“UM AMIGO FOI NO MEU LUGAR BUSCAR ÁGUA E FICOU SEM A PERNA”
Muitas das coisas que vivemos em África parecem mentira. Perdemos oito homens no Ultramar e vimos muitos feridos
“Um camarada foi contra um embondeiro e foi sangue por todo o lado. E um moço amigo ficou paralítico numa emboscada. Assisti a muito
Embarquei para Moçambique no dia 30 de abril de 1966 sem saber o que ia encontrar. Não tínhamos conhecimentos nenhuns, éramos
uns miúdos. Nós só estávamos prontos para aquela guerra quando a gente se vinha embora, ao fim de dois anos é que o pessoal começava a ter uma noção das coisas.
Então a gente disparava sobre pirilampos, eu não sabia o que eram pirilampos, nunca tinha ouvido falar. Quem nunca lá foi nem vai acreditar nisto. Como fomos todos em reforço, uns foram para uma zona de combate, como Cabo Delgado, outros para o Niassa, e o nosso batalhão, como era o último, ficou na Zambézia. E, parecendo que não, quando fomos para a zona operacional já tínhamos um ano de comissão e já íamos com outra preparação... Foi a nossa sorte. Mesmo assim tivemos onze baixas. Uma foi da mi
nha companhia, tinha um tumor na cabeça e ao fim de seis meses foi morrer a Lisboa. E houve três ou quatro acidentes, um deles por falta de conhecimento. Em ataque foram menos as vítimas mortais. Tivemos foi muitos feridos, uns trezentos... sobretudo acidentes em minas. Íamos pelo ar, ficávamos todos tortos e mesmo quando não se viam as mazelas, elas andavam cá... Ainda hoje, tantos anos depois, de vez em quando tenho de apanhar uma injeção para andar direito, por causa da coluna. Tenho 7 por cento de deficiência dos ouvidos, a guerra rebentoume com um tímpano. Um camarada foi contra um embondeiro e ainda hoje me lembro como ele ficou, sangue por todo o lado. E um moço amigo que ficou paralítico, um rapazito, numa emboscada, eles iam à vontade, ali nunca tinha havido problemas nenhuns, mas houve uma bazucada e com os estilhaços da bazuca e os tiros foi o suficiente... Avida dele mudou para sempre. E houve muita gente que regressou sem braços, sem pernas. Na guerra assisti a muita coisa e muitas delas guardo só para mim. A fase mais dura da comissão foi no Niassa, eu estive sempre em Vila Cabral. Depois fui para a companhia de transportes e aí comecei a ver muita coisa má. Não me esqueço de um rapaz que ficou sem uma perna. Ele foi no meu lugar, eu é que era para ter ido buscar água, mas ele disse: “Não vale a pena, vou lá eu” e ficou sem a perna numa armadilha que, segundo constou depois, até era nossa. Havia lá uma companhia que guardava uma zona que era talvez do tamanho de Portugal ,150 homens. E eles armadilhavam tudo. Quando foram embora esqueceram-se de arrancar. Também passei muitas coisas boas: não nos conhecíamos, mas tornámo-nos uma família. Quando víamos um de nós ferido ou morto nem conseguíamos raciocinar, era muito difícil.
A verdade
Passámos tanta coisa que as pessoas que ouvem até nem acreditam. Na véspera de embarcarmos para cá, o capitão da nossa companhia tinha passado à reserva e despediu-se da gente.
Depois de muita conversa e de muita palestra disse: “Vocês ainda são uns garotos, vão daqui e vão dizer a verdade, mas ninguém
“Passámos tanta coisa que quem ouve nem acredita
vai acreditar em vocês.” E assim foi, ninguém acreditava. Como aconteceu com a história do leão, ninguém acreditava... Chegou ao pé de nós um pescador a dizer que tinha sido atacado por um leão quando andava com o filho à pesca no lago Niassa. Disse que o leão puxava o miúdo para um lado, ele puxava-o para o outro, até que o leão lhe mandou uma sapatada que ele ia morrendo. Decidimos ir à procura do miúdo, o leão caiu em cima de um dos nossos camaradas e ele andou à roleta com o leão. Curioso é que, o leão, em vez de o agarrar pelo corpo, agarrouo só pela roupa e levou-o de rastos. O nosso amigo, antes de desmaiar, ainda disparou um tiro e o leão fugiu. Voltei a encontrar este amigo passados trinta anos num almoço, daqueles onde nos juntamos para recordar a guerra onde nos conhecemos.