Diário de Notícias - Dinheiro Vivo
Portugal garante à Veja sucesso no slow fashion
Marca francesa produzida no Brasil há quase 20 anos lançou uma segunda cadeia de produção, a partir de Felgueiras, para servir o mercado europeu com materiais locais.
Produzidas quase há 20 anos no Brasil, as sapatilhas francesas da Veja estão, desde final de 2022, a ser fabricadas também em Felgueiras, na Samba. Uma aposta no bem saber fazer da indústria portuguesa, por parte de Sébastien Kopp e Ghislain Morrillion, os criadores da marca que calça famosos por todo o mundo, para manter o cariz sustentável da marca. Os materiais são locais e só as solas de borracha têm vindo a ser importadas do Brasil, por falta de opção, mas até nesse âmbito vai haver surpresas em breve, promete Sébastien Kopp. “Queremos produzir na Europa o que vendemos na Europa. A produção local é o futuro”, diz, num português tingido de tonalidades brasileiras e francesas, que não escondem a sua origem.
Aos 25 anos, com o amigo Ghislain Morrillion, decidiu lançar-se num projeto próprio, mas com um forte pendor social e ambiental, área em que se tinha movimentado até aí. “Nós vimos das áreas do desenvolvimento sustentável. Trabalhámos para grandes empresas no mundo inteiro, Índia, China, África do Sul, Brasil, Argentina, no Peru, sempre em projetos sociais e ambientais. E, com 25 anos anos, decidimos lançar uma empresa e escolhemos as sapatilhas porque é um produto da nossa geração, que gostamos de calçar todos os dias, mas que é, também, um produto cheio de simbolismo, do domínio dos países do Norte sobre os do Sul e dos desenvolvidos sobre os países em vias de desenvolvimento”, afirma, fazendo referência à produção das grandes marcas de sapatilhas na China “em condições sociais e ambientais muito más”.
Os dois jovens queriam “reinventar” a indústria das sapatilhas através de uma “mudança na cadeia produtiva”. Isto foi em 2004, quando começaram o trabalho de campo, na Amazónia, junto dos seringueiros que recolhem a borracha natural das árvores, mas também dos pequenos produtores de algodão orgânico do Nordeste, em busca de materiais sustentáveis.
“Não queríamos fazer um projeto de fabrico convencional e depois plantar um árvore [para compensar]. Queríamos que as preocupações ambientais e sociais fossem parte integrante do produto. Andamos meses a aprender a língua, primeiro, e depois como vivem e trabalham os agricultores, os seringueiros, as comunidades que vivem da floresta e que a protegem”, explica.
Em 2005, é lançada a marca, com uma “produção pequena, sem investidores e sem publicidade”, uma estratégia que se mantém até hoje, apostada em crescer sempre “de forma sustentável, passo a passo, a partir do passa a palavra, sem pressas”. E sem pressas, passaram quase 20 anos, período em que vendeu já mais de 12 milhões de pares de sapatilhas, nos mais de três mil retalhistas com que trabalha em todo o mundo. Comprou mais de um milhão de toneladas de algodão e quase três milhões de toneladas de borracha, produtos pelos quais, garante, chega a pagar três vezes mais do que o preço de mercado.
Nascida dos sonhos de dois amigos, a Veja emprega hoje 600 pessoas, metade das quais na sede, em Paris, mais 150 no Brasil – dispersas entre São Paulo, Campo Bom, Acre ou Ceará – e 70 em Nova Iorque, onde a empresa abriu uma loja em 2020, a que se juntou, na semana passada, uma segunda em Brooklyn, e dez em Berlim, que tem também uma loja desde 2022, ano em que a empresa faturou 251 milhões de euros. Tem ainda três lojas em Paris e uma em Madrid, estando prevista a abertura em Londres, em maio, entre outras em preparação.
Em Portugal, a Veja não tem escritório, “ainda”, mas tem um agente que está encarregado de acompanhar a produção local, na fábrica da Samba, em Felgueiras, uma empresa familiar que vai já na terceira geração e dá emprego a 400 pessoas. Aqui foram produzidos cerca de 100 mil pares dos 4,1 milhões que a empresa vendeu no ano passado em 112 países. Este ano, as previsões apontam para produzir em Portugal sensivelmente o mesmo. “O mercado está difícil. A guerra, a inflação, o próprio brexit estão a fragilizar alguns mercados em termos de moda. França, Alemanha e Itália estão a ‘meio gás’, mas Inglaterra está muito difícil e nós somos muito prudentes, fazemos as coisas passo a passo, não criamos falsas expectativas”, garante.
A vontade de trabalhar em Portugal existia há muito, garante, e, por isso, os dois sócios chegaram a visitar fábricas em 2010. “Portugal tinha tudo, nós é que ainda não tínhamos estrutura para fazer os dois projetos”, garante Sébastien Kopp. Só mais de uma década depois avançaram, abrindo uma segunda cadeia de produção, com materiais ecológicos, da Europa e de África. Couros ecológicos, com tingimentos vegetais, algodão orgânico, poliésteres reciclados, etc.. “Hoje, a linha produzida em Portugal é muito parecida com a do Brasil, mas, a cada temporada, vai ser cada vez mais singular, com modelos únicos”, explica. Sendo que, no total, a Veja é composta por 20 modelos, apenas, combatendo “o vício” do fast fashion. E, por isso, a marca oferece “modelos intemporais”.
Como se ganha uma dimensão destas sem publicidade, sem stocks e sem investidores? “Com determinação, com tempo e encontrando parceiros bons. Não temos fornecedores, temos parceiros. E vivemos do passa a palavra. Vivemos num tempo em que todos estão sempre com muita pressa e a publicidade existe para quem quer crescer depressa. Nós não temos essa pressa. Produzimos pouco e crescemos passo a passo, de forma saudável. Acabou o modelo que quer? Daqui por seis meses há mais. E, por isso mesmo, não queremos investidores, este é o nosso projeto de vida, queremos ser livres”, sublinha o empresário. Questionado sobre o imenso interesse que a marca gera nos famosos, Sébastien desvaloriza: “São clientes como os outros, não pagamos a celebridades, não entramos nesse tipo de marketing. O presidente Macron ligou para o escritório, há tempos, a encomendar um par e pagou por ele. O que eu acho ótimo, as celebridades têm muito dinheiro, podem comprar o seu par de sapatilhas”, frisa.