Diário de Notícias - Dinheiro Vivo
“Setor do TVDE está em pré-rutura, são urgentes medidas paliativas até à alteração da lei”
O presidente da APTAD defende um travão à inscrição de novas viaturas nas plataformas, o pagamento de tarifas noturnas aos motoristas e exames para acesso à atividade nos centros IMT.
Com pouco mais de uma semana de vida, a Associação Portuguesa de Transportadores em Automóveis Descaracterizados (APTAD) quer unir empresários, parceiros e motoristas do setor de Transporte Individual e Remunerado de Passageiros em Veículos Descaracterizados (TVDE). Ivo Fernandes assume a liderança da nova associação com uma lista de propostas para a atividade que diz estar em “pré-rutura”. Para o responsável, é urgente a revisão da “Lei Uber” mas, enquanto isso não acontece, defende serem necessárias “medidas paliativas”. A baixa rentabilidade e a carga horária excessiva são dois dos maiores problemas para os motoristas, aponta. Interromper, temporariamente, a inscrição de novas viaturas nas plataformas, aumentar os preços das viagens para responder ao aumento de custos provocado pela inflação e definir tarifas noturnas acrescidas de 25% são algumas das propostas da associação.
Esta semana foi marcada pelo protesto dos motoristas TVDE por
melhores condições de trabalho. Quais são as principais reivindicações do setor?
Maior equidade entre o rendimento que os motoristas fazem versus o trabalho que dedicam a esta atividade. Ao longo dos últimos anos tem havido cada vez mais motoristas e isso não tem acompanhado a procura, ou seja, a oferta aumentou e, neste momento, temos o mesmo volume de procura para dividir por mais motoristas, o que os obriga a estar mais tempo a trabalhar e, consequentemente, menores rendimentos.
Tem algum caderno de encargos para apresentar ao Governo?
Estamos a trabalhar nisso. Somos uma associação que se tornou pública no dia 1 de maio e entrámos já em contacto com os vários grupos parlamentares. Iremos também falar com a tutela para discutir a revisão da lei 45/2018 – o que tinha sido prometido pelo anterior Executivo e, entretanto, ficou em stand by. Os motoristas pedem que as comissões pagas às grandes plataformas como a Uber ou a Bolt baixem dos atuais 25% para os 15%. É urgente esta alteração? Considero um assunto menos importante, porque o que nos interessa são os rendimentos que os motoristas conseguem retirar desta atividade e não é diminuindo a comissão das plataformas que se aumenta o rendimento. Se diminuíssemos o rendimento das plataformas e esse rendimento extra revertesse para os motoristas, sem mais nenhuma medida, o que iria acontecer é que iríamos ter mais carros e mais motoristas a entrar. Esta medida não permite resolver esta desigualdade, ao contrário da suspensão, pelo menos temporária, até à revisão da lei, da introdução de novos veículos nas plataformas. Esta é a nossa medida, obviamente que a iremos propor à tutela, mas sabemos que não é possível a sua implementação, porque quem fez a legislação não acautelou este instrumento. O Governo não tem condições para impedir o aumento do número de viaturas registadas.
A ideia seria travar as novas licenças até que a procura aumentasse?
Isso seria o ideal, mas o problema é que essas licenças não correspondem aos carros que estão nas plataformas. As únicas entidades licenciadas são o operador, no fundo, é o empresário, mas o operador pode ter um ou 500 veículos. Portanto, esses veículos não são licenciados. Se pedirmos, como os manifestantes pediram esta semana, a suspensão de novas emissões de licença de operador, a única coisa que vamos fazer é que não haja mais operadores, mas os 17 500 operadores que existem atualmente podem continuar a meter carros.
Qual é a sua sugestão em termos de legislação?
O ideal seria sensibilizar as plataformas para impedirem que houvesse mais inscrições de viaturas, mas estaríamos nas mãos das plataformas e, obviamente, consideramos que elas têm de ter o rendimento. Na alteração da lei é necessário que se certifique os veículos que fazem TVDE, para o Governo ter um instrumento em que a cada momento consiga intervir no setor.
O que falta fazer em relação à regulamentação de tarifas, preço de custo de serviço e fiscalização?
O que acontece no setor TVDE é que, teoricamente, procura-se que isto seja um mercado livre e que haja uma equiparação, um equilíbrio entre a oferta e a procura. Mas estamos perante um setor em que temos o operador, que é o fornecedor do serviço, e temos o cliente, que está do outro lado, que quer o serviço. E a plataforma faz de intermediário e liga o fornecedor do serviço ao cliente. No entanto, é o intermediário que estipula o preço. Isto corrompe.
“Muitos motoristas trabalham 50 ou 60 horas por semana, muitas vezes para nem ganhar o ordenado mínimo. Isto é absolutamente inaceitável.”
Falta a regulamentação?
Obviamente, porque, enquanto fornecedor de serviço, tenho de ser eu a dizer qual é o valor do meu serviço, não pode ser o intermediário
“Tem de haver um aumento dos preços, não se consegue compreender como é que com a inflação as tarifas se tenham mantido ou até descido. Alguém tem de pagar essa conta no fim.”
a definir. A legislação obriga a que o operador TVDE apenas possa trabalhar através da plataforma, o operador TVDE está preso, está agrilhoado à plataforma que põe e dispõe dos valores. Amanhã diz que a corrida custa menos dois euros e a minha operadora, se quiser trabalhar, trabalha com aqueles valores ou então não posso trabalhar de todo. É isto que tem de ser alterado para que sejam os operadores a poder definir o seu próprio preço e, isso sim, é economia de mercado.
Defende a garantia de liberdade contratual para o setor? Como distribui o nível de responsabilidades das plataformas face aos trabalhadores?
Entendemos que o trabalho a tempo inteiro tem de ter um contrato e terá de ser garantido, pelo menos, o salário mínimo. Mas também sabemos que há trabalhadores em part-time e sazonais e esses não podem ter um contrato de trabalho, terão de existir outras formas contratuais e, por isso, defendemos que exista essa liberdade.
O nível de risco do negócio deve então ser definido em exclusivo pelos operadores?
Deve ser atribuído aos operadores, com a condição de que sejam eles a definir o preço. O que não pode acontecer, que é o que acontece atualmente, é que o risco do negócio está do lado dos operadores, mas o preço está do lado do intermediário. No mínimo, deve existir uma concertação.
Quantos motoristas e operadores já representam e que objetivos têm?
Iniciámos a associação há relativamente pouco tempo e estamos ainda numa fase de divulgação. Somos apenas algumas dezenas de empresários e motoristas também, porque a nossa associação aceita a representação direta por parte dos motoristas. Representamos perto de mil automóveis na estrada, o que é ainda muito pouco – os números do IMT do mês passado apontam para 77 mil motoristas registados e 17 500 operadores no país. O que nos move é sabermos que, no final do mês, aquilo que um motorista leva para casa é absolutamente paupérrimo. Se utilizarmos um Uber e falarmos com os motoristas, muitos deles dizem que trabalham 50 ou 60 horas por semana, muitas vezes para nem ganhar o ordenado mínimo. E isto é absolutamente inaceitável.
Desses 77 mil motoristas, quantos são estrangeiros?
Não há informação pública sobre o número de estrangeiros a trabalhar, mas a nossa perceção é que são cada vez mais. E é fácil perceber porquê: é difícil encontrar um cidadão português ou europeu que se sujeite a este tipo de condições de trabalho. Ninguém quer trabalhar 50 horas numa semana para ter um rendimento inferior ao ordenado mínimo. É normal que com esta rotação de motoristas alguns entendem que o negócio já não compensa, porque há contas em casa para pagar. Depois, as pessoas que imigram e que vêm à procura de melhores condições de vida sujeitam-se a este tipo de trabalhos.
O setor sobreviveria sem essa mão-de-obra imigrante?
Não. Esta mão-de-obra é necessária não só neste setor, mas noutros, e é importante que seja tida em conta. No entanto, não é por a mão-de-obra ser imigrante que desejo que estes trabalhadores levem menos dinheiro para casa.
A lei que regula o TVDE é omissa na questão da obrigatoriedade dos motoristas falarem português, ao contrário do que acontece na legislação dos táxis, o que tem feito disparar as queixas de passageiros. É um problema?
A lei é omissa em relação à obrigatoriedade de falar português, no entanto, não é omissa em relação à formação que tem de ser dada em português. E, portanto, é difícil a explicação sobre como os motoristas que não falam uma palavra em português conseguem fazer uma formação de várias horas.
Como é que isso acontece?
Terá de ser investigado. Mas a verdade é que há relatos constantes de motoristas que conseguem a certificação mesmo não falando português. Num país como o nosso, que tem um setor turístico forte e uma sazonalidade grande, falar exclusivamente português poderá não ser 100% necessário, mas, pelo menos, é preciso ter um mínimo de compreensão.
Falta fiscalização nas escolas?
Sem dúvida. O relatório da Autoridade da Mobilidade e dos Transportes aponta exatamente para a questão da formação e da fiscalização na parte da formação. A alteração que é apontada como necessária é que, no final da formação, o exame seja realizado de um órgão independente, neste caso, da tutela.
A lei define que os motoristas de TVDE não podem trabalhar mais de dez horas dentro de um período de 24 horas, independentemente do número de plataformas nas quais prestem serviços
e, diz ainda, cabe aos operadores a implementação de mecanismos que garantam este cumprimento de limites. Este escrutínio está a ser feito?
A regra geral é que muitos motoristas vão para lá das dez horas diárias de trabalho. Primeiro, porque a fiscalização é muito parca, mesmo com as nossas autoridades policiais que fazem bem o seu trabalho de fiscalização. No entanto, há aqui muita tecnologia nova, alterações de legislação constantes ou interpretações da legislação, que muitas vezes dificultam essa própria fiscalização. E os motoristas que têm pouco rendimento acabam por arranjar estratagemas para trabalhar mais horas. Se de hoje para amanhã implementássemos uma fiscalização em que cada motorista apenas pudesse trabalhar 40 horas por semana, então, como trabalhador independente, no final do mês ou no final da semana levava para casa talvez metade de um ordenado mínimo. É muito importante equilibrar a oferta e a procura face ao trabalho que pode ser disponibilizado a cada trabalhador, para que ele ganhe o rendimento justo no final da sua jornada de trabalho. Tem de haver um aumento das tarifas, não se consegue compreender como é que com uma inflação que é conhecida, e quando tudo subiu de preço, as tarifas se tenham mantido ou até descido. Alguém tem de pagar essa conta no fim.
Espera ver alguma estabilização nestas questões todas ainda durante esta legislatura?
Estamos a lutar precisamente para poder, junto da tutela, promover esta alteração legislativa o quanto antes. E que esta alteração legislativa resulte num equilíbrio saudável entre os operadores e os motoristas, e obviamente as plataformas. O setor está numa situação de pré-rutura. É urgente que haja medidas paliativas, pelo menos até haver esta alteração da lei.
As plataformas estão a demitir-se deste aspeto da fiscalização, podendo, inclusive, colocar em risco a segurança dos passageiros? Exatamente, compromete a segurança. É por isso que temos de ser firmes na exigência deste controlo horário e no rendimento mínimo. Uma das nossas reivindicações é que, no período noturno, haja um incremento de 25% no valor da tarifa, para que os operadores possam acomodar o pagamento justo de quem trabalha nesse horário, como está previsto também na lei.
Segundo dados do IMT e da PSP, o número de motoristas a prestar serviço fora das plataformas eletrónicas é a infração que mais aumentou, desde 2020. Isto acontece por todas estas questões que referiu?
Sim. É demasiado aliciante face aos valores baixos que são praticados pelas plataformas e ao rendimento que é auferido pelos motoristas. É normal que os motoristas se sintam tentados a fazer serviços por fora da plataforma, porque é fácil convencer um passageiro que por mais dois ou três euros, que pode representar facilmente os tais 25% da comissão da plataforma, consiga fazer uma viagem fora.
Um dos pontos que se tem debatido é o aumento da idade máxima dos veículos. Faz sentido quando se pretende estimular a descarbonização?
Entendemos que o que faz sentido é trabalharmos em conjunto para encontrar soluções que promovam a mobilidade, promovam a rentabilidade das empresas e, simultaneamente, estejam alinhadas com a descarbonização e com as medidas ambientais. E isto obviamente também se refere à possibilidade de retirar carros do centro das cidades. O aumento da idade dos carros que poderão prestar serviço pode ser trabalhado se forem veículos não poluentes. É importante conseguirmos perceber que o TVDE é suposto ser um serviço para conseguir mobilidade das pessoas onde há menos oferta de transportes públicos, e não substituir-se aos transportes públicos. Não faz muito sentido que estejamos a investir em transportes públicos nas grandes cidades, como é o caso do metro, que são transportes mais ecológicos, e depois ter tarifas tão baixas no TVDE que se substituam ao metro, e os passageiros preferem ir de TVDE porque é mais barato.