ANDAR DE CARRO É COMO FUMAR, SERÁ?
“Andar de carro é como fumar”, diz David Vale, especialista em mobilidade e planeamento urbano,
mas não fará tanto mal, dizemos nós. A medida de redução de preços no passe intermodal único, que permite viajar entre concelhos limítrofes por 40 euros, não acabou imediatamente com o ‘vício’ de preferir a deslocação para o trabalho em viatura própria mas, ainda assim, nota-se maior afluência aos transportes e, nalguns casos, já se registou ‘pancadaria’ nas viagens, no afã de conseguir um lugar num comboio superlotado. É que a justa medida não acompanhou o justo aumento da oferta de transportes que permita que quem viaje não o faça como se numa lata. Deixámos o carro estacionado e apanhámos os transportes públicos nas áreas abrangidas pelos passes sociais de Lisboa e Porto.
Os passes estão mais baratos em quase todo o país, onde 60 por cento da população se desloca de automóvel. Quem escolheu os serviços públicos de transporte critica a crónica falta de condições em que viaja
Apresidente do Conselho de Administração da Transtejo/soflusa – empresa responsável pelo serviço de transporte fluvial da margem sul do Tejo para Lisboa –, Marina Ferreira, disse à Comissão de Utentes dos Serviços Públicos do Barreiro que estava a pensar reforçar os autocarros do Barreiro para Coina, freguesia daquele concelho que tem estação de caminhos de ferro, para as pessoas irem de comboio para Lisboa em vez de apanharem o barco. “É pior a emenda que o soneto: a malta do Seixal já não tem como apanhar os comboios porque vão cheios e às tantas já é uma guerra com a malta do Barreiro que dá bofetada. A solução não pode ser encher mais os comboios, tem de ser arranjar mais barcos”, alerta José Encarnação, membro da Comissão. “A semana passada houve um mestre – eles já atingiram todos os limites de horas extraordinárias possíveis e imaginários – que, no último barco que trazia pessoal de
Lisboa para o Barreiro, foi para o hospital e ficaram 200 pessoas no cais sem transporte. Nem na Índia. Não havia ninguém para o substituir, ele foi com um quadro clínico de 19-22 de tensão por cansaço, são homens de 40 e tal, 50 anos que trabalham demais porque não há mestres suficientes.”
José Encarnação, que se desloca todos os dias em transportes públicos, aproveita o embalo para contar outro episódio que presenciou já os novos passes, mais baratos, tinham entrado em vigor: “No comboio que vinha de Entrecampos, em Lisboa, para Setúbal às cinco e tal da tarde, o maquinista teve de anunciar seis vezes através da aparelhagem sonora para as pessoas saírem do comboio, porque não conseguia fechar as portas.” Daniel Neves, outro utente diário do comboio que liga Coina a Lisboa, também tem assistido a confusão nas carruagens. “Ainda no outro dia, um homem magrito tentava entrar no comboio e um
calmeirão que já lá estava dentro empurrou-o: ‘Você não entra aqui, nem pense!’ E não entrou, ficou de fora. E outro dia dois envolveram-se numa luta, caíram da escada e foram parar em cima de uma criança”, conta ainda.
A procura traduz-se nos números: “Se comparados os períodos homólogos de 1 de março a 5 de abril, em 2019 foram vendidos mais de 195 mil passes do que em 2018, o que representa um crescimento superior a 30 por cento”, segundo os únicos dados disponíveis até ao momento na Área Metropolitana de Lisboa. No Porto, desde a entrada em vigor do passe único, as assinaturas de títulos aumentaram de 76 mil para 85 mil.
Tirar cadeiras é solução?
Nos comboios da Fertagus as habituais filas de pares de bancos vão dar lugar a um banco único em cada lado, em algumas partes das carruagens; e estão também a ser instalados pilares para os passageiros se segurarem. “Vai muito mais gente no comboio. Eu venho sempre a correr para apanhar este [das 17h41] porque sei que, se for no outro a seguir, vou como sardinha em lata, sem conseguir respirar”, partilha Fátima Oliveira, de 57 anos, de pé no comboio que a leva a casa, no Cacém. Vai agarrada ao varão para não cair em andamento, depois de um dia de trabalho “todo em pé também”, de roda de crianças.
“A semana passada foi o caos, suprimiram comboios atrás de comboios e as pessoas a acumularem-se na estação. Se não tem qualidade de serviço é preferível não diminuírem o valor do passe e dar qualidade às pessoas que todos os dias precisam do comboio para se deslocar para o trabalho”, diz Fátima, que não quer parecer mal agradecida com a entrada em vigor do passe intermodal único.
“Desde abril que pago menos 30 euros de passe por mês e para mim foi uma grande ajuda. Tenho o meu marido de baixa em casa, e 30 euros é pão para um mês inteiro. Eu, por exemplo, no fim do mês fui à farmácia, gastei 29 euros; cheguei a casa e disse ao meu marido: ‘Olha, o dinheiro do passe já deu para a farmácia.’ Para nós, que ganhamos umas misérias de ordenados, faz muita diferença. E os meus sobrinhos que vêm de Setúbal todos os dias poupam 100 euros cada um. Para quem acabou de casar e está a montar uma casa é muito bom.”
“Se os passes são mais baratos, o acréscimo de pessoas a circular de comboio nota-se. Mas o problema já vem de há alguns anos, os trabalhadores da CP vão saindo para a reforma e pré-reforma e não repõem o mesmo número de funcionários. A semana passada houve aí um caos, num dia em que foram suprimidos 41 comboios só na linha de Sintra”, acusa desgostoso Álvaro Pinto, da Comissão de Utentes da Linha de Sintra. “Na quarta-feira estive 20 minutos dentro do comboio em Queluz e só depois é que o maquinista disse: ‘Por motivos técnicos o comboio está parado.’ A CP tem, desde há muitos anos, 10 por cento da frota imobilizada no que diz respeito à linha de Sintra, por falta de manutenção. Vão tirando uma peça dali e outra daqui até que os comboios param de vez”, atira.
José Carvalho olha, sonhador, pela janela. Os 71 anos de vida dão-lhe direito a lugar sentado e um passe mais barato (o Navegante +65 anos tem um custo de 20 euros para toda a Área Metropolitana) que lhe tem permitido tomar o pequeno almoço no Palácio da Pena (para onde vai de autocarro), almoçar em Setúbal (de comboio) e lanchar no Barreiro (de barco). “Estou reformado e sou viúvo e agora é uma qualidade de vida, este novo passe foi a coisa melhor que nos aconteceu. A não ser aqueles reformados que gostam de estar de manhã à noite no café, a beber copos. Tenho aproveitado bem estes dois meses. Onde vou de manhã?, pergunto-me. Tanto posso ir tomar café ao Rossio, em Lisboa, e jogar uma raspadinha, como posso ir ao Palácio da Pena. Meto-me na camioneta e não pago nada, vejo os ‘camones’ pagar uma fortuna e eu ali sossegadinho com o passe.” Daniel Neves não anda tão satisfeito, ele que também tem que ir mais cedo se quiser estacionar o carro na estação de Coina, na margem Sul, onde apanha o comboio para Lisboa. “Agora nunca consigo estacionar porque, com a diminuição do preço dos passes, o estacionamento ainda está mais à pinha do que antes. Sou obrigado a ir estacionar no centro comercial que fica a cinco minutos a pé, mas cria-me transtorno porque chego no limite para ir buscar os miúdos à escola”, conta o designer de 39 anos que todos os dias se indigna quando vê a polícia a multar os carros que estão fora do estacionamento da estação.
“As pessoas não têm mesmo hipótese se querem ir trabalhar e ali não atrapalha ninguém, mas a polícia está sempre em cima. De que vale ter um comboio mais barato se não temos onde pôr o carro? E o mais insólito é que na bilheteira dizem-nos para irmos estacionar no Foguetei
Tenho o meu marido em casa, de baixa, e poupar 30 euros já dá para o pão do mês inteiro, é uma grande ajuda FÁTIMA OLIVEIRA AUXILIAR DE EDUCAÇÃO
Agora nunca consigo lugar para estacionar DANIEL NEVES DESIGNER
ro [ao pé de outra estação da mesma linha], mas assim apanho um trânsito louco. É de loucos ir estacionar longe de casa... eles vendem isto às pessoas como se fosse solução, é inacreditável”, revolta-se. A solução para Graça Dias, enfermeira de 57 anos que vinha todos os dias de carro para Lisboa, foi passar a deixar o automóvel em casa, em Alverca, quando em abril o valor do passe diminuiu. “De carro, gastava 70 euros em combustível e não vinha de transportes porque era mais caro. Agora, com a descida, ainda poupo pelo menos 30 euros e é muito menos stressante.”
Haverá mais casos como o de Graça, mas David Vale, especialista em mobilidade e planeamento urbano, acredita que a mudança de comportamento não é imediata na maioria das pessoas. “Andar de carro é um bocadinho como fumar: nós temos o hábito e a mudança de hábitos não é imediata. Além de que, no dia a dia, sabemos que não é só o custo que nos leva a fazer a escolha modal, nós