Diário de Notícias - Dinheiro Vivo
Maria da Graça Carvalho “Continua a haver manipulação e pouca transparência no mercado da energia”
A nova ministra da Energia, numa das últimas entrevistas como eurodeputada, explica o novo quadro de sanções contra grandes operadores que manipulam preços no mercado grossista de energia.
Ndas últimas entrevistas que deu como eurodeputada (do PPE Partido Popular Europeu, ao qual pertence o PSD), Maria da Graça Carvalho, que este mês foi empossada como ministra do Ambiente e Energia do governo de Luís Montenegro, explica como vai funcionar o novo Regulamento de Proteção da União Contra a Manipulação do Mercado Grossista da Energia (REMIT), do qual foi relatora-principal no Parlamento Europeu (PE). Este quadro legal REMIT foi revisto na sequência da invasão da Ucrânia pela Rússia e do pico que se seguiu nos preços da energia, para o qual também contribuíram práticas ilegais por parte de empresas, que este regulamento visa justamente combater.
Assim, o objetivo fundamental e final é reforçar a proteção dos consumidores. Neste caso, apertando mais o cerco às tentativas de manipulação dos mercado de energia, não apenas pelos operadores do setor em causa, mas também do setor financeiro. A revisão do REMIT visa ainda reforçar os poderes da agência europeia – ACER – que representa os reguladores. No final de fevereiro, a proposta de lei redigida por Graça Carvalho foi aprovada por esmagadora maioria no PE, com 440 votos a favor, 32 votos contra e 31 abstenções. Terá agora de ser formalmente aprovada pelo Conselho, para se tornar lei.
A também professora e investigadora, é formada em Engenharia Mecânica pelo Instituto Superior Técnico e doutorada pelo Imperial College (Londres).
Relativamente a esta reforma do quadro legal contra a manipulação do mercado grossista da energia, para uma maior transparência na formação de preços em benefício dos consumidores finais, foi a guerra que precipitou a urgência de rever esta lei especial de proteção dos consumidores no mercado energético?
Foi uma resposta à crise, essencialmente, à crise. A invasão da Ucrânia pela Rússia teve como consequência uma grave crise de energia, porque nós dependíamos imenso da importação da Rússia, de carvão, petróleo e gás, mas essencialmente gás. E houve a urgência de ter medidas que nos protegessem e que diminuíssemos a dependência da Rússia, que aumentassem a transparência e que protegessem os consumidores do grande aumento dos preços que houve nessa crise. Houve países, em toda a Europa, com uma subida em flecha dos preços, como todos recordamos.
Em Portugal foi assim, mas, por exemplo, nos países do Leste europeu foi ainda mais dramático.
Sim, totalmente, e Espanha também teve problemas graves. Este novo quadro legal, composto pelo REMIT, passa a ser o nosso conjunuma to de regras na luta contra a manipulação do mercado, a que soma o outro relatório com o desenho do mercado elétrico. Ambos têm como fim proteger os consumidores.
Esse desenho do mercado elétrico visa o quê, em concreto?
Este regulamento do mercado elétrico passa a prever a possibilidade de decretar imediatamente um regime de crise. Ou seja, se acontecer alguma coisa grave, como aconteceu no passado, já não é preciso ter uma legislação de emergência para proteger os consumidores. Este quadro para responder às crises que possam existir é um quadro permanente. A legislação nesta proposta está prevista com critérios muito rigorosos e aí os Estados-membros podem ajudar os consumidores, os consumidores privados e as empresas que sofreram muito. Quanto ao REMIT, como disse, é o nome curto para a luta contra a manipulação do mercado grossista e tem como objetivo dar maior transparência a este mercado. Porque continuamos a ter manipulação e pouca transparência no mercado da energia.
Para explicar melhor aos nossos leitores: o que é um mercado grossista de energia e por que razão ele é importante para a formação do preço final relevante para os consumidores?
A formação do preço começa exatamente aí, na importação, os preços da importação da energia, portanto, temos que começar a controlar aí para depois conseguir controlar o preço final para os consumidores. E, como disse, até agora, tem havido pouca transparência. Nós, por exemplo, tivemos ainda recentemente uma notícia, Portugal aumentou a importação de gás natural liquefeito da Rússia, mas não foi só Portugal, foi Espanha, Bélgica, os países continuam a importar muito. Diminuíram o gás por pipeline, por gasoduto, mas continuam a importar via marítima, por navio. Ou seja, podemos estar a falar em importações daqui ou dali, mas nunca sabemos bem porque vêm por via indireta. Daí também ser preciso ter aqui uma transparência grande neste sistema. Portanto, o que nós propusemos e foi aprovado – e tenho muito gosto em ter o apoio de todos os grupos políticos, extremos incluídos, desde o ID [grupo Identidade e Democracia, que congrega a extrema-direita europeia e do qual faz parte o Chega] e o ECR [grupo dos Conservadores e Reformistas Europeus] – do PPE, do Renew Europe, dos Socialistas, dos Verdes e da Esquerda, todos eles apoiam esta iniciativa.
Frisou em particular que até a extrema direita apoia isto. Que leitura faz dessa convergência neste dossiê?
A extrema-direita e a esquerda votam a favor, sim. De início não estavam em parte de acordo, mas resolveram apoiar, porque é difícil ser contra uma coisa que aumenta a transparência. Eles de início não estavam muito contentes de estarmos a dar mais poder à Europa...
“É preciso que os consumidores sintam nos preços que pagam o esforço de investimento que toda a sociedade está a fazer há muito tempo nas energias renováveis.”
E ao regulador, imagino.
Sim. Mas da forma como fizemos esta reforma, penso que aumentou muito o equilíbrio entre a agência europeia e reguladores nacionais.
É expectável, no fim deste processo sendo ele bem sucedido,
“Sanção mínima passa a ser cinco milhões de euros, isto para pessoas singulares. Para empresas, pessoas coletivas, passa a 15% do volume de negócios. Portanto, estamos a falar de sanções relevantes e muito grandes.”
além de promover a transparência – porque, supostamente, as pessoas vão conseguir ver melhor o que é que estão a consumir e os preços –, que a energia fique mais barata também para os consumidores finais?
Isso vai depender muito das taxas e dos impostos de cada um dos Estados nacionais. Mas, por exemplo, temos as condições, aqui neste relatório e no do desenho do mercado elétrico, para que a descida do preço, por exemplo, das renováveis, se possa refletir no preço final.
Em Portugal teria impacto.
Podia, mas depende do que é que vamos pôr sempre depois em cima do preço da geração de energia. Mas, sim, temos as condições para haver maior investimento e que os lucros obtidos sejam, de certo modo e cada vez mais, em favor da descida dos preços no consumidor final. Outra coisa que está no outro relatório, o referido desenho do mercado elétrico, é que é preciso que a grande aposta nas renováveis seja refletida em todos os consumidores. Há uma especial atenção aos consumidores vulneráveis, mas todos os consumidores, na classe média, na empresas. Ou seja, se estamos a investir nas energias renováveis, se isto é mais barato, é preciso pelo menos que se veja e sinta que não estamos a aumentar tanto o preço da eletricidade, por exemplo. É muito importante que isto comece a ser visível, porque estamos num ponto em que toda a gente ouve dizer, já é muito competitivo ter energias renováveis, já são muito mais baratas...
Mas as pessoas ainda não sentem isso.
... mas depois não se sente, é isso. É preciso que haja uma transparência na formação do que se paga, que os consumidores sintam nos preços que pagam o esforço de investimento que toda a sociedade está a fazer há muito tempo nas energias renováveis.
Outra forma de aliviar a fatura energética passa por famílias e pequenas empresas apostarem em renováveis para autoconsumo. Tem havido apoios, subsídios, mas esta modalidade devia ainda crescer muito mais, não?
Exato, isso é outra coisa que no mercado elétrico da energia foi surpreendente para mim que tanto aqui no Parlamento, como no Conselho, foi essencialmente Portugal a defender o autoconsumo, as comunidades de energia e a partilha da energia. Mas isto é algo com o qual a Comissão Europeia (CE) e a maior parte dos países ainda não se sentem confortáveis.
Mas porque será?
Eu acho que ainda há muita mentalidade do centralismo no mercado da energia. Aquela ideia de ter uma empresa muito grande, a utility clássica, um modelo que tem 20 anos, e agora o modelo de futuro vai ter de ser muito mais descentralizado, muito mais digitalizado, com maior inovação, e vai dar maior poder a cada um de nós. Só para você ver como isto se desenrolou. Primeiro, consegui introduzir no relatório a ideia de que nós temos que ter partilha de energia, mas do outro lado [CE e outros países] a resposta era então só para as famílias e só para as habitações. Nessa altura disse que também seria importante para as empresas. E a resposta a isto foi “então só para as empresas muito pequeninas”. E eu questionei: mas porquê?! Nós em Portugal temos empresas grandes a fazer partilha de energia, temos vários projetos já com dimensão. E assim foi: lá conseguimos que ficasse para todos, quer dizer, e esse é o futuro, não é?
Que empresas e entidades podem
beneficiar mais dessa modalidade de produção de energia para autoconsumo e partilha?
Primeiro, há uma restrição importante neste desenho: no caso das empresas que decidem produzir energia para também poder partilhar, esta não pode ser a sua principal atividade. Quer dizer, não podem ser utilities, nem produtores de energia. Mas todos os outros podem beneficiar e muito. Estamos a falar de fábricas, parques de ciência e tecnologia, parques industriais. Estou a falar destes, porque a maioria tem possibilidade financeira, tem espaço. Por que é que não hão de produzir a sua eletricidade e o que lhes sobra partilhar? Conseguiu-se pôr isto na proposta, mas foi uma das coisas mais difíceis, porque o que estava, o que vinha do contributo da Comissão e que era aceite por muitos Estados-membros e por muitos colegas, representava um retrocesso grande, por exemplo, para Portugal. Conseguimos que não fosse, aliás, depois conseguimos incluir mais facilidade em relação às autorizações. O quadro ficou todo ele muito mais facilitador e amigo de quem opta por produzir energia para autoconsumo e o que sobrar, partilhar com outros.
Referiu há pouco a questão da guerra, de como esta veio provocar uma grave disrupção nos preços, um choque mesmo. E falou da Rússia. Hoje, qual é o ponto da situação relativamente à dependência europeia da energia russa?
Com a guerra, no início de 2022, a Europa lançou o programa Repower EU [medidas para poupar energia, produzir energia limpa e diversificar o aprovisionamento energético] onde muitas medidas e financiamentos foram diretamente para a Europa ficar menos dependente da importação de gás russo. Aliás, nós no ano anterior à invasão, em 2021, cerca de 40% do nosso gás importado vinha da Rússia e, neste momento, o que vem por gasoduto é apenas 8%. Depois com os navios, o peso da Rússia deve rondar os 15%, ou seja, menos de metade do que era. Mas, o nosso objetivo é chegar a zero.
Voltando à questão da regulação e da falta de transparência e abusos no mercado energético: sentiram que piorou nos últimos tempos?
Houve um período em que houve mais situações irregulares, aliás, isso nota-se após o início da guerra. De facto, houve um aumento de sanções aplicadas pelos reguladores nacionais.
Com esta vossa proposta tentam apertar ainda mais a malha às empresas que prevaricam?
Como disse, reforça ou dá pela primeira vez poder à agência europeia para ter ela própria poderes de investigação e de aplicar multas e de maior persuasão e escrutínio dos reguladores nacionais.
Como é em termos de sanções? São pesadas?
Definimos os mínimos das sanções porque o que se via, quando olhávamos para os 27 Estados-membros, é que não era nada uniforme, variava imenso de país para país e, portanto, os operadores do mercado que se queriam aproveitar dessas diferenças, poderiam ir para os países onde as sanções eram mais leves. Com esta reforma, por exemplo, para o abuso de informação privilegiada e manipulação do mercado, a sanção mínima passa a ser cinco milhões de euros, isto para pessoas singulares. Para empresas, pessoas coletivas, a sanção mínima passa a ser 15% do volume de negócios. Portanto, estamos a falar de sanções relevantes e muito grandes e que, no caso de empresas que operam em pelo menos dois países, podem servir de dissuasor relativamente a más práticas, esperamos.
Há pouco tempo a Engie, que é uma gigante energética francesa, foi multada por uma série de processos em apenas 500 mil euros. É para que desfechos destes deixem de acontecer?
Basicamente, sim. As sanções mínimas têm de ser grandes para o sistema ser eficaz e fazer sentido. E com este novo quadro, aumenta o número de casos em que a agência europeia pode atuar e, ato contínuo, os reguladores nacionais em causa. Portanto, agora basta ser um qualquer operador transfronteiriço e os reguladores já podem atuar, caso exista um motivo, porque é preciso apenas a irregularidade ou ilícito acontecer em dois Estados-membros. E hoje, na Europa, os operadores são todos transfronteiriços, basicamente. Portanto, o alcance deste novo regime é grande.