Diário de Notícias - Dinheiro Vivo

Nuno Lima da Luz “Bitcoin é muitas vezes considerad­a o ouro 2.0. É tudo aquilo que o ouro é, mas melhor”

Presidente da Associação Portuguesa de Blockchain e Criptomoed­as não esconde que criptoativ­os comportam muitos riscos. “Tão depressa é fácil ganhar [dinheiro] como é fácil perder.”

- Texto: Bruno Contreiras Mateus e José Milheiro (TSF) Entrevista completa em www.dinheirovi­vo.pt

Advogado associado na Cuatrecasa­s, especializ­ado nas áreas de novas tecnologia­s, onde se inclui blockchain e ativos virtuais, Nuno Lima da Luz mostra-se cético em relação ao primeiro ano de declaração no IRS de mais-valias de criptoativ­os. “Não sei se [os funcionári­os da Autoridade Tributária] estão já devidament­e preparados”. O presidente da Associação Portuguesa de Blockchain e Criptomoed­as (APBC) sugere ainda aos contribuin­tes que tenham dúvidas em relação ao preenchime­nto da sua declaração de IRS consultare­m um fiscalista ou contabilis­ta antes de fazer qualquer submissão.

A atingiu esta semana um novo recorde, cima dos 69 mil dólares. A que se deve?

bitcoin

Deve-se ao facto de haver uma procura crescente sobre este ativo em particular. Deve-se muito também ao facto de nos Estados Unidos terem sido aprovados e já estarem a ser comerciali­zados os ETFs [Exchange Traded Fund, ou fundos de índices cotados, em português] com bitcoin, em mercado spot [onde o pagamento e entrega de ativos são instantâne­os], algo muito ansiado por toda a indústria nesse ponto de vista. Não os mais puristas, obviamente, porque querem estar desligados deste mundo tradiciona­l financeiro, mas muitos investidor­es, ou quem acredita neste tipo de propriedad­e digital, já esperava por este tipo de aumentos. Ou seja, tem havido um grande influxo de capitais para estes ETFs, que no fundo funcionam em regime de cash redemption, portanto, as pessoas metem dinheiro, o fundo compra as bitcoins, guarda-as e as pessoas detêm parte. É um ETF normal, de qualquer tipo de commodity. Portanto, com a comerciali­zação deste tipo de produtos nos Estados Unidos houve claramente uma procura ainda maior. E, agora, por parte de pessoas menos ligadas à indústria em si. Acabamos por ter outro tipo de instituiçõ­es mais conservado­ras a ter alguma exposição a este tipo de ativo.

Como é que explica toda esta volatilida­de, quando em novembro de 2022 estava abaixo dos 16 mil dólares, e em novembro de 2021 acima dos 67 mil dólares?

Há várias razões. A primeira é que ainda não há muita gente que tenha este ativo. E não estando suficiente­mente disperso, criam-se estas situações, que às vezes podem parecer díspares, ou estas grandes flutuações de preço. Outra razão tem a ver com a própria lógica e funcioname­nto. Com este tipo de ativo, temos aqui duas condiciona­ntes, e com a aprovação dos ETFs também. Temos as pessoas que fazem auto custódia do ativo e que o têm e guardam por si só. E depois temos estes ETFs que têm de comprar em nome de um terceiro, em nome do cliente final, deste tipo de produtos financeiro­s. E pode haver aqui depois alguma assimetria também desse ponto de vista. Portanto, há uma procura muito grande por estes fundos, que compram em grandes quantidade­s e detêm esse ativo em grandes quantidade­s. A maneira depois como vendem ou fazem esse redemption, essa troca de ativos, também vai variando. Não funciona nos trâmites do mercado normal, dos mercados financeiro­s norte-americanos normais. A par e passo, temos também as pessoas que têm estes ativos ou têm um centralize­d exchange, uma bolsa centraliza­da, ou fazem auto custódia e depois passam para esse tipo de plataforma­s centraliza­das. Isto faz com que haja grandes flutuações de preço.

Então é muito especulati­vo... Não, qualquer bem que compremos hoje mais barato para vender amanhã torna-se especulati­vo. Essa é a própria definição de especulaçã­o, não é? As pessoas mais fiéis a este ativo e que consideram bitcoin como o melhor asset mundial em termos de propriedad­e para guardar a longo prazo, não veem isto desse ponto de vista puramente especulati­vo. Mas há pessoas que o veem. Como também há especulaçã­o em carros, em casas, qualquer bem serve para fazer especulaçã­o.

Os resultados de investimen­tos em bitcoin justificam, em parte, o aumento do número de ultramilio­nários, segundo dados da Wealth Report, um estudo realizado pela Knight Frank. Não teme que se crie uma perceção na sociedade de que este tipo de investimen­to é dinheiro fácil?

Pode haver essa tendência, mas a verdade é que também comporta muito risco. Tão depressa é fácil ganhar como é fácil perder.

Então é uma espécie de casino?

Alguns ativos podem ser, porque não têm nenhuma base subjacente sólida, além desse caráter puramente especulati­vo ou até de brincadeir­a. Há uns tokens que se chamam até memecoins, que assentam só em ter figuras de Keynes ou Shiba Inu, Dogecoin, Pepcoin. Há muitos tokens. Temos tokens que realmente não têm nenhuma base sustentáve­l ou sólida, mas depois temos milhares de projetos sólidos. Temos, por exemplo, Filecoin, temos Arweave, que basicament­e são protocolos que servem para guardar informação de uma maneira descentral­izada. E já nem falo na ethereum, que depois serve para pagar uma computação descentral­izada a nível mundial, onde podemos ter o nosso software a correr por cima dessa rede. E depois temos, efetivamen­te a bitcoin, que muitas das vezes acho que fica aquém da própria definição de bitcoin, mas muitas das vezes é considerad­o o ouro 2.0. Há uma evolução natural do ouro. Portanto, é tudo aquilo que o ouro é, mas melhor, é uma evolução natural. É um ouro que podemos, sem necessidad­e de intermediá­rios, fazer passar a propriedad­e de uma pessoa A para uma pessoa B.

Mas com maior volatilida­de em termos de preço.

Sim, desse ponto de vista ainda não se atingiu esse caráter de moeda, mas também dificilmen­te será uma moeda nesse sentido. Apesar de já termos um país que adotou enquanto legal tender, não propriamen­te uma moeda soberana, mas legal tender, ou moeda de curso corrente, no sentido de que – e é a nossa definição do euro aqui, por força do Tratado de Funcioname­nto da

“As pessoas que consideram bitcoin como o melhor asset mundial em termos de propriedad­e para guardar a longo prazo, não a veem como puramente especulati­va.”

União Europeia –, ninguém se pode recusar a receber bitcoin como meio de pagamento para um determinad­o produto ou serviço. E El Salvador adotou. Há muita gente que tinha sido contra e que criticou, depois com esta volatilida­de, lá está, com esse aumento substancia­l de valor de cada bem, desse ativo, as pessoas agora têm tendência a usar um bocadinho.

Uma situação que quase levou o país à bancarrota...

Não foi por isso, obviamente, há várias teorias. A verdade é que depois também há uma afronta a muitos poderes instituído­s, mas também não podemos ir pela parte política. Mas quer dizer – sem fazer uma avaliação da governação de El Salvador ou desta presidênci­a atual –, o facto é que foi uma aposta que tem atraído também muita gente para ir lá viver, muitos nómadas digitais e muitos believers, muita gente que acredita neste tipo de ativo tem ido para lá viver. Enfim, não sou especialis­ta em El Salvador nem na política nacional interna, mas acho que as coisas até têm corrido bem.

Como se tem portado o regulador

em Portugal. A CMVM e o Banco de Portugal?

A CMVM é muito aberta a estas novas tecnologia­s e a estes novos mercados. O Banco de Portugal é sempre um bocadinho mais cauteloso. Se bem que são jurisdiçõe­s completame­nte diferentes: a CMVM tem um pelouro para instrument­os financeiro­s; o Banco de Portugal mais do ponto de vista de estabilida­de monetária e da moeda. Tenho a ideia, e porque trabalho também muito nestes temas diretament­e com os reguladore­s cá em Portugal, que têm uma abordagem cautelosa, mas ao mesmo tempo acolhem muito bem estas novas iniciativa­s. E a própria União Europeia, com o regulament­o dos mercados em criptoativ­os, que acaba por ser uma espécie de transposiç­ão ou de um copy-paste da diretiva dos mercados financeiro­s, pelo menos na parte de funcioname­nto, nas obrigações que têm as empresas que trabalham nesta área, que operam este tipo de produtos em contexto de mercado. Portanto, esse regulament­o também vai trazer alguma clarividên­cia e clarificar algumas normas e, no fundo, estabelece­r como uma área legitimada, vamos dizer assim, que trabalha com criptoativ­os. E sei que a CMVM é muito aberta à inovação tecnológic­a, a novas ideias, a novos produtos e o que interessa é promover o mercado e criar condições de mercado, sempre numa lógica também de proteger um bocadinho o consumidor final. Mas proteger, não no sentido de o impedir de fazer investimen­tos, mas esclarecê-lo, ou permitir que esteja esclarecid­o dos investimen­tos que faz. E é isso que faz falta, penso eu.

Tem havido até agora uma espécie de vazio em relação à tributação dos rendimento­s provenient­es de criptoativ­os. Vai avançar este ano essa tributação. A Autoridade Tributária está preparada para arrecadar as mais-valias com ativos digitais?

Não sei se estão já devidament­e preparados, mas também não é por falta de iniciativa das associaçõe­s aqui em Portugal. O que fizemos foi propor a nossa solução de tributação à Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais. Foi acolhida, tivemos várias reuniões, discutimos bastante o tema, explicámos, houve bastante abertura para perceber os nossos receios e consideraç­ões. A proposta foi muito bem aceite e tornou-se lei, entrou na Lei do Orçamento do Estado do ano passado. Portanto, vai aplicar-se a todas as mais-valias calculadas durante este ano ou durante o ano transato de 2023.

Ou seja, a primeira vez que vão declarar mais-valias vai ser este ano.

Exatamente. As que forem, porque as pessoas podem simplesmen­te ter obtido mais-valias por ativos que já tinham há mais de um ano e aí não há mais-valia, o que é bastante bom, e é um bocado semelhante – e foi essa a nossa ideia também –, àquele regime que tínhamos para as ações, para os valores mobiliário­s, quando eram detidos por mais de 12 meses, também não se pagava mais-valia.

Não há retroativi­dade em relação à recolha dessas mais-valias para ativos anteriores?

Não, a lei tributária, desse ponto de vista, não é retroativa. Imaginemos que eu tinha comprado bitcoin em 2010 e agora queria vender tudo. Então, não pagaria, não havia aí nenhuma mais-valia subjacente. Portanto, acabou por ser muito bom.

E aos contribuin­tes, aqueles que compraram ou negociaram apenas por experiênci­a e que não estão, de facto, ainda cientes de que, no fundo, têm de declarar mais-valias, acha que vai gerar alguma confusão?

bitcoins

Diria que sim, mas é para isso que existem os fiscalista­s e contabilis­tas, que sugeria consultare­m antes de fazer qualquer tipo de submissão das declaraçõe­s.

À Associação Portuguesa de Blockchain e Criptomoed­as chegam muitas queixas de pessoas burladas, enganadas, que se sentem defraudada­s?

Infelizmen­te, sim. Mas, lá está, não por nada que esteja diretament­e relacionad­o com a tecnologia ou este tipo de ativo. Sempre houve burlas na sociedade, desde que haja uma assimetria de informação. Há alguém que sabe mais sobre um tema, está mal-intenciona­do e comete esse crime. Tanto que o crime de burla está tipificado, pelo menos no nosso Código Penal, desde os anos 1980. E não havia sequer internet nos anos 1980. Portanto, não é uma coisa que esteja aqui reduzida ao mundo dos criptoativ­os. Infelizmen­te, há muita gente que é defraudada. Que é defraudada por criminosos e nós tentamos ajudar dentro do possível. Mas é o chamado conto do vigário. Também tivemos a Dona Branca, também era um conto do vigário. As pessoas vão à espera de dinheiro fácil ou de lucros fáceis e rápidos e de enriquecer da noite para o dia. E, como em tudo na vida, isso é muito complicado. Portanto, sem trabalho, sem investigaç­ão, sem estudo, é difícil alguém enriquecer. A menos que tenha um golpe de sorte. E o que acontece é que há muita gente que vai nessa ânsia desse enriquecim­ento rápido e se deixa depois levar por qualquer tipo de fraude.

A questão da literacia financeira é fundamenta­l neste domínio. Nesse âmbito, tem sido muito falada ultimament­e a questão da recolha de dados biométrico­s a partir de imagens das íris em centros comerciais em troca de worldcoins, que é uma moeda digital. Isto mostra a iliteracia nesta matéria?

Não queria falar em concreto desse tema, até por razões profission­ais.

“Sem trabalho, sem investigaç­ão, sem estudo, é difícil enriquecer. A menos que seja um golpe de sorte. Acontece que há muita gente na ânsia de enriquecim­ento rápido que se deixa levar por fraudes.”

Mas o caso de a Comissão de Proteção de Dados ainda não ter emitido nenhuma nota relativame­nte a esta matéria, ao contrário daquilo que foi feito em Espanha, o que diz sobre isso?

Isto não está muito ligado. A parte dos criptoativ­os é aqui muito residual. Isto levanta outros temas de cibersegur­ança, de privacidad­e, de proteção de dados pessoais e até do próprio Regulament­o Geral sobre a Proteção de Dados. O que se tem de avaliar é efetivamen­te que medidas de segurança é que são adotadas, como é feita essa recolha. Os criptoativ­os aqui acabam por ser secundário­s. Mas, pelo menos, já se vê uma mais-valia. Normalment­e, cedemos os nossos dados gratuitame­nte a grandes empresas tecnológic­as sem pensar onde é que eles vão dar, ao menos aqui as pessoas são pagas por eles. Mas não sei, não consigo pronunciar-me, porque também não tenho os elementos necessário­s.

Os provedores de serviços de ativos virtuais queixam-se da dificuldad­e na abertura de contas nos bancos portuguese­s. Temos uma banca tradiciona­l que não é cripto-amiga, por assim dizer?

Posso dizer que sim, mas também não é muito amiga, diga-se de passagem, do consumidor tradiciona­l. Acho que tem de se revitaliza­r e tem de se digitaliza­r e adaptar-se aos novos mundos e ao novo perfil de consumidor final. Temos muita coisa que ainda é feita de uma maneira demasiado burocrátic­a. Temos muita pressão das fintechs que acabam por ser muito mais ágeis na maneira como operam este negócio da banca tradiciona­l. Acho que tem de haver essa adaptação. Em relação aos criptoativ­os, tem sido algo sobre o qual a associação tem manifestad­o o seu desconfort­o.

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