Diário de Notícias - Dinheiro Vivo
Nelson Lage “Produção descentralizada e energia solar devem ser a grande aposta”
A democratização do acesso à energia, com o crescimento das comunidades renováveis e do autoconsumo, impulsionará a produção de energia solar, que ainda está muito abaixo da meta nacional, e levará à redução dos preços e aumento do conforto, defende o presidente da Adene - Agência para a Energia.
AAdene é um “agente mobilizador para a transição energética”, realizando atividades de interesse público na área da energia em linha com as políticas públicas e em articulação com outras entidades do setor. Nelson Lage, que dirige a agência desde 2020, diz que a simplificação das regras e aumento dos apoios à eficiência energética dos edifícios surtiu efeito, com os últimos avisos a resultarem em muito mais candidaturas.
No âmbito da estratégia de combate à pobreza energética vão ser criados Espaços Cidadão Energia. Como vão funcionar?
Está previsto até final de 2025 termos 50 Espaços Cidadão Energia. É um trabalho que irá ser feito em conjunto com a Associação Nacional de Municípios, com a ANAFRE, das juntas de freguesia, com a CNIS e também com a Rede Nacional de Agências Regionais de Energia. Neste momento estamos a estudar o modelo que vai ser aplicado, ou seja, há de ser um modelo participativo. Vamos estudar esse modelo em conjunto com estas instituições e com diferentes atores da sociedade civil, um modelo que funcione. Serão espaços de informação, não só para o tema específico que estamos aqui a tratar, mas também espaços que possam dar informação sobre aquilo que são os avisos que estão a ser lançados no âmbito do PRR.
Serão espaços onde um cidadão se pode dirigir para saber se é elegível para apoios, por exemplo?
Sim, e entender a fatura se estiver com dúvidas. É um espaço dedicado ao cidadão e acreditamos que com estes 50 espaços iniciais – e, depois, o normal é que estes espaços cresçam – estaremos a dar um grande contributo para aumentar a literacia energética e também, por essa via, combater a pobreza energética. Cabe à Adene o desenvolvimento da plataforma do Mercado Voluntário de Carbono em Portugal. Já está operacional?
O Mercado Voluntário de Carbono é um sistema de compra e venda de créditos de carbono que alavanca projetos que ajudem a reduzir as emissões de gases de efeito estufa e de carbono. E há aqui uma particularidade, porque podem não ser apenas projetos na área florestal, ainda que incidam principalmente nessa vertente. Há também a possibilidade de serem projetos na área do mar, do carbono azul. A Adene é responsável pela criação e pela operação dessa plataforma de gestão e está previsto lançá-la no início de verão. É um trabalho que já começámos, mas fazer uma plataforma tem alguma complexidade. No entanto, vai garantir a transparência das atividades que vão estar associadas ao mercado de voluntário de carbono e, esperamos nós, minimizar aquilo que é o risco associado à dupla contagem de emissões.
Essa garantia de transparência vai evitar greenwashing, por exemplo, das grandes empresas que querem “lavar” as suas emissões de gases com efeito de estufa?
Ter uma plataforma onde se regista, onde se monitoriza, onde se acompanha a evolução do mercado, onde podemos realmente ver as transações – porque isto tem tudo a ver com transações – vai dar-nos muito mais garantias do que se não tivéssemos
“Ainda está em fase de avaliação a última edição do Programa de Apoio aos Edifícios Mais Sustentáveis, mas tivemos cerca de 78 mil candidaturas. Se olharmos para a primeira edição, que teve quatro mil a cinco mil, houve aqui uma grande adesão.”
nenhuma plataforma e deixássemos o mercado simplesmente funcionar. E aí, sim, correríamos graves riscos de podermos ter
greenwashing.
A banca está pronta a cumprir os critérios ambientais de eficiência energética, por exemplo, nos empréstimos à habitação?
Tenho a certeza absoluta de que a banca pretende ser hoje cada vez mais verde. A Adene assinou recentemente um protocolo com a Associação Portuguesa de Bancos, inclusive a pedido da própria Associação, porque querem apostar no crédito verde. Querem financiar o que é o investimento na habitação verde. Isso mostra o interesse da banca pela sustentabilidade, por financiar o que contribui para as metas que temos de atingir e para termos uma habitação cada vez mais sustentável.
A certificação energética dos edifícios tem contribuído para inflacionar o preço das casas?
De modo algum. Primeiro, os dados, no que diz respeito ao licenciamento, mostram que temos tido um mercado que tem crescido. Voltámos a ter uma grande aposta, uma maior dinâmica ao nível de investimento. É preciso ainda fazer um grande esforço para termos uma habitação a preços acessíveis, isso é um dos temas na ordem do dia. Só para ter noção da evolução do mercado em termos de valores, quanto a edifícios novos, temos mais de 15% face a 2022, com 42 550 fogos novos e 9350 reabilitados. Ou seja, um aumento de 18% no total e, por mês, uma média de 4300 fogos licenciados. Agora, o que é preciso é realmente trabalharmos e apostarmos numa habitação muito mais acessível. Temos de ter estabilidade legislativa que garanta que o setor privado possa investir e com diferentes tipos de oferta. E, por outro lado, de maneira a baixarmos os preços, temos de apostar uma vez mais em construção mais sustentável. A Adene, obviamente, não define preços na habitação, não constrói, não está envolvida no mercado, nem da construção nem do licenciamento, mas acompanha
a dinâmica por via daquilo que é a certificação e o envolvimento em grupos de trabalho associados à sustentabilidade.
Já temos, na certificação energética, mais casas com a nota A do que com C. Isto significa que ainda há muitas habitações por classificar e que, sendo velhas, teriam todas notas mais baixas? Sim, ainda existe um parque habitacional com classificações baixas. Na realidade, 99,9% dos edifícios novos já têm todos classe A+ ou classe A. E 79% dos edifícios que foram renovados têm classes entre A, B ou B-, ou seja, estamos a falar já de um nível bastante considerável, mas 53,7% dos edifícios existentes têm classe C ou D. Por isso, é um universo que precisa – e não podemos esperar para daqui a dez, 15 ou 20 anos – de ser rapidamente renovado. Temos ainda um universo habitacional que precisa de uma renovação urgente.
Na vertente da eficiência energética, como está a execução do PRR?
A Adene presta apoio técnico na elaboração dos avisos, esclarece de dúvidas e está envolvida nos vários avisos que o PRR tem na área de eficiência energética, com foco nas medidas C13 e C21, que são aquelas que dizem diretamente respeito aos edifícios. É a medida das janelas, digamos, mas vamos a muito mais do que a janelas e posso explicar: são 810 milhões de euros para a eficiência energética. O Programa de Apoio aos Edifícios Mais Sustentáveis é o mais conhecido, porque também é aquele que já vai na terceira edição, e tem uma dotação total de 246 milhões , nestes três avisos. Ainda está em fase de avaliação a última edição, mas tivemos cerca de 78 mil candidaturas. Se olharmos para a primeira edição, que teve quatro mil a cinco mil, houve uma grande adesão.
A dotação deste programa deve esgotar-se?
Sim, claramente. Mas temos outros avisos. Por exemplo, o Vale Eficiência, que foi lançado inicialmente com o objetivo de ter 100 mil vales até 2025 e o arranque não correu bem. E por não ter corrido bem, e porque importa avaliar e corrigir aquilo que corre mal, foi feita uma alteração profunda ao aviso do Vale Eficiência, em que se introduziu a componente da simplificação e aumento do apoio. E tudo indica, se as candidaturas que foram submetidas foram todas aceites, que estamos aqui na iminência de poder esgotar mesmo a dotação orçamental.
O relatório da Estratégia de Longo Prazo para a Renovação dos Edifícios (ELPRE) mostra que este setor continua a ser responsável por 33% do consumo da energia final e por cerca de 18% das emissões totais. O que é que pode ser feito nesta área?
Estamos a falar de uma estratégia de longo prazo, uma estratégia que já foi lançada e que está a decorrer. Há grandes desafios em saber onde devemos apostar, temos de respeitar a questão da diversidade geográfica e garantir que há investimento público e investimento privado para dar resposta àquilo que são os desafios que esta estratégia traz.
E essa estratégia não deveria ser cruzada com as comunidades de energia? Não deveriam ser mobilizados os condomínios para essas comunidades?
Claramente. Temos toda a aposta que está a ser feita na descentralização da produção de energia. Ou seja, ela deve claramente contribuir para aquilo que é a execução dos objetivos previstos na ELPRE. E, como disse e bem, apostar na descentralização, apostar nas comunidades renováveis, apostar no autoconsumo. Estamos não só a apostar na melhoria do conforto de quem usufrui dessa aposta, como na redução dos preços associados à energia, e estamos a tornar o cidadão mais participativo. Estamos a democratizar o acesso à energia. E tudo isso contribui de forma direta para a execução e para os objetivos da estratégia de longo prazo, ou seja, estamos a contribuir para este grande objetivo que é ter 63% de energia renovável.
Mas a Adene vai dar consultadoria aos condomínios?
A Adene, no âmbito, por exemplo, do PRR, não pode, por um lado, estar a preparar a componente técnica e depois estar a apoiar em candidaturas. O nosso apoio é no desenvolvimento de projetos de comunidades renováveis, seja por municípios, seja por entidades, seja por quem tiver interesse em dinamizar este tipo de iniciativa.
E tem havido interesse?
Na área das comunidades de energia renováveis há um crescimento significativo. Temos de ter noção que isto é uma aposta recente. As CER [Comunidades de Energia Renovável] são recentes, o autoconsumo coletivo é recente. Inicialmente, houve um grande boom de projetos, uma grande vontade de fazer coisas, porque a legislação era muito inovadora. Penso que essa avalanche de projetos fez com que o processo todo se atrasasse um pouco. E agora começamos a ver alguns resultados. Demorou o seu tempo, mas começamos a ver alguns projetos. É verdade que temos apenas um projeto CER formal, mas estão outros na calha. Existem cerca de 33 projetos de autoconsumo coletivo. A diferença entre o consumo coletivo e a CER é a figura jurídica que está associada a um e a outro. Um não implica ter uma empresa criada ou uma entidade, o outro implica ter uma entidade, mas também tem a mais-valia de poder ter associada a componente comercial.
Como tem evoluído a produção descentralizada?
A produção da potência instalada aumentou 2,5 gigawatts (GW) de 2021 para 2023. Estamos a falar de um crescimento significativo que está associado claramente às comunidades de autoconsumo. E, mais importante, é o contributo que o descentralizado deu, por exemplo, para as metas do solar. Nós tivemos, no final do ano passado, um valor de 1,23 gigawatts no solar, ou seja, se olharmos para a meta que temos até 2030, que são 20,4 gigawatts, 1,23 é pouco, mas temos de ter noção que 1,23 foi um valor inédito. E metade desse valor inédito diz respeito ao descentralizado. Estamos a falar de 635 megawatts de descentralizado, ou seja, temos o descentralizado a contribuir muito para aquilo que são as metas do solar. Mas, atenção, para cumprirmos esta meta de 20,4 gigawatts precisávamos de ter 2,3 gigawatts por ano. Precisamos quase que duplicar.
E o que é preciso para acelerar esse crescimento no solar?
Vamos apostar naquilo que está a dar melhores resultados, diria eu, que é o descentralizado. Por isso, sim, vamos apostar nas CER, na instalação de painéis fotovoltaicos, por exemplo, em toda a administração pública. Seria muito interessante termos uma medida que massificasse a instalação de painéis solares na administração pública. Vamos apostar em ter mais autoconsumo, em ter mais participação do cidadão. Penso que é esse o caminho para podermos dinamizar mais as comunidades de energia renovável e contribuirmos para as nossas metas na área do solar.
Como está Portugal no cumprimento das metas para a transição energética?
Diria que estamos num bom caminho para o cumprimento dessas metas, mas uma vez mais alerto para a necessidade de que, se queremos cumprir as metas do solar, e é muito importante que sejam cumpridas, temos de fazer uma grande aposta na descentralização. Temos de apostar muito na energia solar. A energia solar é a terceira no mix energético, mas se compararmos a percentagem que ela ocupa no mix face à segunda, que é o eólico, estamos a falar de 35,2% do eólico para 6,1% do solar. Houve um crescimento brutal nos últimos dez anos, o solar cresceu dez vezes na última década, mas esse crescimento levou a estarmos com 6,1% em fevereiro deste ano, e temos de estar muito mais acima. Ou seja, se queremos atingir a meta dos 20,4 gigawatts em 2030 temos de crescer muito na produção descentralizada.
O que contribuiu para que Portugal superasse a meta europeia de poupança de 15% no consumo de gás natural?
Portugal foi um dos melhores alunos, se não mesmo o melhor aluno, no que diz respeito ao plano para a poupança de energia. Tivemos um plano que todos criticaram no arranque, por ser muito voluntário. Portugal não tem provavelmente tradição de cumprir metas voluntárias, mas o plano para a poupança veio inverter essa ideia. Adene assinou pactos setoriais com os representantes da atividade económica e conseguiu garantir o compromisso de todo o setor no cumprimento destas metas. Conseguimos ultrapassar em 178,6% a meta que estava prevista para 2023 e em 36,9% adicionais a meta prevista para 2024. Agora que o plano foi prorrogado, tendo nós ultrapassado a meta em grandíssima escala, vamos continuar com a estratégia.
“53,7%dos edifícios existentes têm classe energética C ou D. Por isso, estamos a falar ainda de um universo que precisa – e não podemos esperar para daqui a dez, 15 ou 20 anos – de ser rapidamente renovado.”