Diário de Notícias - Dinheiro Vivo
Margarida Marques “O risco de a extrema-direita aumentar o seu peso no Parlamento Europeu é grande”
Eurodeputada foi uma das relatoras do novo reforço do orçamento da União, aprovado no Parlamento Europeu. A poucos meses das eleições europeias, vê a ascensão da extrema-direita como risco grave para a democracia na Europa.
No final do mês passado, o Parlamento Europeu aprovou por grande maioria um reforço do Quadro Financeiro Plurianual (QFP) da União Europeia, onde o grande protagonista foi o Mecanismo Ucrânia, que passa a ter “mais 50 mil milhões de euros de empréstimos (33 mil milhões de euros) e subvenções (17 mil milhões de euros)”. O Dinheiro Vivo entrevistou Margarida Marques, eurodeputada socialista (grupo S&D – Socialistas e Democratas), que foi correlatora da proposta de reforço financeiro até 2027 aprovada em plenário. Uma entrevista sobre o orçamento da UE, mas também os riscos que as próximas eleições europeias podem trazer aos atuais equilíbrios políticos, com a ascensão da extrema-direita.
Relativamente ao Quadro Financeiro Plurianual (QFP) da União Europeia (UE), esta atualização acontece porquê? Num cenário em que não houvesse guerra, este quadro, estas balizas para os máximos de despesas previstas para os sete anos deste orçamento (2021-2027), seria reforçado na mesma ou a urgência veio da guerra na Ucrânia e dos desafios que isso hoje coloca?
Quando nós aprovámos o orçamento em dezembro de 2020, o orçamento plurianual 21-27, efetivamente, foi até a primeira vez que nós conseguimos aumentar o QFP e trazer para o orçamento da União Europeia dinheiro novo relativamente à proposta inicial da Comissão Europeia. E conseguimos, de certa forma, encontrar uma nova fonte de financiamento, que era uma fonte ligada às multas, do não respeito das regras da concorrência, e conseguiu-se assim aumentar o orçamento da UE em 16 mil milhões de euros, dos quais 11 mil milhões era dinheiro novo.
Num total de, já agora, se pudermos só recordar os números?
Este QFP andará à volta de 1,2 biliões de euros [1,2 milhões de milhões], num horizonte de sete anos. Mas, evidentemente, a União Europeia foi confrontada com o impacto da covid logo em 2020 e 2021, por um lado, e depois disso com a guerra na Ucrânia, que começou no início de 2022. E, por isso, houve, de facto, linhas orçamentais que ficaram completamente esgotadas. Em cima disto, mais recentemente, somos confrontados com o início do aumento das taxas de juro para responder ao aumento da inflação.
As premissas do QFP que começou em 2021 estão muito desatualizadas? Nos juros então nem se fala, não é?
Veja: nós temos o QFP (quadro financeiro plurianual) baseado numa inflação a 2% durante sete anos, por um lado. Mas, no que diz respeito à chamada linha dívida, ou seja, a linha que paga os custos do Fundo de
Recuperação [que financia os PRR Planos de Recuperação e Resiliência], os encargos com a dívida, as taxas de juro, quando o orçamento foi aprovado em 2020, estavam a pouco mais de 0% e aumentaram de forma muito significativa, como sabemos, ou seja, o que estava lá orçamentado no QFP não era suficiente para pagar, para cumprir, para assumir as nossas responsabilidades.
Qual é o nível de taxa de juro que está agora implícito nestes instrumentos todos?
Já lá irei. Só para dizer o seguinte. Como referi, com tudo isto que aconteceu até agora, houve linhas orçamentais que ficaram esgotadas: por exemplo, financiamento de ajuda humanitária e outros. E temos novos desafios como é o caso concreto do nosso apoio à Ucrânia, como é a questão do reforço da autonomia estratégica da União Europeia, isso foi claro com a crise da covid, que a União Europeia precisava de aprofundar e de reforçar a sua autonomia estratégica.
O reforço do QFP é essencialmente nessas duas dimensões?
Sim, as duas mudanças mais significativas neste novo quadro foram a criação do mecanismo para a reconstrução da Ucrânia e a criação do programa STEP para aprofundar a autonomia estratégica europeia [sigla em inglês para Plataforma de Tecnologias Estratégicas para a Europa, uma espécie de fundo soberano europeu que reforçará os atuais instrumentos da UE para dar apoio financeiro rápido, complementando programas existentes de tecnologias limpas, biotecnologias e digitalização].
E onde foram buscar esse novo dinheiro?
Estamos perante uma questão muito difícil de lidar do ponto de vista orçamental, das regras do orçamento da União Europeia. Portanto, o que a Comissão propôs é um mecanismo que a Comissão chamou cascade, cascata, em que nós temos uma linha de dívida e quando não houver disponibilidade orçamental nessa linha, nós passamos para um outro nível, que é ir buscar financiamento, dinheiro europeu, que não foi utilizado. E, portanto, numa
“Com esta revisão do Quadro Financeiro Plurianual temos 21 mil milhões de euros em dinheiro novo, destes 17 mil milhões são para a Ucrânia.”
terceira fase, se não houver dinheiro disponível, vamos ao dinheiro da flexibilidade.
Onde é que contabilizam isso, onde é que está essa conta do dinheiro não utilizado, como é que fazem essa unidade de tesouraria ou de verbas?
Nós temos uma linha de dívida e a linha de dívida está definida, tem 12,6 mil milhões de euros para pagar os juros, para pagar os custos da dívida, do Next Generation EU. Se aquele dinheiro estiver esgotado, passamos para o nível seguinte que é ver nas diferentes linhas orçamentais dos programas o dinheiro que não foi executado e que, portanto, pode ser transferido para esta linha orçamental. Se no momento em que é necessário fazer um pagamento não houver esse financiamento disponível, passamos ao nível seguinte, chamado de step 2, o segundo passo, que é usar o dinheiro da flexibilidade.
Países mais céticos e que têm dificultado as negociações orçamentais, como a Hungria, não se podem melindrar ainda mais com o facto de estarem a mexer em dinheiro que lhes foi atribuído, mas que ainda não foi usado?
A Hungria teve uma posição de
chantagem durante a negociação. Como sabe, houve um acordo, havia um acordo a 26, houve um conselho europeu extraordinário para se debruçar apenas sobre a revisão do QFP e, finalmente, foi possível à Hungria dar o apoio à revisão do quadro. É importante sublinhar isto porque este quadro financeiro plurianual tem que ser aprovado por unanimidade no Conselho, daí ter dado à Hungria a possibilidade de fazer chantagem, ameaçando não aprovar o acordo. Finalmente, ao fim de muitas negociações, a Hungria acabou por aceitar a revisão do quadro. Como disse, foi criado o mecanismo Ucrânia, que é muito importante.
Como é que funcionará e quanto vale esse apoio à Ucrânia de todos os países da UE?
Ao todo, 50 mil milhões de euros. O mecanismo prevê subvenções no valor de 17 mil milhões e o resto são empréstimos num montante de 33 mil milhões de euros. Isto foi aprovado no Conselho Europeu.
Com o apoio da Hungria.
Sim. À partida, essa gestão não traz problemas. A Hungria ainda tentou que, anualmente, o QFP tivesse que ser revisto por causa da Ucrânia, o que dava hipótese a Viktor
Orbán [primeiro-ministro húngaro] de, anualmente, fazer esta chantagem.
Não houve contrapartidas mais diretas para a Hungria?
Orbán também tinha interesse em que o quadro fosse revisto, é um beneficiário importante dos dinheiros da coesão.
Esta linha de apoio à Ucrânia podia ter sido construída de outra forma, como tantas vezes acontece na UE. Porque é que quiseram integrá-la no orçamento europeu?
Com a chantagem de Orbán, o que teríamos era um mecanismo intergovernamental fora do orçamento. Mas é muito importante estar dentro do envelope orçamental, primeiro, pela previsibilidade, ou seja, a Ucrânia sabe com que financiamento é que vai contar da União Europeia para o funcionamento do Estado, das suas instituições e dos serviços aos cidadãos. E, por outro lado, era a única forma de manter o poder do Parlamento Europeu enquanto autoridade orçamental, aquilo que nós chamamos a democratic accountability. O PE tem capacidade para acompanhar a execução deste mecanismo Ucrânia.
Esta revisão do QFP permite ainda dedicar mais dinheiro para Defesa.
Quanto é que isso irá valer?
Sim, haverá um reforço do STEP, sobretudo por via do Fundo Europeu de Defesa e de verbas para a investigação na área da Defesa. Estamos a falar de mais 1,5 mil milhões de euros. De facto, este é o único dinheiro novo para a defesa. Consideramos que não é suficientemente ambicioso para aquilo que deve ser um fundo de recuperação. Mas como a própria Comissão assume, isto é um primeiro passo. Além disso, aumentámos as verbas para o programa de apoio às catástrofes nos Estados-membros, o programa da ajuda humanitária, porque o apoio à Ucrânia acabou por esvaziar a ajuda humanitária a Sul. Além do mais, temos a situação em Gaza, o conflito no Médio Oriente, pelo que é fundamental aumentar essa ajuda.
Numa altura em que começam a surgir divisões e hesitações dentro da UE, mesmo em alguns países que apoiam a Ucrânia, o Parlamento Europeu quis mostrar com isto que o apoio é para continuar e continua vivo? É uma resposta aos mais críticos?
Sim, claramente. Mas há um outro aspeto. Este QFP mostra o esforço da unidade do Parlamento Europeu no apoio à Ucrânia e, muito importante, mostramos que é possível dar mais apoios sem cortar nos programas europeus, nem nas prioridades políticas europeias.
Há pouco disse que para a Ucrânia, em subvenções [verbas a fundo perdido], estão previstos mais 17 mil milhões de euros. Ao todo, o QFP foi revisto em quanto?
Com esta revisão temos 21 mil milhões de euros em dinheiro novo, destes 17 mil milhões são para a Ucrânia. Sendo certo que nunca podemos chegar ao momento em nos vemos confrontados em o apoio aos europeus para apoiar a Ucrânia. Esse seria um momento de grande dificuldade na unidade europeia.
Este equilíbrio é hoje mais frágil e mais delicado do que antes por causa da ascensão de partidos antidemocráticos e populistas, muitos contra a ideia da Europa?
A questão que levanta é a da unidade europeia e efetivamente, temos que reconhecer, hoje há países onde os governos são críticos relativamente ao apoio à Ucrânia, caso da Hungria, da Eslováquia. Essa unidade enfrenta dificuldades no Conselho, por causa da posição da Hungria, da Eslováquia. Mas, no Parlamento, houve uma maioria clara de apoia à Ucrânia.
Vamos ter eleições para o Parlamento Europeu nos próximos dias 6 a 9 de junho. Se houver uma recomposição mais radical do PE, com ascensão de partidos extremistas e hostis à Europa e aos apoios a países não europeus, este QFP arrisca a sofrer alterações ou os europeus podem contar com estabilidade aqui nesta parte financeira?
O que eu posso dizer hoje é que isto é o quadro até 2027. Para mudar este quadro tem que haver unanimidade. E a extrema-direita não conseguirá uma unanimidade a seu favor no Conselho. Portanto, isso é a segurança que nos pode ser dada. Agora, evidentemente, que o risco de a extrema-direita aumentar o seu peso no Parlamento Europeu é grande. O risco de haver reorganizações no Parlamento para criar um grupo de extrema-direita mais forte é grande. A hipótese de fusão entre o ID [o grupo Identidade e Democracia, que congrega a extrema-direita europeia e do qual faz parte o Chega] e o ECR [grupo dos Conservadores e Reformistas Europeus] não é nula. Evidentemente que hoje há uma linha de clivagem entre o ECR e o ID que se desenha como pró-Ucrânia ou pró-Rússia. O ECR, na sua maioria, é um grupo de extrema-direita, mas é anti-Rússia, portanto, apoia a Ucrânia. O ID é composto fundamentalmente de forças que são mais pró-Rússia, como Le Pen e outros. E, portanto, essa clivagem existe entre os dois grupos de extrema-direita e é o que pode impedir a fusão destes dois grupos. Mas há pequenos partidos, de um e do outro lado, que se podem reorganizar. Se esses dois grupos se juntassem, teriam um grande peso no Parlamento Europeu [se fosse hoje, os dois passariam a ter 128 lugares, tornando-se na terceira maior força política do PE, tirando esse lugar ao Renew Europe].
Sem querer entrar em futurologias, como é que a deputada se sente em termos de confiança perante a ascensão de forças ditas extremistas um pouco por toda a Europa?
Penso que há condições para que as forças democráticas e pró-europeias continuem a constituir uma maioria no Parlamento Europeu. Acho que isso é importante e digo isto com alguma segurança. Dito isto, também penso que não é impossível que a extrema-direita reforce o seu peso no Parlamento Europeu. Há aqui uma questão, que do meu ponto de vista é muito importante, que é a posição do Partido Popular Europeu (PPE, o maior partido do PE, ao qual pertence o PSD]. O PPE, em alguns dossiês-chave, tem oscilado entre uma aliança mais à esquerda com os socialistas e com os liberais, ou uma aliança mais à direita com o ECR. E, portanto, pode julgar-se aqui um papel no sentido de reforçar a sua aliança com a extrema-direita ou recusar-se a fazê-lo.
O PPE é mais ambivalente do que o PSD português? Pergunto por causa do “não é não” do PSD ao Chega.
Não sei se quer ou não quer, sei bem o que estão a dizer... É uma questão a ver, porque o não é não pode depender da hora [risos]. Aqui, no PE depende muito dos partidos e do que acontece ao nível das relações entre os partidos, a nível nacional. Por exemplo, tanto quanto soubemos há poucos dias, a Roménia vai ter uma lista única de Socialistas e PPE no sentido de combater a extrema-direita, fazendo eleições locais no mesmo dia das europeias, portanto, há ali uma grande preocupação com a extrema-direita, mas que tem muito a ver com a realidade nacional, que não é transponível para qualquer outro país. Mas acho que a questão fundamental aqui, como lhe digo, e que há condições para haver uma maioria democrática e pro-europeia no Parlamento Europeu e que o PPE deve recusar quaisquer alianças com o ECR, por exemplo.
* Em Estrasburgo. O jornalista viajou a convite do Parlamento Europeu.