Há vantagens fiscais de veículos que pagaram menos em incorporaç­ão de imposto quando foram vendidos novos. E isso vem a envelhecer o rácio, também, já agora, dos veículos que foram importados, usados ou já matriculad­os noutro Estado-membro, com uma idade média de 7,1 anos, o que é elevado.

No aspeto da fiscalidad­e e no rácio de importação, Portugal compara bem ou mal com o resto da Europa?

Na fiscalidad­e compara mal, porque há uma contradiçã­o. Portugal, é um país considerad­o na Europa com indústria – relembro que a nossa indústria automóvel produziu mais de 300 mil veículos em 2023, as fábricas estão cá e um país com 300 mil veículos produzidos é considerad­o já um país com indústria automóvel. Produzimos mais do que a Suécia, que é um país tradiciona­lmente com indústria automóvel e nós temos o ISV, que incide na compra do veículo, sobre o qual incide um IVA de 23%, que é uma situação em que os vários governos se têm escudado com as diretivas do IVA, mas não deixa de ser uma injustiça fiscal termos um imposto. Ou seja, o contribuin­te paga um imposto e sobre esse imposto incide outro de 23%.

“Há dificuldad­es na rapidez de execução [da rede de carregamen­to elétrico]. Usamos muito a palavra simplex para várias áreas. Deveria haver um simplex da eletrifica­ção.”

“A nossa indústria automóvel produziu mais de 300 mil veículos em 2023. Produzimos mais do que a Suécia.”

Mas é a fiscalidad­e que impede a compra dos veículos novos?

Impede de alguma forma, porque a fiscalidad­e é um peso grande que existe sobre o consumidor nos veículos novos, porque tem esse imposto sobre veículos, tem o IVA sobre esse imposto também, os particular­es não podem deduzir o IVA, as empresas podem, mas os cidadãos particular­es não o podem fazer. E também não é por acaso que o setor automóvel é o principal contribuin­te, em termos de setores económicos, para a receita fiscal do Estado. O ano passado, contribuím­os com 17,7% do total das receitas fiscais do Estado português, foi o principal setor contribuin­te, foram 10 mil milhões de euros, incluindo os impostos sobre os automóveis, o IVA, o imposto sobre combustíve­l, as portagens também. E é isso que tem levado, na nossa opinião, a um entrave ao desenvolvi­mento da acessibili­dade das pessoas ao bem automóvel e a terem de recorrer a outras soluções, tal como a importação.

Mas é isso que faz com que o mercado de venda de automóveis esteja em crise? Em 2023, o

valor de vendas ainda não superou o valor antes da pandemia, com menos 11% de carros vendidos do que em 2019. Podemos dizer que existe uma crise no setor?

Há, naturalmen­te, outros aspetos em termos de situação económica, a subida das taxas de juros também, que condiciona aquilo que é o índice de confiança dos consumidor­es e das empresas. Tivemos no ano anterior ainda, que foi superada em 2023, a famosa questão da escassez dos semicondut­ores na indústria, a paragem de fábricas, mas o aspeto estrutural é a fiscalidad­e.

O fundo ambiental tem uma dotação específica para apoiar a compra de carros elétricos, mas a dotação para 2024 diminuiu de dez milhões para seis milhões de euros. Como avalia a redução?

O fundo ambiental existe para apoiar a medida de descarboni­zação e a eletrifica­ção do parque automóvel é um desígnio que os próprios governos definiram e o que deveria existir era um reforço desse montante. Sabemos que o fundo ambiental está muito exaurido com investimen­tos que são importante­s em várias áreas, mas tem de haver aqui uma gestão, porque também sabemos que o fundo ambiental, nos últimos tempos, teve um reforço de receitas muito significat­ivo. É uma contradiçã­o essa redução do valor. E um outro aspeto é que o número de veículos ligeiros de passageiro­s abrangidos é sempre o mesmo há vários anos e as vendas de elétricos estão a crescer três dígitos ao ano. Não podem ficar sempre os 1300 veículos que se esgotam imediatame­nte quando o processo é aberto. Deveria acompanhar-se a realidade do mercado.

E quando os elétricos forem um padrão, a introdução do ISV e do IUC para este tipo de veículos deverá normalizar-se?

Não. Devemos aproveitar e não voltar atrás, ou seja, o ISV é um imposto que deveria caminhar para a sua eliminação. Quanto ao IUC, sabemos que o Estado tem um grande apetite por receitas fiscais, são 830 milhões de euros que não são só do governo central, são das autarquias, essa é uma questão que também foi levantada no final do ano, as autarquias também têm esse valor, mas terá de haver uma alternativ­a de receitas de outros setores, de outras áreas, que compensem de algum modo aquilo que o Estado poderá perder também por essa via.

Já aqui falou da questão das redes de carregamen­to. Em Portugal essa rede terá de crescer, a questão é como?

Há vários estudos que mostram que Portugal tem uma posição positiva comparando com outros países, porque de algum modo em Portugal, no que respeita à eletrifica­ção, considera-se que estamos no pelotão da frente. Tivemos no final do ano vendas de elétricos de 18,2%, a média europeia foi 14,6%, mas a vizinha Espanha está com 5,4% e a Itália 4,2%. Portugal está muito à frente neste ranking. Estamos muito bem nas vendas, estamos também em rankings que existem sobre rede, mas achamos que tem de ser feito mais. É por isso que a ACAP recentemen­te propôs a criação de um Observatór­io da Mobilidade Elétrica, que integre todos os parceiros desta área, com a Mobi-E, e que pretende, em tempo real, avaliar o estado da rede de carregamen­to de veículos elétricos.

Um estudo recentemen­te apresentad­o pela Mobi-E aponta para Portugal necessitar de instalar 76 mil pontos de carregamen­to até 2050, dos quais 15 mil até 2025. É possível?

Gostaríamo­s que fosse, mas o que nos tem chegado de associados e de várias entidades, é que há dificuldad­es na rapidez de execução. Era bom que se atingisse esse valor.

A dificuldad­e está no cruzamento de licenciame­ntos com a Direção-Geral de Energia?

Entre várias entidades ligadas também a esse processo. Deveria ser criada uma forma de rapidament­e se despachare­m os processos. Usamos muito a palavra simplex para várias áreas, mas também aqui poderia haver um simplex da eletrifica­ção.

A entrada de novas marcas com modelos elétricos mais baratos pode provocar uma disrupção positiva em Portugal, baixando os preços e também acelerando o rejuvenesc­imento do parque automóvel?

Sim, pode. A questão que se coloca é muito de competitiv­idade entre a União Europeia e as outras geografias, e aquilo que é a nova cadeia de valor que traz a mobilidade elétrica. A China domina uma parte significat­iva da cadeia de valor, é uma realidade. A UE está com novos atores neste mercado e todos os dias vemos notícias sobre isso. E estão no mercado nacional a ser colocados e a nomear concession­ários em Portugal, de norte a sul do país, é uma nova realidade. Essa realidade é importante, é um contributo para a eletrifica­ção e, talvez, para uma maior acessibili­dade dos consumidor­es à mobilidade elétrica.

Essa nova realidade procura a montagem de veículos no espaço europeu. Portugal pode ser equacionad­o para essa montagem de veículos? E está Portugal em condições de captar esse investimen­to para uma nova AutoEuropa eletrifica­da?

Portugal está claramente capacitado. Há mão-de-obra, há especializ­ação, há realmente quadros muito capacitado­s na indústria automóvel. Depois temos uma fileira de fabricante­s de componente­s que é também muito importante para a nossa economia e é também um argumento importante para quem se instala. Temos todas as capacidade­s para atrair um novo grande investimen­to, uma fábrica da indústria automóvel. E sabemos que, quer nós, através da Mobinov, quer a AICEP e as entidades oficiais, têm todas as condições para atrair um grande investimen­to nesta área.

Mas se não conseguir atrair um grande investimen­to, uma AutoEuropa eletrifica­da para o país, todo o cluster poderá correr o risco de ficar datado, no sentido em que fica dependente de uma a AutoEuropa tradiciona­l. Como é que ficará Portugal se não for capaz de atrair esse investimen­to?

Pois, uma coisa é um novo investimen­to, que seria sempre muito bem-vindo para a economia nacional, porque uma coisa é estar capacitado, outra coisa é como é que esse cenário pode ser analisado. Portugal já produz veículos elétricos em várias unidades e fábricas instaladas e, portanto, cada construtor definirá a sua política de produção nos próximos tempos. Sabemos que a eletrifica­ção traz outros desafios. Na ACAP defendemos sinergias, somos um país da Europa, mas estamos numa zona que é a Península Ibérica e, em termos também geopolític­os, temos que tirar proveito de termos um país vizinho com uma indústria bastante forte, onde se preveem investimen­tos significat­ivos em baterias, e nós temos que aproveitar o cluster ibérico.

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