Diário de Notícias - Dinheiro Vivo
OS AVISOS DE CENTENO “VIVEMOS 80% DO TEMPO EM DÉFICE EXCESSIVO, NÃO QUEREMOS LÁ VOLTAR”
Na redução do IRS sobre a classe média, a trave do Orçamento deste ano, ainda há “500 milhões de euros” de despesa fiscal (menos receita) que caem em 2025, o que “obriga, pelas regras do Pacto, a que a despesa tenha de ser reduzida em 500 milhões de euros”, atirou o governador do Banco de Portugal. Luís Reis Ribeiro
Avisos, recomendações e mais avisos. Mário Centeno, o governador do Banco de Portugal (BdP), apresentou ontem o novo boletim económico com previsões até 2026, mas grande parte da intervenção que fez na nave do Museu do Dinheiro, uma antiga igreja, hoje incrustada na sede do BdP, em Lisboa, foi sobre o rumo das contas públicas e o caminho que é preciso fazer com cuidado e redobrada atenção de forma a “preservar” os “equilíbrios” orçamentais “que tanto custaram a alcançar”, frisou o antigo ministro das Finanças do PS.
Centeno disse várias vezes que não estava a falar “em concreto” para o futuro governo ou para a maioria parlamentar (relativa) da Aliança Democrática (PSD-CDS-PPM), mas sim, sobre o rumo da política orçamental pública, que “é estreito”, num quadro de disciplina europeia, o novo Pacto de Estabilidade, que não começa a vigorar este ano, mas chega em pleno no próximo.
Um Pacto cujas regras se focam agora, ainda mais, num género de moeda de troca entre despesa e receita, mas no qual os gastos públicos serão sempre o elo mais fraco. Se houver menos receita fiscal, os olhos de Bruxelas vão olhar para a despesa e pedir mais acertos nesse lado da balança. Cortes ou poupanças.
Por exemplo, se o país enveredar por uma enorme redução de impostos, como o alívio de cinco mil milhões de euros prometido pela coligação de direita vencedora das últimas eleições legislativas, a 10 de março, o Pacto vai exigir imediatamente uma resposta do lado da despesa primária (sem juros) de modo a garantir que as contas continuam equilibradas, como estão agora. Mas, relembrou Centeno, há compromissos nos gastos: contrataram-se mais profissionais para o Serviço Nacional de Saúde, há investimentos cruciais que têm de avançar, para mais apoiados por fundos europeus, que não devem ser desperdiçados, alertou.
No caso de Portugal, a exigência é maior porque, embora os governos dos últimos anos tenham vindo a reduzir o peso da dívida pública no Produto Interno Bruto (PIB), a dívida continua acima de 90% do PIB e ainda muito longe do limite de 60% que o novo Pacto continua a exigir.
Na conferência de imprensa que se seguiu à apresentação do boletim, o governador do banco central disse que “não há preocupação com rigorosamente questão concreta nenhuma, há com o equilíbrio [das contas públicas], equilíbrio que deve e tem de ser respeitado porque, como disse, depois de termos vivido 80% dos nossos dias em procedimento por défice excessivo [PDE], nós não queremos lá voltar. É muito importante
que a margem financeira que foi criada possa ser preservada”.
Em 2009, Portugal, empurrado pela crise e por uma gestão orçamental assente em mais endividamento, cairia novamente (pela terceira vez na história recente, desde 1992, desde que existe Tratado de Maastricht) no ingrato Procedimento por Défices Excessivos.
A situação desfavorável, porque motivou enormes ondas de hostilidade da Europa, do FMI, do próprio BCE e das agências de rating, durou 80% do tempo contado até agora. Segundo a contagem de Centeno feita ontem, foram “2784 dias” de caminho até ao equilíbrio orçamental.
Essa contagem de dias, qual calvário, já tinha ecoado em meados de 2017, quando o país (o governo) se livrou do rótulo de gastador e endividado, de humilhações várias, como as proferidas pelo holandês Jeroen Dijsselbloem, o antigo presidente do Eurogrupo (três meses antes apenas de Portugal oficializar a sua saída o PDE) que, referindo-se aos países do sul, atirou: “Não posso gastar o meu dinheiro todo em bebida e mulheres e depois disso ir pedir a vossa ajuda. Este princípio vale para o nível pessoal, local, nacional e também europeu”. Também deve ser para aqui que Centeno diz que não quer voltar.
“A saída do Procedimento por Défice Excessivo é um marco muito importante para Portugal”, afirmou vitorioso, em junho de 2017, o então ministro das Finanças, Mário Centeno. “Isto demonstra que a estratégia portuguesa tornou as finanças públicas sustentáveis, mantendo as despesas sob controlo, apoiando em simultâneo o crescimento inclusivo”. Centeno colheria os louros, seria o sucessor de Dijsselbloem à frente do Eurogrupo, o conselho informal de ministros das Finanças da Zona Euro.
Ontem, Centeno-governador foi mais elegante do que o holandês há sete anos, mas a mensagem que passou de forma persistente é, no fundo e teoricamente, a mesma. Disse que Portugal, daqui para a frente, “não pode perder a oportunidade de, num período de crescimento económico, continuar a preparar-se para futuro”.
“A margem financeira que existe deve ser colocada ao serviço do futuro e não consumida no presente”, afirmou. “Temos uma situação orçamental que quase todos invejam, logo, não podemos deitar fora algo que toda a gente inveja”, ou seja, “a condução da política económica deve preservar a margem financeira entre o país e a próxima crise”.
Sobre o novo formato do Pacto de Estabilidade, Centeno insistiu que, mesmo com contas equilibradas, “o caminho é muito estreito”, sobretupós do na despesa pública. “Se não acautelarmos a margem financeira que hoje temos e que nos permita gerir as próximas crises, o país corre os mesmíssimos riscos do passado”.
“As minhas palavras não se dirigem a nenhuma situação concreta. Têm a ver com as dinâmicas das contas públicas, que têm consequências na despesa e receita”. E depois deu vários exemplos. “Como vocês gostam de exemplos, vou dar mais”, disse em tom de brincadeira.
Referiu que na medida da redução do IRS sobre a classe média, a grande trave do Orçamento de Estado para este ano, do governo que agora cessa, ainda há “500 milhões de euros” de despesa fiscal (menos receita) que caem em 2025, o que “obriga, no âmbito das regras do Pacto, a que a despesa tenha de ser reduzida em 500 milhões de euros”.
No Imposto sobre Produtos Petrolíferos (ISP), também foram tomadas medidas de alívio “discricionárias” que se traduzem em menos 440 milhões de euros nesta carga fiscal sobre o consumo de gasolina e gasóleo. “Se estes cortes forem revistos aumenta-se a margem adicional em 440 milhões de euros”, mas mantendo a “medida discricionária não há criação de margem adicional do lado da despesa”, afirmou o governador, só a título exemplar.
Atualmente, “há apenas três países na Zona Euro com saldos orçamentais positivos, Portugal, Chipre e Irlanda”. “Penso que o país não deveria perder esse estatuto”, rematou.
Economia a recuperar
Fora o tema contas públicas, o Banco de Portugal avançou com novas projeções. Diz que o crescimento da economia portuguesa deverá ser visivelmente superior ao que se previa em dezembro. O emprego também ganha força, o desemprego baixa de forma evidente e a inflação alivia mais uns pontos, aproximando-se dos 2% em 2025.
De acordo com o novo boletim, a economia cresce 2% em 2024, previsão que contrasta com a de apenas 1,2% avançada há três meses, no boletim de dezembro. Depois cresce “2,3%, em média, nos dois anos seguintes”, em 2025 e 2026. “Este crescimento beneficia do aumento do investimento e das exportações e supera o projetado para a Zona Euro”, diz o BdP.
Os consumidores deverão sentir-se menos pressionados pelos preços dos bens e serviços, já que “a inflação diminui para 2,4% em 2024, apesar de efeitos temporários sobre os preços dos bens alimentares e energéticos ao longo do ano”. É um alívio substancial até porque a inflação média de 2023 cifrou-se nuns impressionantes 9,2%.
Em dezembro, o BdP previa uma inflação de 2,9% para este ano, com o país a convergir para o objetivo do Banco Central Europeu (BCE) em 2025 (inflação de 2%), previsão que se mantém intacta neste boletim. “Em 2025, a inflação situa-se em 2%, e no ano seguinte, em 1,9%. A convergência da inflação para valores consistentes com a estabilidade de preços reflete menores pressões externas e os efeitos das decisões passadas de política monetária”, diz o Banco.
“No mercado de trabalho, o emprego deve continuar a crescer (0,7% em 2024 e 0,5% em 2025-26), tal como os salários reais”, valores superiores aos previstos em dezembro, que apontavam para uma virtual estagnação do emprego este ano (0,1%) e uma criação de emprego de apenas 0,3% no próximo. “A taxa de desemprego deve manter-se estável”, em 6,5% da população ativa em 2024, mas numa previsão bastante inferior face à taxa de 7,1% avançada em dezembro.
“O consumo privado cresce, em média, 1,9% em 2024-26, num contexto de ganhos de rendimento disponível real e de aumento da poupança”, explica o BdP.
“O rendimento disponível real das famílias sobe 4% em 2024 e 1,9% em 2025-26, beneficiando da descida da inflação e das expectativas de redução da taxa de juro, da dinâmica dos salários e das prestações sociais, e da redução dos impostos diretos”, acrescenta o Banco de Portugal.
O investimento, que é a variável que mais determina o emprego e o crescimento a prazo, “cresce 3,6% este ano e 4,8%, em média, em 2025-26, em reação à recuperação da procura global, ao alívio gradual das condições de financiamento e à maior execução financeira do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e de outros fundos europeus”.
Portugal “seguro” como potência turística
“As exportações mantêm-se como um dos principais motores do crescimento da economia. Sobem, em média, 3,6% em 2024-26 e dão um contributo (líquido de conteúdo importado) de 0,9 pontos percentuais (p.p.) para a variação média do PIB neste período.”
Neste quadro, o BdP destaca, claro, o maná do turismo, que deverá continuar a ir mais rápido do que a média das exportações. “Em 2024, o turismo deverá manter um dinamismo superior ao do total das exportações”, refere o Banco. E acrescenta que “as perspetivas para o setor a nível mundial mantêm-se favoráveis e, num contexto de elevados riscos geopolíticos, as exportações de serviços deverão continuar a beneficiar da perceção de Portugal como destino turístico seguro”.