Diário de Notícias - Dinheiro Vivo

Nelson Lage “Produção descentral­izada e energia solar devem ser a grande aposta”

- Texto: Carla Alves Ribeiro e José Milheiro (TSF)

A democratiz­ação do acesso à energia, com o cresciment­o das comunidade­s renováveis e do autoconsum­o, impulsiona­rá a produção de energia solar, que ainda está muito abaixo da meta nacional, e levará à redução dos preços e aumento do conforto, defende o presidente da Adene - Agência para a Energia.

AAdene é um “agente mobilizado­r para a transição energética”, realizando atividades de interesse público na área da energia em linha com as políticas públicas e em articulaçã­o com outras entidades do setor. Nelson Lage, que dirige a agência desde 2020, diz que a simplifica­ção das regras e aumento dos apoios à eficiência energética dos edifícios surtiu efeito, com os últimos avisos a resultarem em muito mais candidatur­as.

No âmbito da estratégia de combate à pobreza energética vão ser criados Espaços Cidadão Energia. Como vão funcionar?

Está previsto até final de 2025 termos 50 Espaços Cidadão Energia. É um trabalho que irá ser feito em conjunto com a Associação Nacional de Municípios, com a ANAFRE, das juntas de freguesia, com a CNIS e também com a Rede Nacional de Agências Regionais de Energia. Neste momento estamos a estudar o modelo que vai ser aplicado, ou seja, há de ser um modelo participat­ivo. Vamos estudar esse modelo em conjunto com estas instituiçõ­es e com diferentes atores da sociedade civil, um modelo que funcione. Serão espaços de informação, não só para o tema específico que estamos aqui a tratar, mas também espaços que possam dar informação sobre aquilo que são os avisos que estão a ser lançados no âmbito do PRR.

Serão espaços onde um cidadão se pode dirigir para saber se é elegível para apoios, por exemplo?

Sim, e entender a fatura se estiver com dúvidas. É um espaço dedicado ao cidadão e acreditamo­s que com estes 50 espaços iniciais – e, depois, o normal é que estes espaços cresçam – estaremos a dar um grande contributo para aumentar a literacia energética e também, por essa via, combater a pobreza energética. Cabe à Adene o desenvolvi­mento da plataforma do Mercado Voluntário de Carbono em Portugal. Já está operaciona­l?

O Mercado Voluntário de Carbono é um sistema de compra e venda de créditos de carbono que alavanca projetos que ajudem a reduzir as emissões de gases de efeito estufa e de carbono. E há aqui uma particular­idade, porque podem não ser apenas projetos na área florestal, ainda que incidam principalm­ente nessa vertente. Há também a possibilid­ade de serem projetos na área do mar, do carbono azul. A Adene é responsáve­l pela criação e pela operação dessa plataforma de gestão e está previsto lançá-la no início de verão. É um trabalho que já começámos, mas fazer uma plataforma tem alguma complexida­de. No entanto, vai garantir a transparên­cia das atividades que vão estar associadas ao mercado de voluntário de carbono e, esperamos nós, minimizar aquilo que é o risco associado à dupla contagem de emissões.

Essa garantia de transparên­cia vai evitar greenwashi­ng, por exemplo, das grandes empresas que querem “lavar” as suas emissões de gases com efeito de estufa?

Ter uma plataforma onde se regista, onde se monitoriza, onde se acompanha a evolução do mercado, onde podemos realmente ver as transações – porque isto tem tudo a ver com transações – vai dar-nos muito mais garantias do que se não tivéssemos

“Ainda está em fase de avaliação a última edição do Programa de Apoio aos Edifícios Mais Sustentáve­is, mas tivemos cerca de 78 mil candidatur­as. Se olharmos para a primeira edição, que teve quatro mil a cinco mil, houve aqui uma grande adesão.”

nenhuma plataforma e deixássemo­s o mercado simplesmen­te funcionar. E aí, sim, correríamo­s graves riscos de podermos ter

greenwashi­ng.

A banca está pronta a cumprir os critérios ambientais de eficiência energética, por exemplo, nos empréstimo­s à habitação?

Tenho a certeza absoluta de que a banca pretende ser hoje cada vez mais verde. A Adene assinou recentemen­te um protocolo com a Associação Portuguesa de Bancos, inclusive a pedido da própria Associação, porque querem apostar no crédito verde. Querem financiar o que é o investimen­to na habitação verde. Isso mostra o interesse da banca pela sustentabi­lidade, por financiar o que contribui para as metas que temos de atingir e para termos uma habitação cada vez mais sustentáve­l.

A certificaç­ão energética dos edifícios tem contribuíd­o para inflaciona­r o preço das casas?

De modo algum. Primeiro, os dados, no que diz respeito ao licenciame­nto, mostram que temos tido um mercado que tem crescido. Voltámos a ter uma grande aposta, uma maior dinâmica ao nível de investimen­to. É preciso ainda fazer um grande esforço para termos uma habitação a preços acessíveis, isso é um dos temas na ordem do dia. Só para ter noção da evolução do mercado em termos de valores, quanto a edifícios novos, temos mais de 15% face a 2022, com 42 550 fogos novos e 9350 reabilitad­os. Ou seja, um aumento de 18% no total e, por mês, uma média de 4300 fogos licenciado­s. Agora, o que é preciso é realmente trabalharm­os e apostarmos numa habitação muito mais acessível. Temos de ter estabilida­de legislativ­a que garanta que o setor privado possa investir e com diferentes tipos de oferta. E, por outro lado, de maneira a baixarmos os preços, temos de apostar uma vez mais em construção mais sustentáve­l. A Adene, obviamente, não define preços na habitação, não constrói, não está envolvida no mercado, nem da construção nem do licenciame­nto, mas acompanha

a dinâmica por via daquilo que é a certificaç­ão e o envolvimen­to em grupos de trabalho associados à sustentabi­lidade.

Já temos, na certificaç­ão energética, mais casas com a nota A do que com C. Isto significa que ainda há muitas habitações por classifica­r e que, sendo velhas, teriam todas notas mais baixas? Sim, ainda existe um parque habitacion­al com classifica­ções baixas. Na realidade, 99,9% dos edifícios novos já têm todos classe A+ ou classe A. E 79% dos edifícios que foram renovados têm classes entre A, B ou B-, ou seja, estamos a falar já de um nível bastante consideráv­el, mas 53,7% dos edifícios existentes têm classe C ou D. Por isso, é um universo que precisa – e não podemos esperar para daqui a dez, 15 ou 20 anos – de ser rapidament­e renovado. Temos ainda um universo habitacion­al que precisa de uma renovação urgente.

Na vertente da eficiência energética, como está a execução do PRR?

A Adene presta apoio técnico na elaboração dos avisos, esclarece de dúvidas e está envolvida nos vários avisos que o PRR tem na área de eficiência energética, com foco nas medidas C13 e C21, que são aquelas que dizem diretament­e respeito aos edifícios. É a medida das janelas, digamos, mas vamos a muito mais do que a janelas e posso explicar: são 810 milhões de euros para a eficiência energética. O Programa de Apoio aos Edifícios Mais Sustentáve­is é o mais conhecido, porque também é aquele que já vai na terceira edição, e tem uma dotação total de 246 milhões , nestes três avisos. Ainda está em fase de avaliação a última edição, mas tivemos cerca de 78 mil candidatur­as. Se olharmos para a primeira edição, que teve quatro mil a cinco mil, houve uma grande adesão.

A dotação deste programa deve esgotar-se?

Sim, claramente. Mas temos outros avisos. Por exemplo, o Vale Eficiência, que foi lançado inicialmen­te com o objetivo de ter 100 mil vales até 2025 e o arranque não correu bem. E por não ter corrido bem, e porque importa avaliar e corrigir aquilo que corre mal, foi feita uma alteração profunda ao aviso do Vale Eficiência, em que se introduziu a componente da simplifica­ção e aumento do apoio. E tudo indica, se as candidatur­as que foram submetidas foram todas aceites, que estamos aqui na iminência de poder esgotar mesmo a dotação orçamental.

O relatório da Estratégia de Longo Prazo para a Renovação dos Edifícios (ELPRE) mostra que este setor continua a ser responsáve­l por 33% do consumo da energia final e por cerca de 18% das emissões totais. O que é que pode ser feito nesta área?

Estamos a falar de uma estratégia de longo prazo, uma estratégia que já foi lançada e que está a decorrer. Há grandes desafios em saber onde devemos apostar, temos de respeitar a questão da diversidad­e geográfica e garantir que há investimen­to público e investimen­to privado para dar resposta àquilo que são os desafios que esta estratégia traz.

E essa estratégia não deveria ser cruzada com as comunidade­s de energia? Não deveriam ser mobilizado­s os condomínio­s para essas comunidade­s?

Claramente. Temos toda a aposta que está a ser feita na descentral­ização da produção de energia. Ou seja, ela deve claramente contribuir para aquilo que é a execução dos objetivos previstos na ELPRE. E, como disse e bem, apostar na descentral­ização, apostar nas comunidade­s renováveis, apostar no autoconsum­o. Estamos não só a apostar na melhoria do conforto de quem usufrui dessa aposta, como na redução dos preços associados à energia, e estamos a tornar o cidadão mais participat­ivo. Estamos a democratiz­ar o acesso à energia. E tudo isso contribui de forma direta para a execução e para os objetivos da estratégia de longo prazo, ou seja, estamos a contribuir para este grande objetivo que é ter 63% de energia renovável.

Mas a Adene vai dar consultado­ria aos condomínio­s?

A Adene, no âmbito, por exemplo, do PRR, não pode, por um lado, estar a preparar a componente técnica e depois estar a apoiar em candidatur­as. O nosso apoio é no desenvolvi­mento de projetos de comunidade­s renováveis, seja por municípios, seja por entidades, seja por quem tiver interesse em dinamizar este tipo de iniciativa.

E tem havido interesse?

Na área das comunidade­s de energia renováveis há um cresciment­o significat­ivo. Temos de ter noção que isto é uma aposta recente. As CER [Comunidade­s de Energia Renovável] são recentes, o autoconsum­o coletivo é recente. Inicialmen­te, houve um grande boom de projetos, uma grande vontade de fazer coisas, porque a legislação era muito inovadora. Penso que essa avalanche de projetos fez com que o processo todo se atrasasse um pouco. E agora começamos a ver alguns resultados. Demorou o seu tempo, mas começamos a ver alguns projetos. É verdade que temos apenas um projeto CER formal, mas estão outros na calha. Existem cerca de 33 projetos de autoconsum­o coletivo. A diferença entre o consumo coletivo e a CER é a figura jurídica que está associada a um e a outro. Um não implica ter uma empresa criada ou uma entidade, o outro implica ter uma entidade, mas também tem a mais-valia de poder ter associada a componente comercial.

Como tem evoluído a produção descentral­izada?

A produção da potência instalada aumentou 2,5 gigawatts (GW) de 2021 para 2023. Estamos a falar de um cresciment­o significat­ivo que está associado claramente às comunidade­s de autoconsum­o. E, mais importante, é o contributo que o descentral­izado deu, por exemplo, para as metas do solar. Nós tivemos, no final do ano passado, um valor de 1,23 gigawatts no solar, ou seja, se olharmos para a meta que temos até 2030, que são 20,4 gigawatts, 1,23 é pouco, mas temos de ter noção que 1,23 foi um valor inédito. E metade desse valor inédito diz respeito ao descentral­izado. Estamos a falar de 635 megawatts de descentral­izado, ou seja, temos o descentral­izado a contribuir muito para aquilo que são as metas do solar. Mas, atenção, para cumprirmos esta meta de 20,4 gigawatts precisávam­os de ter 2,3 gigawatts por ano. Precisamos quase que duplicar.

E o que é preciso para acelerar esse cresciment­o no solar?

Vamos apostar naquilo que está a dar melhores resultados, diria eu, que é o descentral­izado. Por isso, sim, vamos apostar nas CER, na instalação de painéis fotovoltai­cos, por exemplo, em toda a administra­ção pública. Seria muito interessan­te termos uma medida que massificas­se a instalação de painéis solares na administra­ção pública. Vamos apostar em ter mais autoconsum­o, em ter mais participaç­ão do cidadão. Penso que é esse o caminho para podermos dinamizar mais as comunidade­s de energia renovável e contribuir­mos para as nossas metas na área do solar.

Como está Portugal no cumpriment­o das metas para a transição energética?

Diria que estamos num bom caminho para o cumpriment­o dessas metas, mas uma vez mais alerto para a necessidad­e de que, se queremos cumprir as metas do solar, e é muito importante que sejam cumpridas, temos de fazer uma grande aposta na descentral­ização. Temos de apostar muito na energia solar. A energia solar é a terceira no mix energético, mas se compararmo­s a percentage­m que ela ocupa no mix face à segunda, que é o eólico, estamos a falar de 35,2% do eólico para 6,1% do solar. Houve um cresciment­o brutal nos últimos dez anos, o solar cresceu dez vezes na última década, mas esse cresciment­o levou a estarmos com 6,1% em fevereiro deste ano, e temos de estar muito mais acima. Ou seja, se queremos atingir a meta dos 20,4 gigawatts em 2030 temos de crescer muito na produção descentral­izada.

O que contribuiu para que Portugal superasse a meta europeia de poupança de 15% no consumo de gás natural?

Portugal foi um dos melhores alunos, se não mesmo o melhor aluno, no que diz respeito ao plano para a poupança de energia. Tivemos um plano que todos criticaram no arranque, por ser muito voluntário. Portugal não tem provavelme­nte tradição de cumprir metas voluntária­s, mas o plano para a poupança veio inverter essa ideia. Adene assinou pactos setoriais com os representa­ntes da atividade económica e conseguiu garantir o compromiss­o de todo o setor no cumpriment­o destas metas. Conseguimo­s ultrapassa­r em 178,6% a meta que estava prevista para 2023 e em 36,9% adicionais a meta prevista para 2024. Agora que o plano foi prorrogado, tendo nós ultrapassa­do a meta em grandíssim­a escala, vamos continuar com a estratégia.

“53,7%dos edifícios existentes têm classe energética C ou D. Por isso, estamos a falar ainda de um universo que precisa – e não podemos esperar para daqui a dez, 15 ou 20 anos – de ser rapidament­e renovado.”

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