Diário de Notícias - Dinheiro Vivo
BRUXELAS PUXA PELOS COMBOIOS PARA NÃO SE ATRASAR NA LUTA PELO AMBIENTE
Para a União Europeia ser neutra em carbono até 2050, o transporte ferroviário será uma das principais ferramentas. Construção de novas linhas terá de ter menos emissões e Bruxelas insiste na mudança da bitola, apesar de já haver outras opções.
A cerca de quatro quilómetros do centro de Bruxelas, Schaerbeek é uma das estações ferroviárias mais antigas da Europa. O comboio estreou-se aqui em 1835, quando a Bélgica deu os primeiros passos sobre carris. No século XIX, o transporte ferroviário dominou as viagens europeias. No século XX, o automóvel passou para a linha da frente. Cerca de 190 anos depois, a Europeia (UE) “anda no engate” a tentar convencer pessoas e empresas a voltarem a apostar no transporte sobre carris. A UE corre contra o tempo. Tem 25 anos (e sete meses) para atingir a neutralidade carbónica e os meios de transporte têm de baixar as emissões em 90% – atualmente, representam um quarto de toda a poluição e aumentaram nos últimos 30 anos.
Os comboios serão determinantes para cumprir o objetivo climático até 2050 nos passageiros e nas mercadorias entre os 8% e os 5%, respetivamente. Este foi o foco da edição deste ano dos Connecting Europe Days, iniciativa da Comissão Europeia dedicada aos transportes, que decorreu na capital belga. A revisão dos corredores transeuropeus foi um dos destaques.
O Corredor Atlântico, que serve Portugal, não sofreu alterações: mantêm-se as ligações ferroviárias Lisboa-Porto-Vigo; Aveiro-Viseu-Salamanca e Lisboa-Elvas-Madrid. A Ucrânia integra pela primeira vez a rede transeuropeia, estando previstas ligações de cidades como Kiev, Mariupol e Odessa à UE. Com a ameaça russa cada vez mais presente, também se falou sobre investimentos para melhorar a circulação de veículos militares.
A padronização do transporte ferroviário é o principal marco nos corredores transeuropeus, que ganharam nova dinâmica com a guerra na Ucrânia. Na visão de Bruxelas, Estados-membros como Portugal, Bélgica, Finlândia, Letónia, Lituânia e Estónia têm de ter planos para mudar de bitola [distância entre carris] nos principais corredores. Mesmo soluções como os cambiadores de bitola, que são usados na alta velocidade espanhola e que permitem ajustar os rodados aos padrões europeus e ibéricos, são vistas como medidas transitórias.
“Prefiro um bom plano do que soluções intermédias que nos fazem depender de outros sistemas”, salientou Herald Ruijters, subdiretor-geral do departamento de Mobilidade e Transportes da Comissão Europeia [DG-Move], durante um dos debates.
Ao lado deste responsável estavam representantes governamenUnião tais da Lituânia e da Moldávia [país candidato à UE], que querem aproximar-se da Polónia e da bitola europeia. Os dois países querem fugir aos padrões de carris definidos pela Rússia há mais de um século. “Será um processo muito dispendioso, mas penso que a nossa segurança nacional não pode ficar comprometida por uma questão financeira”, sinalizou Loreta Maskaliovien, vice-ministra lituana dos Transportes e Comunicações.
Apesar de incluída nos acessos à Europa, a Ucrânia não quer mudar já a bitola de toda a rede. “É preciso manter a atual capacidade”, notou o líder dos caminhos-de-ferro ucranianos, Oleg Yakovenko. A nível nacional, o comboio é responsável por 65% do transporte de mercadorias e 25% dos passageiros. Para aceder aos corredores europeus, no entanto, os ucranianos estão a falar com os espanhóis para apostar nos cambiadores de bitola.
O mesmo ponto foi assinalado noutro painel pelo ministro espanhol dos Transportes. “Temos de conjugar a rede de alta velocidade em bitola europeia com as outras bitolas”, referiu Óscar Puente.
Ainda não se percebeu se haverá fundos europeus suficientes para todas as obras necessárias. Por causa disso, o ministro dos Transportes da Chéquia admitiu a existência de investidores privados em futuros projetos. “Precisamos de mostrar o
valor das novas infraestruturas aos cidadãos e apostar em parcerias com investidores privados. Essa é uma solução pragmática para o futuro”, propôs Martin Kupka.
As mercadorias também foram incluídas no certame europeu. Em Schaerbeek, a UE apresentou um sistema de engate automático dos comboios: o Digital Automatic Coupler quer romper com praticamente dois séculos de acoplagem de vagões com recurso a manobradores. Além de aumentar a segurança desta operação, o sistema quer acelerar a formação de comboios de mercadorias e aumentar a capacidade do transporte de carga.
A solução pode ser instalada em qualquer um dos mais de 400 mil vagões de mercadorias existentes em toda a Europa. Funciona em qualquer temperatura, mesmo perante frio extremo – chegaram a ser feitos testes na Suécia, com 25 graus negativos.
No futuro, pretende-se que a ferramenta funcione de forma autónoma e controlada remotamente – o que terá consequências para as carreiras de trabalhadores ferroviários. A inteligência artificial, conjugada com a leitura de dados dos sensores, pode facilitar a localização e gestão dos vagões.
Caderno de encargos para a próxima Comissão
Como se quer o comboio como principal meio de transporte europeu nos próximos anos, os ministros europeus dos Transportes, após reunião informal na capital da Bélgica, deixaram um caderno de encargos para o próximo elenco da Comissão Europeia: facilitar a compra de um bilhete de comboio em toda a UE, independentemente das empresas envolvidas; desenvolver uma estratégia para os comboios noturnos, com tarifas reduzidas e em alternativa a voos de curta e média distância; equilibrar a fiscalidade entre meios de transporte, sobretudo no capítulo energético; refletir, nos preços dos transportes, os custos das externalidades, como a poluição e o trânsito; aumentar o financiamento para o transporte ferroviário; e proteger a indústria europeia da “concorrência injusta” de países extracomunitários a nível fiscal, social e laboral.
A Europa tem de preparar-se, por isso, para a ampliação e construção de novas linhas ferroviárias – mas não a todo o custo (ambiental). O uso da energia geotérmica e das renováveis, a reutilização de materiais usados na construção, a aposta em aço de alta qualidade e cimento com menos dióxido de carbono, além do transporte de materiais através de circuitos próprios em vez de camiões foram algumas das sugestões deixadas num relatório elaborado por mais de 20 especialistas.
Resta saber se medidas políticas e técnicas vão acelerar ainda mais os projetos ferroviários na viagem europeia pela descarbonização, garantido o futuro da humanidade os próximos 190 anos (pelo menos).
Soluções como os cambiadores de bitola, usados na alta velocidade espanhola e que permitem ajustar os rodados aos padrões europeus e ibéricos, são vistas como transitórias.