Diário de Notícias - Dinheiro Vivo
Jaime Rocha “Será difícil aprovar um orçamento retificativo dentro dos prazos legais”
Resposta às reivindicações de polícias, professores e médicos depende da aprovação de um retificativo, mas a reversão de medidas do pacote Mais Habitação, como a contribuição extraordinária sobre o alojamento local, por exemplo, não depende do orçamento,
Especialista em fiscalidade, Jaime Rocha ajuda-nos a perceber o que pode sair, ou entrar, no bolso dos portugueses com um governo da Aliança Democrática (AD), que saiu vencedora das eleições legislativas de 10 de março, tendo em conta o que foi apresentado no programa eleitoral. O Presidente da República, que ainda está a ouvir os partidos, deverá indigitar o líder do PSD, Luís Montenegro, como novo primeiro-ministro de um executivo minoritário. A tomada de posse só deve acontecer no final de abril.
A AD venceu as legislativas do passado domingo, mas não tem garantido apoio maioritário no Parlamento. Qual poderá ser o impacto na economia desta frágil situação política?
Já se previa para 2024 alguma desaceleração da economia portuguesa, quer por todo o elevado grau de incerteza geopolítica, como por alguma desaceleração de exportações. Com a marcação de eleições antecipadas, acabou por existir alguma dúvida ou esperança, como queiram classificar, de que mudanças é que poderíamos ter no sistema político que pudessem influenciar toda a economia portuguesa, seja pela vertente fiscal, seja pela de investimento. Agora que conhecemos o resultado das eleições, acho que já houve uma primeira reação, que foi de choque – ou, pelo menos, foi a perceção que existiu –, pelo resultado político que o Chega obteve, mas também pela margem mínima pela qual a AD acabou por vencer o PS. A AD, no seu programa eleitoral, traça um cenário mais otimista do que o próprio PS, baseado num maior crescimento até ao final de 2028, portanto, até ao fim da legislatura. E perspetiva constantes excedentes orçamentais, o que é bom para investimento na própria sociedade portuguesa. Portanto, a expectativa que existe, após um primeiro grau de incerteza e de choque pelas eleições, é que neste momento está-se a começar a ter alguma normalidade. Já começa a ser mais ou menos evidente que a AD terá um governo minoritário e, portanto, terá de se construir a partir daí.
Seja qual for a decisão do Presidente da República, após as audições aos partidos, para a formação do governo, é um facto que o executivo cessante do PS deixa os cofres do país cheios, com um excedente orçamental superior a 4,33 mil milhões de euros em 2023. Com esta herança, onde é que encaixa, eventualmente, um orçamento retificativo já admitido pela AD?
Muito sinceramente, acho que é difícil, pelos prazos que temos, existir um orçamento retificativo. Estamos em março, todo o processo de auscultação dos partidos, decisão, toda a parte de nomeação do governo, formá-lo, constituição dos vários ministérios, secretarias de Estado, todo esse processo toma tempo. Estou a ver a existência de um orçamento retificativo complicada ao nível de timings, do ponto de vista legal, os prazos que são necessários observar, para que em tempo útil tenhamos um orçamento retificativo. Estou a ver mais medidas ad hoc, portanto, diplomas que a AD queira elencar, principalmente medidas fiscais e de investimento, não aquelas mais estruturantes, como para a saúde ou educação.
Não a resposta, por exemplo, a polícias, professores e médicos? Aí, sem um orçamento retificativo, penso que será difícil. Tudo o que o novo governo poderá ter liberdade de fazer não será para essas questões estruturantes, que precisam do tal orçamento retificativo.
Acredita que haverá condições políticas para isso?
Essa é outra situação, não é? Porque todas as forças políticas estão de acordo de que são áreas essenciais em que se tem de investir. Depois, a questão acaba sempre por ser de que forma? E é aí que acabam por se refugiar as forças políticas, que nunca estão de acordo na forma como devem ser efetuadas. Com esta minoria que o governo da AD tem, penso que vai ter sempre de passar por uma abstenção do PS e, naturalmente, pela proteção do Chega e pela negociação. Terá de ser sempre por via da negociação.
O orçamento retificativo teria de ser apresentado até quando para que fosse viável?
Para que seja ainda uma realidade em 2024, teria de ser imediatamente apresentado após as nomeações, portanto, diria que até ao verão teria de ser apresentado para que ainda tivesse um efeito prático e efetivo no ano de 2024. Mas, depois, começamos a entrar no timing do próprio orçamento de 2025, que começa a ser elaborado em setembro ou outubro, para ser aprovado até dezembro. Portanto, com toda a parte da discussão na generalidade, na especialidade, diria que já teríamos um orçamento retificativo quase em cima do Orçamento do Estado para 2025. Daí achar que deveremos ter mais diplomas ad hoc, do que propriamente um orçamento retificativo.
A AD prometeu um choque fiscal no valor de cinco mil milhões de euros até ao final da legislatura. Na sua opinião, o que é que seria possível fazer ainda este ano nessa área?
“Parte do otimismo que a AD tem no programa eleitoral – face ao programa do PS –, vem do aumento do investimento. E o aumento do investimento é baseado em quê? Numa descida de impostos.”
O programa da AD tem, efetivamente, várias alterações do ponto de vista fiscal. Destaco, logo a começar, a descida da taxa de IRC. Atualmente em Portugal a taxa para as empresas é de 21%, só que depois temos ainda uma herança dos tempos da troika, várias taxinhas, ou seja, a derrama municipal que acaba por ser 1,5% na maioria dos municípios. Mas a promessa da AD é reduzir a taxa de IRC em dois pontos percentuais anualmente.
Essa redução no IRC pode avançar ainda em 2024?
Acredito que só em 2025. Portanto, não será uma medida tomada agora, à parte, terá de ser algo mais estrutural, no sentido de um Orçamento do Estado. E merece claramente uma alteração nesse sentido. Até porque parte do otimismo que a AD tem no programa eleito
“O regime do residente não habitual acabou em 2023, ficou uma espécie de regime transitório durante o ano de 2024 mas, na prática, foi eliminado. Essa é uma medida que penso que vai ser reintroduzida. ”
ral – face ao programa do PS – vem do aumento do investimento. E o aumento do investimento é baseado em quê? Numa descida de impostos. A expectativa de um maior crescimento do PIB e também de um maior excedente orçamental vem exatamente da descida de impostos para atrair mais investimento.
No IRS, a AD promete um desagravamento fiscal para as famílias até ao 8.º escalão. Dificilmente haverá mudanças este ano?
Dificilmente, no sentido em que as taxas, por norma, os escalões de IRS e as respetivas taxas são acertadas sempre no início do ano, porque não é só o próprio IRS a pagar, mas também toda a preparação que as empresas têm de fazer para ter os sistemas prontos para fazer essa aplicação. Novas taxas, novas retenções na fonte, novos procedimentos. E, portanto, pode haver algum ajustamento, mas, novamente, tudo o que seja mais estruturado, mudanças de escalões, atualizações de escalões, acredito que deverão ser sempre em sede de Orçamento do Estado. Agora, o que a AD tem realmente no programa é a descida do IRS na chamada classe média, até rendimentos anuais de cerca de 82 mil euros. E, no fundo, reflete uma descida das taxas entre 0,5% e 3%, é a expectativa, ou pelo menos o que estava indicado no programa. Trata-se uma descida de alguma importância, mas como temos em Portugal uma taxa progressiva, acabará por afetar todas as pessoas, independentemente do nível de rendimentos.
Mas qual poderá ser a expressão ou o impacto real para as famílias do programa económico da AD?
A ideia da AD, pelo que vi no programa, assenta nos seguintes fatores. Primeiro, descida de impostos. Para quê? Para permitir que as empresas tenham uma maior capacidade de investimento e daí voltem a colocar dinheiro na economia. Da perspetiva pessoal, da descida do IRS, é aumentar a capacidade financeira das pessoas, para que tenham também maior capacidade de consumo. Portanto, não tanto de poupança, mas de consumo.
Mesmo à taxa de inflação atual?
Mesmo assim. A expectativa é que o aumento do poder de compra seja sempre superior à subida da inflação anual. Este é outro dos vetores que está no programa, essa é a expectativa. Acredito que a taxa de inflação poderá continuar a subir, mas não da forma galopante como aconteceu. Agora, um dos pressupostos da AD é exatamente que o poder de compra das famílias aumente de forma superior à inflação.
E em matéria de arrendamento, o que é que podem esperar inquilinos e proprietários?
Não se prevê nenhuma alteração ao nível das taxas que estão previstas. Tem havido claramente um incentivo para que os proprietários passem as suas habitações, principalmente de negócio e não habitação própria, para o mercado tradicional de arrendamento e não para o chamado alojamento local. O que a AD se propõe a fazer é, primeiro, eliminar algumas das medidas que o governo colocou como, por exemplo, passar a existir no pacote Mais Habitação uma contribuição extraordinária no alojamento local. A AD indica que vai eliminar essa taxa que foi alvo de muita polémica.
Poderá ser uma das tais medidas ad hoc?
É uma dúvida que realmente existe, mas isso poderá ser feito à parte, sem necessidade de um orçamento retificativo. E a contribuição sobre o setor do alojamento local é claramente uma das que a AD pretende eliminar.
E que outras medidas fiscais prometidas pela AD podem reunir consenso para serem implementadas?
Existe a isenção do IMT e do imposto de selo na compra da primeira habitação para os jovens até aos 35 anos, mas deverão ser estabelecidos limites. Ainda assim, esta medida terá um grande impacto para os jovens. Depois, uma descida da taxa do IVA de 6% na construção. Até agora, existiam esses 6% na reabilitação urbana e tem existido muito em Lisboa e no Porto. Esse alargamento é uma medida para diminuir o custo de construção direto, e com isso também a esperança de que os valores das casas acabem por descer. Depois, há algumas medidas de poupança, ou seja, atualmente, qualquer rendimento que seja entregue das empresas às pessoas é tributado, praticamente a totalidade, em sede de IRS e uma grande maioria em Segurança Social. Portanto, não existem propriamente muitas recompensas remuneratórias que uma empresa possa atualmente atribuir aos colaboradores que não venha logo a ter esta tributação imediata, o que é bastante gravoso. Uma das medidas propostas é a criação de uma espécie de conta-poupança, com certos limites, em que esse rendimento bruto possa ser canalizado para essas contas de poupança, que assim transformam o rendimento bruto em líquido. Portanto, um aumento do rendimento líquido.
gold
E nos vistos e regime dos residentes não habituais, que terminará este ano. Haverá reversão?
Os regimes do residente não habitual e dos vistos gold tiveram bastante sucesso, mas criando socialmente um sentimento de desigualdade. E isso é compreensível, alguém que vem de fora tem um regime preferencial face a uma pessoa portuguesa que está cá. Mas, do ponto de vista do investimento e da criação de emprego, resultou bastante bem. E existem números que comprovam que o fim do regime do residente não habitual e, principalmente, dos vistos gold, não é bom para a economia portuguesa. Não é bom, e é uma das medidas que se espera que, se não for totalmente revertida pela AD, seja reelaborado o seu alcance. Porque o regime do residente não habitual acabou em 2023, ficou uma espécie de regime transitório durante o ano de 2024 mas, na prática, foi eliminado. Essa é uma medida que penso que vai ser reintroduzida.
E quanto ao Plano de Recuperação e Resiliência, há riscos para a sua execução?
A execução que foi efetuada até ao momento é ainda muito reduzida face ao potencial que podemos ter. Na EY temos diariamente conversas com vários players, no sentido de perceber qual é o ponto de situação, quando é que chegam os fundos, quando é que existe a concretização. E a verdade é que o PRR foi um dos argumentos para, na altura, o governo não cair imediatamente. Temos de avançar e de tornar efetivas as políticas de adesão a esses incentivos. Porque, no fundo, estamos a falar de valores que são absolutamente essenciais para a economia portuguesa. Convém criar rapidamente essas condições para que possamos executar o PRR. Porque, caso contrário, arriscamo-nos a perder uma oportunidade de ouro. Há todo um canal burocrático e formalista a entupir e a parar esta execução. Espero que uma das medidas mais claras da AD seja arranjar o mecanismo de adesão, o mecanismo de libertação destes fundos. O caminho tem de passar pela flexibilização dessas aprovações.
E haverá entendimento político, como tem havido até agora durante este período de governo de gestão, para que a execução do PRR não seja posta em causa?
Espero bem que sim. Obviamente que vai exigir bastante jogo de cintura e de negociação, mas espero que numa área tão importante como é esta para Portugal, que não coloquem em causa, por questões políticas, a concretização do PRR.