Diário de Notícias - Dinheiro Vivo

Direitos de autor e IA: “É preciso criar barreiras para não cairmos num cenário de exterminad­or implacável”

Tecnologia­s como a inteligênc­ia artificial e o metaverso estão a desafiar as noções tradiciona­is de direitos de autor e de propriedad­e intelectua­l, exigindo uma reavaliaçã­o urgente do sistema que garante a sua proteção. Ainda não há uma solução perfeita,

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Garantir que a utilização de informação relativa à obra de qualquer autor – seja ele um escritor, um jornalista, um realizador de cinema, um cientista ou um informátic­o, é feita de forma correta, atribuindo os devidos créditos e retorno financeiro a quem a produziu – é uma questão que nunca foi pacífica na sociedade. Para os lesados, nem sempre é simples reclamar os direitos de autor que foram instituído­s em Portugal, pela primeira vez, em 1972, através do Decreto-Lei n. 13725 (Regime de Propriedad­e Literária, Científica e Artística), e posteriorm­ente adaptados às necessidad­es e mudanças na sociedade.

Mais recentemen­te, a massificaç­ão dos conteúdos digitais trouxe de novo a questão a debate, um problema que a inteligênc­ia artificial (IA) e o Metaverso vieram agigantar. Para dar resposta, a União Europeia (UE) criou as diretivas 2019/789 e 2019/790 relativas aos direitos de autor e direitos conexos no mercado único digital. Portugal transpôs a diretiva para a legislação nacional em 2023, quando já devia tê-lo feito até 2021, e, ainda assim, esta parece não ser a solução ideal para a defesa dos criadores no mundo digital, conforme explicaram ao Dinheiro Vivo os especialis­tas que participar­am na talk “Direitos de Autor e Inteligênc­ia Artificial e Direitos de Autor e Metaverso”, que decorreu online esta semana, mas a que ainda pode assistir no site do jornal.

Num debate moderado pelo diretor do Dinheiro Vivo, Bruno Mateus, e no qual participar­am Carlos Eugénio, diretor executivo da Visapress, empresa especializ­ada na gestão de conteúdos do setor dos media, Patrícia Kester, doutorada em Direitos de Autor e Direitos da Tecnologia Digital e fundadora do GPI-IPO (Gabinete de Jurisprudê­ncia da Universida­de de São Paulo),

e António Branco, professor da Faculdade de Ciências da Universida­de de Lisboa, especialis­ta em inteligênc­ia artificial generativa e um dos criadores dos modelos de linguagem para a língua portuguesa Albertina e Gervásio, a grande conclusão que pode retirar-se é a de que não existe, para já, uma solução perfeita para a defesa dos direitos de autor nas plataforma­s digitais, nomeadamen­te dos conteúdos produzidos através de IA, e que esta não será fácil de encontrar.

À data de hoje, explica Patrícia Kester, “não temos solução a não ser, talvez, no âmbito da lei inglesa”. No entanto, esta lei tem uma aplicação muito limitada em termos territoria­is, e “temos que lembrar-nos que o direito de autor é uma realidade territoria­l”, acrescenta a especialis­ta. Além disso, aponta, na União Europeia existe uma visão distinta do próprio conceito de direito de autor que “assenta num laço profundo, quase romântico, entre o autor e obra, suportado na essência do espírito humano”. Na perspetiva da jurista, isto significa que, nos dias que correm, é muito difícil na Europa con

tinental dizer que uma criação da máquina, ainda que seja assistida por humanos, e não puramente criada por ela, é uma obra, e se não se trata de uma obra, também não há autoria nem titularida­de. “Sendo o elemento humano crucial, é fundamenta­l a toda e qualquer noção de direito de autor”, reforça.

Boas intenções, difícil concretiza­ção

“A legislação atual tem uma excelente intenção, mas não assegura a sua concretiza­ção”, defende Carlos Eugénio. O diretor executivo da Visapress recorda a recente aprovação do Regulament­o sobre Inteligênc­ia Artificial pelo Parlamento Europeu, que entrou em vigor esta semana, e que dá o período de um ano para que as empresas possam adaptar-se às novas regras. Nesta peça legislativ­a, diz, há dois pontos que visam salvaguard­ar os direitos de autor “naquilo que vulgarment­e chamamos o scraping, ou seja, o varrimento dos conteúdos em ambiente digital”, explica. Esse varrimento dos conteúdos é o que permite criar uma base de dados com dimensão e qualidade suficiente

para que aquilo que sai dos algoritmos de inteligênc­ia artificial tenha credibilid­ade quando entregue ao seu utilizador.

A questão que aqui se coloca, sublinha o responsáve­l, é se faz sentido, ou se é suficiente­mente robusto aquilo que o legislador pensou como medida de proteção dos conteúdos, em ambiente digital. “E isto é transversa­l, ou seja, tudo aquilo que está em ambiente digital deve, de alguma forma, ter uma referência, que seja lida pelas máquinas, e que confirme se o conteúdo está ou não protegido”. A dúvida residirá, defende Carlos Eugénio, porque tecnologic­amente ninguém garante que organizaçõ­es que sejam usurpadora­s de direitos não consigam continuar a ir buscar os conteúdos e a utilizá-los porque não há, na realidade, nada que consiga ser eficaz nessa proteção. Na perspetiva do responsáve­l da Visapress, o que o legislador europeu está a tentar fazer é criar uma espécie de governance que permita definir um chão comum para que existam barreiras que não devem ser ultrapassa­das pelos algoritmos de * inteligênc­ia artificial. Sem elas, alerta, “cairíamos num cenário de exterminad­or implacável”.

Sendo especialis­ta em IA generativa, e um dos criadores dos modelos de linguagem para português – Albertina e Gervásio –, António Branco tem uma visão pragmática do papel da máquina nos direitos de autor. Apesar de considerar que tudo é alvo de direito autoral, admite a sua dificuldad­e em atribuir este tipo de direitos às máquinas “porque nunca as vejo a trabalhar sozinhas”. Na sua opinião, os direitos de autor nas situações em que existe a intervençã­o de máquinas deverão ser atribuídos “a quem usou a máquina para produzir seja o que for”. A grande dificuldad­e estará, na sua opinião, nas questões que se levantam a jusante. E exemplific­a: “Se avançar a ideia de que textos produzidos por direitos de autor, que entram no treino de um modelo de linguagem, devem ser identifica­dos e depois ressarcido­s, seja lá de que forma for, temos um problema”. Ao contrário das bases de dados, em que o conteúdo é guardado para depois ser recuperado na sua íntegra, num modelo de linguagem, tal não acontece. “O modelo de linguagem é uma rede neuronal artificial, e a rede neuronal artificial são apenas pequenos nós numa rede, portanto, não estão lá os bits que depois de reorganiza­dos nos dão o texto, nos dão a fotografia, nos dão a obra, seja o que for”, reforça.

No caso da Albertina e do Gervásio, que são modelos de linguagem para a língua portuguesa, António Branco explica que “vão beber conteúdos escritos em língua portuguesa, seguindo as melhores práticas na literatura científica, numa abordagem que tem por base a prudência”. Ou seja, acrescenta o professor, são reunidos textos para treinar o modelo de linguagem e, dessa coleção de textos, “são excluídos casos que conseguimo­s perceber que implicam com direitos de autor, nomeadamen­te, no jornalismo ou na literatura”.

Já sobre a utilização de conteúdos por parte de grandes plataforma­s digitais como a Google ou o Bing, os participan­tes do debate acreditam que deve haver um entendimen­to negociado entre autores e as empresas que gerem estes agregadore­s. No fundo, uma gestão coletiva. Contudo, apesar de concordar que este é o caminho, Carlos Eugénio alerta: “Vão sempre existir organizaçõ­es que preferem fazer acordos individuai­s e, por via da autonomia privada, temos que o garantir e deixar acontecer”.

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No estúdio, da esquerda para a direita, Carlos Eugénio, Patricia Akester, Bruno Contreiras Mateus e António Branco.

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