Diário de Notícias - Dinheiro Vivo
Nuno Lima da Luz “Bitcoin é muitas vezes considerada o ouro 2.0. É tudo aquilo que o ouro é, mas melhor”
Presidente da Associação Portuguesa de Blockchain e Criptomoedas não esconde que criptoativos comportam muitos riscos. “Tão depressa é fácil ganhar [dinheiro] como é fácil perder.”
Advogado associado na Cuatrecasas, especializado nas áreas de novas tecnologias, onde se inclui blockchain e ativos virtuais, Nuno Lima da Luz mostra-se cético em relação ao primeiro ano de declaração no IRS de mais-valias de criptoativos. “Não sei se [os funcionários da Autoridade Tributária] estão já devidamente preparados”. O presidente da Associação Portuguesa de Blockchain e Criptomoedas (APBC) sugere ainda aos contribuintes que tenham dúvidas em relação ao preenchimento da sua declaração de IRS consultarem um fiscalista ou contabilista antes de fazer qualquer submissão.
A atingiu esta semana um novo recorde, cima dos 69 mil dólares. A que se deve?
bitcoin
Deve-se ao facto de haver uma procura crescente sobre este ativo em particular. Deve-se muito também ao facto de nos Estados Unidos terem sido aprovados e já estarem a ser comercializados os ETFs [Exchange Traded Fund, ou fundos de índices cotados, em português] com bitcoin, em mercado spot [onde o pagamento e entrega de ativos são instantâneos], algo muito ansiado por toda a indústria nesse ponto de vista. Não os mais puristas, obviamente, porque querem estar desligados deste mundo tradicional financeiro, mas muitos investidores, ou quem acredita neste tipo de propriedade digital, já esperava por este tipo de aumentos. Ou seja, tem havido um grande influxo de capitais para estes ETFs, que no fundo funcionam em regime de cash redemption, portanto, as pessoas metem dinheiro, o fundo compra as bitcoins, guarda-as e as pessoas detêm parte. É um ETF normal, de qualquer tipo de commodity. Portanto, com a comercialização deste tipo de produtos nos Estados Unidos houve claramente uma procura ainda maior. E, agora, por parte de pessoas menos ligadas à indústria em si. Acabamos por ter outro tipo de instituições mais conservadoras a ter alguma exposição a este tipo de ativo.
Como é que explica toda esta volatilidade, quando em novembro de 2022 estava abaixo dos 16 mil dólares, e em novembro de 2021 acima dos 67 mil dólares?
Há várias razões. A primeira é que ainda não há muita gente que tenha este ativo. E não estando suficientemente disperso, criam-se estas situações, que às vezes podem parecer díspares, ou estas grandes flutuações de preço. Outra razão tem a ver com a própria lógica e funcionamento. Com este tipo de ativo, temos aqui duas condicionantes, e com a aprovação dos ETFs também. Temos as pessoas que fazem auto custódia do ativo e que o têm e guardam por si só. E depois temos estes ETFs que têm de comprar em nome de um terceiro, em nome do cliente final, deste tipo de produtos financeiros. E pode haver aqui depois alguma assimetria também desse ponto de vista. Portanto, há uma procura muito grande por estes fundos, que compram em grandes quantidades e detêm esse ativo em grandes quantidades. A maneira depois como vendem ou fazem esse redemption, essa troca de ativos, também vai variando. Não funciona nos trâmites do mercado normal, dos mercados financeiros norte-americanos normais. A par e passo, temos também as pessoas que têm estes ativos ou têm um centralized exchange, uma bolsa centralizada, ou fazem auto custódia e depois passam para esse tipo de plataformas centralizadas. Isto faz com que haja grandes flutuações de preço.
Então é muito especulativo... Não, qualquer bem que compremos hoje mais barato para vender amanhã torna-se especulativo. Essa é a própria definição de especulação, não é? As pessoas mais fiéis a este ativo e que consideram bitcoin como o melhor asset mundial em termos de propriedade para guardar a longo prazo, não veem isto desse ponto de vista puramente especulativo. Mas há pessoas que o veem. Como também há especulação em carros, em casas, qualquer bem serve para fazer especulação.
Os resultados de investimentos em bitcoin justificam, em parte, o aumento do número de ultramilionários, segundo dados da Wealth Report, um estudo realizado pela Knight Frank. Não teme que se crie uma perceção na sociedade de que este tipo de investimento é dinheiro fácil?
Pode haver essa tendência, mas a verdade é que também comporta muito risco. Tão depressa é fácil ganhar como é fácil perder.
Então é uma espécie de casino?
Alguns ativos podem ser, porque não têm nenhuma base subjacente sólida, além desse caráter puramente especulativo ou até de brincadeira. Há uns tokens que se chamam até memecoins, que assentam só em ter figuras de Keynes ou Shiba Inu, Dogecoin, Pepcoin. Há muitos tokens. Temos tokens que realmente não têm nenhuma base sustentável ou sólida, mas depois temos milhares de projetos sólidos. Temos, por exemplo, Filecoin, temos Arweave, que basicamente são protocolos que servem para guardar informação de uma maneira descentralizada. E já nem falo na ethereum, que depois serve para pagar uma computação descentralizada a nível mundial, onde podemos ter o nosso software a correr por cima dessa rede. E depois temos, efetivamente a bitcoin, que muitas das vezes acho que fica aquém da própria definição de bitcoin, mas muitas das vezes é considerado o ouro 2.0. Há uma evolução natural do ouro. Portanto, é tudo aquilo que o ouro é, mas melhor, é uma evolução natural. É um ouro que podemos, sem necessidade de intermediários, fazer passar a propriedade de uma pessoa A para uma pessoa B.
Mas com maior volatilidade em termos de preço.
Sim, desse ponto de vista ainda não se atingiu esse caráter de moeda, mas também dificilmente será uma moeda nesse sentido. Apesar de já termos um país que adotou enquanto legal tender, não propriamente uma moeda soberana, mas legal tender, ou moeda de curso corrente, no sentido de que – e é a nossa definição do euro aqui, por força do Tratado de Funcionamento da
“As pessoas que consideram bitcoin como o melhor asset mundial em termos de propriedade para guardar a longo prazo, não a veem como puramente especulativa.”
União Europeia –, ninguém se pode recusar a receber bitcoin como meio de pagamento para um determinado produto ou serviço. E El Salvador adotou. Há muita gente que tinha sido contra e que criticou, depois com esta volatilidade, lá está, com esse aumento substancial de valor de cada bem, desse ativo, as pessoas agora têm tendência a usar um bocadinho.
Uma situação que quase levou o país à bancarrota...
Não foi por isso, obviamente, há várias teorias. A verdade é que depois também há uma afronta a muitos poderes instituídos, mas também não podemos ir pela parte política. Mas quer dizer – sem fazer uma avaliação da governação de El Salvador ou desta presidência atual –, o facto é que foi uma aposta que tem atraído também muita gente para ir lá viver, muitos nómadas digitais e muitos believers, muita gente que acredita neste tipo de ativo tem ido para lá viver. Enfim, não sou especialista em El Salvador nem na política nacional interna, mas acho que as coisas até têm corrido bem.
Como se tem portado o regulador
em Portugal. A CMVM e o Banco de Portugal?
A CMVM é muito aberta a estas novas tecnologias e a estes novos mercados. O Banco de Portugal é sempre um bocadinho mais cauteloso. Se bem que são jurisdições completamente diferentes: a CMVM tem um pelouro para instrumentos financeiros; o Banco de Portugal mais do ponto de vista de estabilidade monetária e da moeda. Tenho a ideia, e porque trabalho também muito nestes temas diretamente com os reguladores cá em Portugal, que têm uma abordagem cautelosa, mas ao mesmo tempo acolhem muito bem estas novas iniciativas. E a própria União Europeia, com o regulamento dos mercados em criptoativos, que acaba por ser uma espécie de transposição ou de um copy-paste da diretiva dos mercados financeiros, pelo menos na parte de funcionamento, nas obrigações que têm as empresas que trabalham nesta área, que operam este tipo de produtos em contexto de mercado. Portanto, esse regulamento também vai trazer alguma clarividência e clarificar algumas normas e, no fundo, estabelecer como uma área legitimada, vamos dizer assim, que trabalha com criptoativos. E sei que a CMVM é muito aberta à inovação tecnológica, a novas ideias, a novos produtos e o que interessa é promover o mercado e criar condições de mercado, sempre numa lógica também de proteger um bocadinho o consumidor final. Mas proteger, não no sentido de o impedir de fazer investimentos, mas esclarecê-lo, ou permitir que esteja esclarecido dos investimentos que faz. E é isso que faz falta, penso eu.
Tem havido até agora uma espécie de vazio em relação à tributação dos rendimentos provenientes de criptoativos. Vai avançar este ano essa tributação. A Autoridade Tributária está preparada para arrecadar as mais-valias com ativos digitais?
Não sei se estão já devidamente preparados, mas também não é por falta de iniciativa das associações aqui em Portugal. O que fizemos foi propor a nossa solução de tributação à Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais. Foi acolhida, tivemos várias reuniões, discutimos bastante o tema, explicámos, houve bastante abertura para perceber os nossos receios e considerações. A proposta foi muito bem aceite e tornou-se lei, entrou na Lei do Orçamento do Estado do ano passado. Portanto, vai aplicar-se a todas as mais-valias calculadas durante este ano ou durante o ano transato de 2023.
Ou seja, a primeira vez que vão declarar mais-valias vai ser este ano.
Exatamente. As que forem, porque as pessoas podem simplesmente ter obtido mais-valias por ativos que já tinham há mais de um ano e aí não há mais-valia, o que é bastante bom, e é um bocado semelhante – e foi essa a nossa ideia também –, àquele regime que tínhamos para as ações, para os valores mobiliários, quando eram detidos por mais de 12 meses, também não se pagava mais-valia.
Não há retroatividade em relação à recolha dessas mais-valias para ativos anteriores?
Não, a lei tributária, desse ponto de vista, não é retroativa. Imaginemos que eu tinha comprado bitcoin em 2010 e agora queria vender tudo. Então, não pagaria, não havia aí nenhuma mais-valia subjacente. Portanto, acabou por ser muito bom.
E aos contribuintes, aqueles que compraram ou negociaram apenas por experiência e que não estão, de facto, ainda cientes de que, no fundo, têm de declarar mais-valias, acha que vai gerar alguma confusão?
bitcoins
Diria que sim, mas é para isso que existem os fiscalistas e contabilistas, que sugeria consultarem antes de fazer qualquer tipo de submissão das declarações.
À Associação Portuguesa de Blockchain e Criptomoedas chegam muitas queixas de pessoas burladas, enganadas, que se sentem defraudadas?
Infelizmente, sim. Mas, lá está, não por nada que esteja diretamente relacionado com a tecnologia ou este tipo de ativo. Sempre houve burlas na sociedade, desde que haja uma assimetria de informação. Há alguém que sabe mais sobre um tema, está mal-intencionado e comete esse crime. Tanto que o crime de burla está tipificado, pelo menos no nosso Código Penal, desde os anos 1980. E não havia sequer internet nos anos 1980. Portanto, não é uma coisa que esteja aqui reduzida ao mundo dos criptoativos. Infelizmente, há muita gente que é defraudada. Que é defraudada por criminosos e nós tentamos ajudar dentro do possível. Mas é o chamado conto do vigário. Também tivemos a Dona Branca, também era um conto do vigário. As pessoas vão à espera de dinheiro fácil ou de lucros fáceis e rápidos e de enriquecer da noite para o dia. E, como em tudo na vida, isso é muito complicado. Portanto, sem trabalho, sem investigação, sem estudo, é difícil alguém enriquecer. A menos que tenha um golpe de sorte. E o que acontece é que há muita gente que vai nessa ânsia desse enriquecimento rápido e se deixa depois levar por qualquer tipo de fraude.
A questão da literacia financeira é fundamental neste domínio. Nesse âmbito, tem sido muito falada ultimamente a questão da recolha de dados biométricos a partir de imagens das íris em centros comerciais em troca de worldcoins, que é uma moeda digital. Isto mostra a iliteracia nesta matéria?
Não queria falar em concreto desse tema, até por razões profissionais.
“Sem trabalho, sem investigação, sem estudo, é difícil enriquecer. A menos que seja um golpe de sorte. Acontece que há muita gente na ânsia de enriquecimento rápido que se deixa levar por fraudes.”
Mas o caso de a Comissão de Proteção de Dados ainda não ter emitido nenhuma nota relativamente a esta matéria, ao contrário daquilo que foi feito em Espanha, o que diz sobre isso?
Isto não está muito ligado. A parte dos criptoativos é aqui muito residual. Isto levanta outros temas de cibersegurança, de privacidade, de proteção de dados pessoais e até do próprio Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados. O que se tem de avaliar é efetivamente que medidas de segurança é que são adotadas, como é feita essa recolha. Os criptoativos aqui acabam por ser secundários. Mas, pelo menos, já se vê uma mais-valia. Normalmente, cedemos os nossos dados gratuitamente a grandes empresas tecnológicas sem pensar onde é que eles vão dar, ao menos aqui as pessoas são pagas por eles. Mas não sei, não consigo pronunciar-me, porque também não tenho os elementos necessários.
Os provedores de serviços de ativos virtuais queixam-se da dificuldade na abertura de contas nos bancos portugueses. Temos uma banca tradicional que não é cripto-amiga, por assim dizer?
Posso dizer que sim, mas também não é muito amiga, diga-se de passagem, do consumidor tradicional. Acho que tem de se revitalizar e tem de se digitalizar e adaptar-se aos novos mundos e ao novo perfil de consumidor final. Temos muita coisa que ainda é feita de uma maneira demasiado burocrática. Temos muita pressão das fintechs que acabam por ser muito mais ágeis na maneira como operam este negócio da banca tradicional. Acho que tem de haver essa adaptação. Em relação aos criptoativos, tem sido algo sobre o qual a associação tem manifestado o seu desconforto.